O ex-escravo Luiz Gama, que se tornou abolicionista e republicano – o único
regime, segundo ele, capaz de garantir liberdade, igualdade e fraternidade entre
os homens – foi uma das personalidades negras mais notáveis do século XIX. Em
1869, quase cem anos antes de Martin Luther King, o poeta, jornalista e advogado
se antecipou ao norte-americano e declarou igualmente ter um sonho, um “sonho
sublime”, que transparecia também um desejo de igualdade: “as terras do
Cruzeiro, sem reis e sem escravos”.
Em 1880, dois anos antes de morrer, Gama evocou, em carta ao amigo Lúcio de
Mendonça, fatos relevantes de sua vida. Sua genealogia reproduzia a matriz
afro-luso-brasileira de boa parte do país. Nascido em 21 de junho de 1830 em
Salvador, era filho de uma africana livre, a “altiva” Luiza Mahin, muitas vezes
presa por envolver-se em revoltas negras que, segundo ele, “não tiveram efeito”,
mas na época agitaram a Bahia. Gama nunca revelou o nome do pai, fidalgo de
origem portuguesa, protagonista de um episódio dramático: vendeu o próprio filho
de 10 anos como escravo. Nesta condição o futuro abolicionista chegou à cidade
de São Paulo, onde residiu até o fim da vida. Aos 17 anos, obteve as provas de
ter nascido livre, aprendeu a ler e a escrever, iniciando sua extraordinária
aventura com a palavra escrita, universo quase exclusivo de homens livres e
brancos, no qual se consagraria 12 anos depois.
Em 1859, Gama publica em São Paulo seu único livro, Primeiras trovas
burlescas (PTB), coletânea de poemas satíricos nos quais denuncia
os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade brasileira. Reeditada no
Rio de Janeiro em 1861, a novidade editorial e literáriaocorre num Brasil
escravocrata, independente há menos de 40 anos e em pleno período romântico,
durante o qual o negro-escravo despontou como tema na poesia, como no monólogo
“Saudades do Escravo” (1850), de José Bonifácio. Também apareceu como personagem
no teatro – como no drama Calabar (1858), de Agrário de Meneses,
primeira peça brasileira a apresentar um herói negro – e no romance, como o
atesta Maria ou a Menina Roubada (1852), de Teixeira e Sousa. Neste
contexto, Gama fincou uma voz inaugural, a do primeiro autor negro que se
enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura brasileira.
A questão racial aparece em vários poemas. Em “Quem sou eu”, também conhecido
como “Bodarrada” (uma reunião de mestiços), o poeta lança: “Se negro sou, ou sou
bode,/ Pouco importa./ O que isto pode?/ Bodes há de toda a casta,/ Pois que a
espécie é muito vasta”. Nesses versos provocativos, ele rejeita o
sentido negativo de “negro”, bem como o da pejorativa palavra “bode”, aplicada
aos mulatos de pele escura. Em vez de insulto, são recebidos como elogio, em
tranquila indiferença, pois naquele extenso corpo social, irrigado pelo sangue
africano, à imagem do poeta, “tudo é bodarrada!”.
Tinha-se ali um retrato do Brasil, comprovado pelo Censo de 1872, no qual os
escravos correspondiam a 15% de uma população de 10 milhões de habitantes, dos
quais 58% se declararam pardos ou pretos, e 38%, brancos. A população do país só
veria sua fisionomia alterada a partir dos anos 1880, com a chegada da imigração
europeia destinada a substituir a mão de obra escrava e, sobretudo, a
embranquecer o país. Gama condenou igualmente os “mulatos de cor esbranquiçada”
que, ao ascenderem socialmente, “desprezam a vovó que é preta-mina” e “esquecem
os negrinhos seus patrícios”. Com lucidez e ironia, os versos de Gama ecoavam o
preconceito reinante (“Ciências e Letras/ Não são para ti/ Pretinho da Costa/
Não é gente aqui”), antecipando o grito angustioso de Cruz e Sousa (“Artista!
Pode lá isso ser se tu és d’África!”).
Na linha da sátira moralista, as PTB expõem os males congênitos da sociedade
imperial, aliás, perpetuados sob a República a que o poeta, morto em 1882, não
assistiu: venalidade, corrupção, impunidade. É o que se lê no atualíssimo poema
“Sortimento de gorras para a gente do grande tom”:
Se a justiça, por ter olhos vendados,
É vendida, por certos Magistrados,
Que o pudor aferrando na gaveta,
Sustentam — que o Direito é pura peta;
E se os altos poderes sociais,
Toleram estas cenas imorais;
Se não mente o rifão, já mui sabido:
— Ladrão que muito furta é protegido —
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
A partir dos anos 1860, Gama dedicou-se
exclusivamente ao jornalismo e à militância abolicionista. Ajudou a criar os
primeiros periódicos ilustrados de São Paulo (Diabo Coxo,
1864;Cabrião,1866) ao lado do cartunista Ângelo Agostini. Colaborou em
importantes jornais, como o Radical Paulistano, órgão do Partido
Liberal Radical, o Correio Paulistano e A Província de São Paulo,
e fundou o semanário político e satírico O Polichinelo (1876).
Escreveu para órgãos da Corte, como a Gazeta da Tarde, na qual, entre
1880 e 1882, somou sua voz à dos abolicionistas negros Ferreira de Menezes,
André Rebouças e José do Patrocínio. Exímio comunicador, dirigia-se do escravo
ao Imperador. Nenhum dos grandes temas nacionais escapou à pena audaz de Gama:
Guerra do Paraguai, Questão Religiosa, abolição, monarquia e república. A
imprensa foi fundamental para seu ativismo, bem como os laços com a maçonaria,
que o apoiou na missão de libertar e garantir os direitos dos escravos.
Em seus artigos, Gama demonstrava como os próprios representantes do Direito
violavam as leis em benefício da ordem escravista. No Radical
Paulistano, de 1869 a 1870, analisava sentenças e expunha os erros
cometidos por juízes corruptos e prevaricadores. Além de apontar “o modo
extravagante [como] se administra a justiça no Brasil”, o exercício permitia ao
advogado autodidata exibir sua cultura jurídica, vendo-se obrigado a dar
“proveitosa lição de direito” aos doutores, embora não fosse ele graduado em
jurisprudência, nem tivesse “frequentado escolas”.
O abolicionismo paulista ganhou contornos específicos graças a estratégias
inovadoras adotadas por Gama e seu grupo. Uma delas consistiu em desenterrar a
lei de 7 de novembro de 1831, que extinguia o tráfico negreiro, para libertar
africanos “ilegalmente escravizados”, com a anuência de autoridades que, aos
olhos de Gama, participavam de um crime. Certa vez, indignado pela não aplicação
daquela lei num processo de que se encarregava, o advogado engalfinhou-se com o
juiz Dr. Rego Freitas. Este lhe negara o depósito judicial de um africano,
comprovadamente chegado ao Brasil após 1831. Os leitores paulistanosacompanharam
a briga pelos jornais. Gama não se intimidou perante o juiz e, irritado,
esbravejou, “perante o país inteiro”, instando-o a “cingir-se à lei” e a
“cumprir seu dever”, para o que era “pago com o suor do povo, que é o ouro da
Nação”.
Atitudes como esta lhe renderam graves represálias, mas a partir daí sua
projeção pública só aumentou. Escravos de São Paulo e de outras províncias
recorriam ao advogado, que anunciava em alto e bom som: “Eu advogo de graça, por
dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo
violências”.Ainda na carta a Lúcio de Mendonça, o abolicionista fez o balanço de
seu abnegado serviço: “[no foro e na tribuna ganho] o pão para mim e para os
meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos,
que em número superior a 500 tenho arrancado às garras do crime”.
Por suas origens, conquistas e valores, Gama surge diante de nossos olhos
como uma síntese – na cor, no coração e na mente – de grande parte do povo
brasileiro que conserva características e anseios semelhantes aos seus.
Destacou-se como agente de mudança num período em que questões importantes
convulsionavam as instituições e a própria identidade do Brasil.
Em seus últimos anos, dedicou-se somente a libertar pessoas “ilegalmente
escravizadas”. Mesmo enfermo, saía carregado de casa para atender a seus
clientes. Faleceu em 24 de agosto de 1882. A vida de Gama norteou-se por
princípios que lhe deram o conforto de proclamar: “Sou abolicionista sem
reservas; sou cidadão; creio ter cumprido meu dever”.
Ligia Fonseca Ferreira é professora da Universidade Federal
de São Paulo e autora de Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas,
máximas (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011).
Cartas sobre a vida e anseios
Na Biblioteca Nacional encontram-se duas preciosas
cartas de Luiz Gama. A primeira, datada de 26 de novembro de 1870, destinava-se
a José Carlos Rodrigues, que naquele ano fundara em Nova York o Novo
Mundo, primeiro periódico em português publicado nos Estados Unidos, país
pelo qual Gama nutria particular admiração por considerá-lo o “farol da
democracia universal”. O remetente dá notícias sobre a fundação da Loja América
e sobre a mobilização republicana na capital paulista, dias antes de ser
publicado o Manifesto Republicano (em 3 de dezembro de 1870) no Rio de Janeiro.
A segunda carta foi enviada em 25 de julho de 1880 a Lúcio de Mendonça, um dos
futuros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Gama revela fatos inéditos
de sua vida, da infância na Bahia ao final dos anos 1860. Trata-se de um dos
poucos relatos da vida de um ex-escravo no Brasil. Na história dos negros e das
letras brasileiras, não há equivalentes das memórias de escravos, tão frequentes
nos Estados Unidos. A carta a Lúcio de Mendonça, que serviria de base para um
ensaio biográfico sobre o amigo, é fundamental para a compreensão de como Gama
adquiriu uma voz influente nos movimentos abolicionista e republicano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário