O romance que marca a conhecida virada na obra de Machado de Assis é escrito por
um defunto. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, publicadas em 1880 na
Revista Brasileira, o par romântico do narrador Brás Cubas é a mulher
de Lobo Neves, Virgília. Estes dois elementos – a perspectiva de morto e o nome
Virgília – remetem a uma das obras centrais do cânone da literatura ocidental: a
Divina Comédia.
Escrita no século XIV pelo florentino Dante Alighieri (1265-1321), a
Comédia narra a peregrinação de Dante pelo Reino dos Mortos – Inferno,
Purgatório e Paraíso. Quem guia o poeta italiano por essas regiões do além é
Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), poeta latino, autor de Eneida. Machado de
Assis estaria então fazendo de fato uma referência à obra de Dante? Tudo leva a
crer que sim, dada a admiração que tinha pelo florentino, como demonstram as
dezenas de alusões que faz a ele em seus textos.
Dante está entre os autores mais citados por Machado de Assis, ao lado de
Shakespeare, Camões e Homero. Já em 1863, o brasileiro escreveu um poema, “No
limiar”, publicado em Crisálidas, em terza rima ou terceto –
forma encadeada de versos consagrada pela Comédia e pouco usada entre
os poetas nacionais. Mas é a partir da década de 1870 que as citações e as
alusões aparecem com mais frequência. Aos 34 anos, em 1873, Machado de Assis
cita parte de um dos versos do canto V do Inferno no conto “Aurora sem dia”:
“Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura
com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas
que pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o
nessun maggior dolore do poeta florentino”. Daí em diante, as
referências à Comédia aparecem continuamente em quase todos os gêneros
em que escreveu: crônica, poesia, conto, romance e até no ensaio “A nova
geração”, de 1879. Em seu último romance, Memorial de Aires, de 1908,
ele alude à obra e a uma personagem do quinto Canto do Purgatório, Pia de
Tolomei. Apenas as obras escritas para o teatro não fazem referência a
Dante.
Apesar da grande quantidade de citações, elas só passaram a ser estudadas
depois de uma pesquisa feita por um italiano radicado no Brasil. Mais conhecido
como tradutor da obra de Guimarães Rosa, Edoardo Bizarri foi o primeiro a fazer
este levantamento da presença da obra de Dante Alighieri nos textos do escritor
fluminense. O artigo inaugural é “Machado de Assis e a Itália”, de 1961. Mais
tarde, em 1965, ele publica “Machado de Assis e Dante”. Bizarri contou 23
citações diretas da Comédia na obra de Machado – sendo 19 do Inferno e
4 do Purgatório – porém deixou escapar uma: a do canto VI do Purgatório,
epígrafe do poema “Niâni”, de 1873.
Bizarri também comenta várias alusões a Dante, sobretudo nas crônicas, mas
não faz um levantamento de todas. Este é um trabalho mais sutil, pois trata de
remissões que “não se apoiam em uma referência direta e textual”, como notou
outro estrangeiro, o francês e biógrafo de Machado de Assis, Jean-Michel Massa,
no artigo “La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de Assis”, ensaio
escrito em 1965 e disponível na Biblioteca Nacional.
Se os estrangeiros foram os primeiros a fazer esse levantamento documental,
coube a um brasileiro, o escritor Mário de Andrade (1893-1945), fazer uma das
primeiras análises das alusões sem referência direta e textual, ou seja, sem que
haja uma menção explícita a Dante ou à Comédia. Em “Machado de Assis”,
artigo publicado em Aspectos da literatura brasileira, de 1939, o
modernista afirma que o escritor fluminense inspirou-se no canto V do Inferno
para escrever o poema “Última jornada”, publicado no livro Americanas.
Neste poema, composto por dois cantos, lê-se uma funesta história de amor entre
dois índios. Ambos aparecem voando para moradas dos mortos no primeiro canto,
enquanto no segundo o guerreiro, antes de desaparecer, conta ao leitor o que
houve. Ele a mata por ciúmes, e Tupã se vinga e tira-lhe a vida.
O canto V do Inferno mostra os condenados do segundo círculo, os luxuriosos.
Ali estão aqueles que pecaram por não resistir à tentação da carne, como
Cleópatra, Helena e Semíramis. Nesta seção do Inferno, a punição dos pecadores
consiste em girar eternamente em meio a uma tempestade infernal. No meio do
caminho, Dante se detém para conversar com um casal de condenados, Paolo e
Francesca. Ela conta por que estão ali. Foram assassinados por seu marido,
Gianciotto Malatesta, logo depois de serem flagrados beijando-se.
Mário de Andrade justifica sua hipótese ao ver semelhanças entre a estrutura,
as personagens e o narrador dos poemas. “Última jornada” é escrito em tercetos,
protagonizado por dois amantes que voam depois de mortos – um para o alto, outro
para baixo – e é narrado por um deles, o guerreiro. “A escolha da forma poética
do terceto, que a qualquer um evoca irresistivelmente Dante, me parece
consequência natural de uma inspiração dantesca”, diz o modernista. Sem contar a
semelhança entre os versos iniciais: “Così discesi del cerchio primaio” e “E ela
se foi nesse clarão primeiro”.
Outro aspecto importante ligado a este poema diz respeito à mistura de fontes
na composição de seus textos. A epígrafe do poema é pinçada do capítulo “Os
canibais” dos Ensaios (1580-1588), de Montaigne. Deste trecho do
escritor francês, Machado de Assis tira a cosmologia do poema, que explica o fim
que levam os mortos em face de suas ações terrenas: “Acreditam na imortalidade
da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do
nascente; as amaldiçoadas, do lado do poente”. Assim, para compor o poema,
Machado de Assis mistura Dante, elemento indígena e Montaigne. Por baixo, o
episódio é dantesco; por cima, na epígrafe, é montaigniano; no centro, cenário e
tema são nacionais. A essa altura, Machado ainda não optou pela paródia nem pelo
rebaixamento dos temas elevados, mas já mostra essa inclinação de buscar o
estilo e a forma com base na mistura das várias fontes. Quando incorporar a
paródia como mecanismo de aproximação entre a sua literatura e o repertório da
tradição, ela se tornará um mecanismo central de seu estilo.
Na década de 1870, Machado de Assis está em busca de um estilo.Então,
divide-se entre textos mais convencionais, como nos romances da primeira fase e
na poesia, e outros experimentais, como “Antes de missa”, “Tempo de crise” e “Um
cão de lata ao rabo”, textos em prosa nos quais sobressaem o cômico, a paródia e
a ironia. Sem contar as crônicas, nas quais ele exercita mais livremente estes
aspectos.
Em relação à Comédia, essa dualidade aparece numa excelente tradução
do canto XXV do Inferno, publicada no dia de Natal de 1874 no jornal O
Globo, e numa paródia do texto de Dante publicada meses antes na Semana
ilustrada, intitulada “Inferno – Canto suplementar ao poema de Dante pelo
Dr. Semana”. O texto foi escrito muito provavelmente por Machado, sozinho ou com
outros autores que assinavam com ele o pseudônimo Dr. Semana. Nesta paródia, Dr.
Semana põe no centro do poema uma mulata com nome de heroína camoniana, Inês,
que sucumbe por causa de uma relação adúltera, como a Francesca do Canto V do
Inferno.
Tanto na paródia quanto na tradução, encontramos um Machado de Assis bastante
familiarizado com a Divina comédia, sobretudo com o Inferno – seja pelo
respeito ao estilo e ao tom do escritor italiano, seja pela opção de traduzir um
canto pouquíssimo comentado, ou pela ausência de tradução em português à sua
época.Machado não teve outras versões à mão para ajudá-lo nessa tarefa, por isso
deve ter manuseado bastante sua edição de 1868, em italiano, da Divina
comédia.
À medida que vai afirmando seu estilo, sobretudo na prosa, a obra de Dante
aparece rebaixada, parodiada e citada, sempre traduzida por um estilo que trata
de “vulgarizar o sublime”, fórmula feliz cunhada por Alcides Villaça em
“Machado, tradutor de si mesmo” (1998).
Se a Virgília de Memórias póstumas de Brás Cubas tem relação com
Virgílio, par de Dante na Comédia, e se o defunto autor é um modo de
inverter e parodiar a jornada ao mundo dos mortos feita por Dante e outros antes
dele, estas duas formas são obra de um autor cujo estilo já se firmou.
Eugênio Vinci de Moraes é professor do Centro Universitário
Uninter, em Curitiba (PR), e autor de “A Tijuca e o pântano: A Divina Comédia na
obra de Machado de Assis entre 1870 e 1881”, (USP, 2007).
Saiba mais -
Bibliografia
Andrade, Mário de. “Machado de Assis”. In: ___. Aspectos da literatura
brasileira. 5. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, [1939] 1974. p.
97-102.
Bandeira, M. “O poeta”. In: Machado de Assis. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Cascudo, L. da C. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil.
Porto Alegre: PUC-RS, 1963.
Ceschin, O. H. L. “Uma página dantesca de Machado de Assis”. Revista do
Instituto Italiano de Cultura, São Paulo, v. 8, 1999.
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