Todo o repertório de música medieval que chegou aos nossos dias foi
registrado em um sistema de notação desenvolvido por Guido D’Arezzo, um monge do
século XI. Seu objetivo era que os cantores pudessem ler a música assim como
liam um texto. Para isso, criou uma pauta com quatro linhas (depois seriam
cinco) onde as notas musicais eram colocadas de tal maneira que não deixavam
dúvidas quanto à sua altura. O sistema mostrou-se tão eficiente que vigora até
hoje.
Graças ao advento da escrita musical, podemos conhecer obras como as
Cantigas de Santa Maria. Registradas no século XIII, portanto há cerca
de 800 anos, elas são um testemunho da criação artística e do momento político
vivido pela Europa da época.
A busca por uma representação dos sons musicais está em sintonia com a velha
necessidade humana de comunicar seus pensamentos, de deixar suas marcas. Para os
reis, essa era uma necessidade ainda maior, pois dela dependia a manutenção do
seu poder político. Ao longo da Idade Média, quando em muitos reinos ocorreu a
centralização do poder na figura do rei, cresceu sua preocupação em legitimar-se
perante a nobreza e a Igreja. As artes e as ciências eram aliadas da realeza
nesse processo.
Afonso X de Leão e Castela (1221-1258), que recebeu a alcunha de Rei Sábio,
mantinha em sua corte uma escola de tradutores formada por estudiosos das três
principais religiões da Europa (cristianismo, judaísmo e islamismo). Eles
traduziram para as línguas ocidentais a Bíblia e textos de cientistas islâmicos
da Antiguidade clássica. O rei ainda foi responsável pela instalação de um
observatório astronômico em Toledo, e congregou em sua corte vários cientistas,
fornecendo meios de estudo e investigação para a elaboração do El libro del
saber de Astronomia, baseado no sistema ptolomaico, no qual a Terra estaria
no centro do universo, sendo considerada imóvel. À sua volta girariam o Sol, a
Lua e os planetas. Este sistema esteve vigente até o século XVI. Baseando-se em
cálculos de cientistas árabes, criou tabelas que mostram as posições
astronômicas dos planetas, as Tabelas Afonsinas.
Afonso X era mais que um promotor das artes. Também se aventurava como músico
e trovador. Participou da criação de 44 cantigas de amor e de amigo, além das
426 cantigas de Santa Maria. Não se sabe quantas poesias e músicas compôs
pessoalmente, pois mantinha em sua corte uma equipe de artistas que certamente o
ajudou nessa empreitada. O fato é que o rei considerava muito importante o livro
das cantigas de Santa Maria, revestindo-o de um caráter sagrado, como uma
relíquia capaz de produzir milagres. Em certa ocasião, quando estava doente,
mandou que trouxessem o livro para que fosse colocado sobre seu corpo, de modo a
obter a cura.
As Cantigas de Santa Maria provinham de um movimento
artístico-cultural surgido no século XII na região da Occitânia, atual
Provença, no sul da França, e que se espalharia por toda a Europa durante o
período medieval: o movimento trovadoresco. Sua principal característica é a
preferência pela escrita nas línguas vernáculas, ou seja, originárias do latim e
desenvolvidas durante a Idade Média – como as que deram origem ao português, ao
castelhano, ao francês e ao italiano. O primeiro trovador que se conhece foi
Guilherme IX, conde de Poitiers e duque de Aquitânia (1071-1127).
Tanto a música quanto a poesia trovadorescas faziam parte de um jogo que se
desenvolveu nas cortes ao sul do rio Loire. Conhecido como o jogo do “amor
cortês” (fin amour), centrava-se numa narrativa em que o amante cobiça
a esposa de seu senhor, transferindo para ela a devoção, as atitudes e o serviço
de um vassalo. Tais maneiras corteses originadas na França se espalharam por
toda a Europa, fazendo surgir canções em honra de poderosas damas da sociedade
feudal.
Nas Cantigas de Santa Maria, o objeto de culto do trovador não é
mais a figura da dama da corte, e sim a Virgem Maria. A imagem da Virgem ganhou
um lugar de destaque cada vez maior no culto cristão, refletindo a crescente
necessidade de conceder espaço ao elemento feminino. O culto a Maria se amplia
ainda mais a partir do século XII, com a produção de várias coletâneas de
milagres marianos. Para compor suas cantigas de Santa Maria, Afonso X utilizou
fontes comuns a outras compilações da época, como as de Gautier de Coincy e
Gonzalo de Berceo. Mas o trabalho do rei se destaca pela dimensão e pela riqueza
de seus manuscritos, dos quais sobreviveram quatro, sendo dois repletos de
iluminuras, o Códice Rico e o Códice de Florença (incompleto),
que trazem todas as poesias ilustradas, compondo narrativas em quadros. Um dos
manuscritos, conhecido como Códice Príncipe ou Manuscrito dos
músicos, traz, antes de cada canção, iluminuras de músicos tocando uma
série de instrumentos do período. Este manuscrito preservou as melodias de todas
as 426 cantigas.
A obra divide-se em dois tipos. As cantigas de louvortêm caráter sacro, são
poesias líricas e amorosas que exaltam as virtudes e a beleza da Virgem Maria.
Já as cantigas de milagressão poesias narrativas de caráter didático.O
milagre é uma narrativa curta em que ocorre a intervenção de um santo (no caso,
a Virgem Maria) provocando um acontecimento maravilhoso em favor de alguém. A
cada dez cantigas de milagres – como era X o número do rei Afonso – segue-se uma
cantiga de louvor.
Assim como todo o repertório monódico (canções escritas a uma só voz) do
século XIII, a leitura musical dessas cantigas é simples do ponto de vista da
melodia. Não se pode dizer o mesmo, no entanto, em relação ao aspecto rítmico:
são muitas as incertezas na interpretação, o que faz com que alguns musicólogos
deixem de lado este rico repertório por considerá-lo ilegível.
As músicas das Cantigas foram editadas em sua totalidade pelo
musicólogo catalão Higino Anglés entre os anos 1943 e 1964. Para sua edição,
Anglés toma por base as melodias anotadas no Códice Príncipe, ao qual
acrescenta as variantes que aparecem no Códice Rico. As transcrições de
Anglés pretendem representar não apenas as melodias, mas também o ritmo, o que
ele fez segundo diversos critérios, entre eles a utilização de elementos
rítmicos encontrados na música folclórica e popular tradicional. O trabalho é
alvo de críticas de musicólogos, que o acusam de desviar-se das “regras
medievais de notação mensural” – contidas em tratados que definiam a duração dos
sons musicais, ou seja, o ritmo. O musicólogo português Manuel Pedro Ferreira
observa, porém, que não existem regras de notação mensural que possam ser
aplicadas de forma generalizada no século XIII, uma vez que “havia uma série de
sistemas de notação mensural distintos, que por vezes se defrontavam, cada um no
seu lugar, tempo, influência e campo de aplicação”. Mesmo apresentando
problemas, a transcrição de Higino Anglés constitui o esforço maior que já foi
feito no sentido de trazer as Cantigas de Santa Maria para o
conhecimento de um grande público.
A grandeza e a riqueza da obra das Cantigas de Santa Maria reflete a
força do movimento mariano nas sociedades ibéricas da Idade Média. Algumas de
suas histórias ficaram tão marcadas na memória popular que sobreviveram por
muito tempo, podendo ser encontradas até mesmo no Brasil, adaptadas em contos
populares e na literatura de cordel. Um cordel muito famoso no Brasil,
intitulado “História da Imperatriz Porcina”, por exemplo, é baseado na quinta
Cantiga de Santa Maria de Afonso X.
As melodias preservadas fazem dessa coletânea uma das principais fontes para
o conhecimento da música medieval ibérica. As iluminuras nos mostram também
outras características típicas daquela sociedade, tais como as vestimentas
usadas por homens e mulheres, judeus, árabes e cristãos, ou mesmo o tipo de
construção utilizado nos casarios, por exemplo. As narrativas de milagres
descortinam as mentalidades, ou seja, valores, crenças e superstições da
população e até da nobreza, ou seja, as Cantigas de Santa Maria
constituem um material riquíssimo de estudos da sociedade ibérica do século
XIII.
Lenora Pinto Mendesé autora da tese “A música no teatro de
Gil Vicente: a função do espetáculo no projeto político da Dinastia de Avis
(1465-1536)”, (UFF, 2005).
Santo remédio
Em algumas cantigas, Afonso X fala na primeira pessoa e apresenta
acontecimentos de sua vida. Depois de ser “curado” pelo livro das Cantigas de
Santa Maria, escreveu mais um texto. Dessa vez, sobre a graça recebida. Abaixo,
um trecho:
Muito faz grand’erro, e em torto jaz,
a Deus quen lle nega o bem que lle faz.
(...)Poren vos direi o que passou per mi,
jazend’ em Bitoira enfermo assi
que todos cuidavam que morress’ ali
e non atendian de mi bom solaz.
Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...
Ca hua door me fillou atal
que eu bem cuidava que era mortal,
e braadava: “Santa Maria, Val,
e por ta virtud’ aqueste mal desfaz.”
Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...
E os físicos mandavan-me põer
panos caentes, mas nono quix fazer,
mas mandei o Livro dela aduzer;
e poseran-mio, e logo jouv’ en paz,
Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...
Que non braadei senti nulla ren
da door, mas\senti-me logo mui bem;
e dei ende graças poren,
ca tenno bem que de meu mal lle despraz.
Muito faz grand’erro, e em torto jaz,(...)
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