Você já ouviu falar da Frente Negra Brasileira? Os negros compõem mais da metade
de nossa população, mas as histórias de suas lutas e de sua participação na
formação da sociedade ainda são pouco conhecidas e estudadas nas escolas e
universidades. Essa escassez de memórias e histórias nos espaços de aprendizagem
dificulta as construções identitárias positivas pelos indivíduos deste
grupo.
O movimento contrário também acontece: a enorme presença de memórias e
histórias eurocêntricas pode alimentar um sentimento de superioridade em relação
aos grupos sub-representados nos currículos e nas salas de aula. Tanto
sentimentos de inferioridade quanto de superioridade atrapalham a consolidação
de uma perspectiva democrática ao longo do processo formativo.
Parece fundamental construir espaços de enunciação das diferenças nos
currículos e nas escolas; ações que podem contribuir muito para a construção de
um processo educativo efetivamente mais democrático em nossa sociedade.
Em cada período da história do Brasil houve movimentos negros com
características distintas que precisam ser estudados nas suas especificidades. É
impossível, por exemplo, falar de qualquer situação social até o final do século
XIX sem levar em conta a escravidão e seu papel estruturante na economia, na
política e na cultura de nosso país. Tão importante quanto levar para a escola
básica a história da escravidão é enfatizar, nesse processo, as lutas contra a
escravidão e suas implicações para a formação da sociedade.
Onde houve escravidão houve resistência contra ela. Se o sistema escravista
teve importância para a estruturação do que conhecemos como Brasil, então a
resistência contra a escravidão também foi um elemento estruturante. Esta pode
ser a força motriz de diferentes aulas do ensino fundamental até a graduação nas
áreas das Humanidades: as revoltas, a criação dos quilombos, as ações na Justiça
para libertar pessoas escravizadas, levadas a cabo pelo rábula negro Luiz Gama
(1830-1882) [Ver RHBN nº 100] e por muitos outros, ou ações no campo da
educação, como a criação de escolas ainda no século XIX, como fez a escritora e
professora negra Maria Firmina dos Reis (1825-1917) no Maranhão, em 1880.
No período pós-Abolição, as mobilizações da população negra no Brasil
ganharam nova dimensão. A publicação dos jornais da chamada “imprensa negra” –
expressão criada por Florestan Fernandes na década de 1950, ao pesquisar os
jornais criados por negros no período pós-abolição em São Paulo – foi uma
estratégia importante, desde o final do século XIX, para expressar os anseios e
as reivindicações de setores da população negra que se organizavam nas grandes
cidades, especialmente em São Paulo. Por exemplo, ao comentar sobre a Lei do
Ventre Livre (1871), na edição de 28 de setembro de 1930, um dos mais
importantes jornais da imprensa negra, O Clarim d'Alvorada, dizia o
seguinte: “E por taes princípios a raça negra já começava a sentir os
preconceitos sociaes, que não facultavam os direitos dos filhos de escravos
serem educados ao lado dos filhos dos escravagistas. E com o confronto nos
inicios rudimentares ao ensino da epoca; nem o império e a republica fizeram
escolas para educar o elemento vindo de ventres escravos, que ficou embrutecido
pelo ambiente que manietava. (...) assim vieram, na indiferença e sonegados até
os dias de hoje, sem pressentir o reflexo da evolução e dos conflitos
sociaes”.
Importantes organizações surgiram e se espalharam pelo país, como o Centro
Cívico Palmares, criado em 1926, e o Teatro Experimental do Negro, de 1944.
Homens e mulheres negros, intelectuais, políticos e artistas lutaram contra a
discriminação racial e por melhores condições de vida para essa população.
A Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em São Paulo em 1931 e com
ramificações em vários estados, foi a maior organização do movimento negro na
primeira metade do século XX no país. Em 1933 a FNB criou seu próprio jornal,
A voz da raça, e em 1936 tornou-se um partido político, que acabou
fechado juntamente com todos os outros partidos durante o golpe do Estado Novo,
de Getulio Vargas, no ano seguinte.
Com um evidente caráter nacionalista, a Frente tinha como principal objetivo
integrar a população negra ao conjunto da sociedade brasileira no que diz
respeito aos direitos civis e sociais. O artigo 1º de seu Estatuto – registrado
em cartório no dia 4 de novembro de 1931 – deixava claros a missão e os
objetivos da FNB: “Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por
todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra
Nacional, para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua
atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos
sociais e políticos, atuais, na Comunhão Brasileira”.
A Frente Negra Brasileira chegou a ser vista por negros norte-americanos e
porto-riquenhos como um exemplo de luta por direitos civis e sociais na década
de 1930. No jornal Chicago Defender, um dos mais importantes do gênero,
criado em 1905, muitas reportagens abordavam a questão racial no Brasil nas
décadas de 1930 e 1940, justamente durante o período que vários historiadores
consideram o ápice da imprensa negra nos Estados Unidos. Em 26 de outubro de
1935, noticiou uma manifestação realizada pela Frente Negra Brasileira no Rio de
Janeiro, que teria mobilizado, segundo o Chicago Defender, cerca de 10
mil pessoas. “A Frente Negra é hoje a organização mais poderosa em todo o
Brasil”, descrevia o jornal. Somente entre 1935 e 1937 a Frente Negra Brasileira
esteve presente em nada menos do que 20 reportagens do Chicago
Defender. Com a aproximação das eleições de 1937, o jornal norte-americano
anunciou que “Políticos brasileiros buscam o apoio da Frente Negra”, afirmando
que “os associados à Frente Negra, de acordo com fontes autênticas, vão muito
além dos 40 mil, com novos membros se associando diariamente”, e que, “com sua
solidez, esta organização representa hoje uma das forças mais poderosas a serem
consideradas no Brasil”.
Embora a FNB não tenha sido de fato a “organização mais poderosa em todo o
Brasil” da década de 1930, sua participação política em São Paulo e em outros
estados era mesmo considerável. O número de associados e sua atuação política e
social chamavam a atenção de brasileiros e de estrangeiros – como os editores do
Chicago Defender, que olhavam para o Brasil naquele momento e viam
muitos exemplos a serem seguidos. “Grupo Racial Americano segue exemplo do
Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos grilhões em 1936”, estamparam no topo
da primeira página em letras garrafais, apresentando para seus leitores os
planos da “Frente Negra Norte-Americana”. Na mesma edição, outra reportagem
informava que os porto-riquenhos também organizavam sua Frente Negra, “inspirada
no sucesso alcançado pela Frente Negra no Brasil”.
Há muitas histórias de lutas nos quilombos e em instituições, como as
irmandades negras no século XIX. Há vários personagens – como os citados Maria
Firmina dos Reis e Luiz Gama, entre muitos outros – e movimentos negros
organizados na história da República. São memórias disponíveis para a população
brasileira, assim como as de outras minorias sociais, como as populações
indígenas, em diferentes momentos ao longo do processo de formação de nossa
sociedade. Levar esses conteúdos para as escolas, com embasamento teórico e
seriedade no trato dos temas, só pode beneficiar a formação de todos os alunos,
sejam eles pretos, brancos, indígenas ou amarelos. Um país culturalmente
diverso, que se quer democrático, deve lutar arduamente por mais democracia nos
currículos e nas escolas.
Amilcar Araújo Pereiraé professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autor de O mundo negro: relações raciais e a constituição
do movimento negro contemporâneo no Brasil (Pallas/ Faperj, 2013).
Do bairro para o mundo
Uma possibilidade de trabalhar os movimentos sociais em sala de aula é
através da realização de pesquisas orientadas pelos professores, com o objetivo
de tentar compreender como se constituíram as organizações políticas no próprio
bairro da escola. Entrevistas feitas com avós, vizinhos e lideranças locais
podem contribuir para o ensino, pois esse processo de construção de conhecimento
tem como protagonistas os próprios alunos, com os professores realizando a
mediação didática ao orientarem e avaliarem as pesquisas realizadas.
O trabalho pode se iniciar com a pesquisa sobre a história do bairro. Por
meio da troca de ideias entre os professores e consultas com os alunos, surgem
possíveis organizações como objeto de estudo. Em seguida, professores podem
indicar aos alunos leituras de textos que apresentem informações amplas sobre o
objeto pesquisado: o movimento negro, por exemplo. Após as leituras e as
discussões, professores e alunos, juntos, elaboram um roteiro de entrevistas,
que são gravadas (com telefones celulares, por exemplo) e discutidas em sala de
aula. Dessa forma, dá-se início a outras possibilidades de trabalhos sobre a
temática pesquisada.
O professor terá material para fazer articulações entre os resultados da
pesquisa e certos aspectos da história do Brasil e do mundo.
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