Imagine o repertório do primeiro catálogo de uma das primeiras gravadoras
existentes no Brasil. Coisa simples, modesta, pouco variada? Não é o que mostra
a lista: em 1902, a Casa Edison apresentou ao público uma coleção com 50
modinhas, 81 cançonetas e lundus, 14 discursos, seis duetos, quatro marchas,
sete dobrados, nove valsas, 16 polcas, cinco tangos e cinco maxixes.
A mesma Casa Edison lançou, naquele ano, o primeiro disco gravado no país,
“Isto é bom”, um lundu de Xisto Bahia na voz de Manuel Pedro dos Santos,
conhecido como Baiano – um cantor mulato, ator de teatro de revista e palhaço do
Circo Spinelli. Em 1916, seria a vez de “Pelo telefone”, o primeiro samba
gravado, de autoria de Donga, cantado por Baiano com instrumental da banda da
Casa Edison.
Oficialmente, tudo isso aconteceu nos primeiros tempos do regime republicano.
Mas tamanha variedade não nasce da noite para o dia. Foi durante o Império, no
século anterior, que misturas e adaptações deram à música brasileira seu caráter
único e inigualável, às margens da vida na Corte.
Décadas antes da invenção do fonógrafo – aparelho para gravação e reprodução
de sons através de um cilindro, inventado por Thomas Edison em 1877 – melodias
populares já eram reproduzidas mecanicamente nos cilindros dos realejos e
tocadas repetidamente pelos escravos de ganho nas ruas do Rio de Janeiro
imperial. O fonógrafo, por sinal, chegaria importado ao Brasil em 1892, pelas
mãos de Frederick Figner – imigrante tcheco que apropriadamente daria ao seu
negócio o nome de Casa Edison e seria o fundador da indústria fonográfica
nacional.
Duas matrizes fundamentais da nossa música, as modinhas e os lundus, surgem
no final do século XVIII, enquanto as práticas híbridas de música e teatro, com
suas figuras mistas de cantor, ator e cômico – como as encarnadas por Xisto
Bahia e Baiano – remontam a ainda antes. No início da colonização, o ensino
musical vinculava-se à atividade religiosa. A música era instrumento de
catequização. Crianças, índios e escravos negros passaram a atuar como músicos
nas igrejas jesuíticas, executando os cânticos dos ofícios religiosos. Do lado
de fora da Igreja, contudo, outros sons se faziam ouvir. Os batuques de negros e
as danças indígenas eram constantes motivos de queixas para os jesuítas, que
viam nas folganças populares a ocasião perfeita para as tentações demoníacas,
lascivas.
Até a vinda da corte, em 1808, o preconceito racial não era um impeditivo
para a prática musical. A regra era que os compositores fossem mulatos, pois
poucos brancos quiseram ou chegaram a ser músicos profissionais durante a
Colônia. Logo que chegou ao Brasil, D. João VI instituiu na Fazenda de Santa
Cruz, próxima à cidade do Rio de Janeiro, uma escola de música para negros
escravos, que se tornaram intérpretes de composições feitas especialmente para
eles por dois mestres-de-capela: o brasileiro, mulato e padre José Maurício
Nunes Garcia (1767-1830) [Ver artigo “O maestro”, página 57] e o compositor
português Marcos Portugal (1762-1830). O repertório dos músicos da Fazenda
consistia não apenas de música sacra, mas também de música vocal-instrumental
para entremezes – peças teatrais curtas, de caráter cômico-satírico, que
contavam com números de canto, música e dança. Mesmo após a volta de D. João a
Portugal, em 1821, permaneceu ativa a Banda de Música da Quinta de Santa Cruz,
contratada durante as Regências (1831-1840) para tocar quadrilhas, contradanças,
galopes e valsas nos bailes aristocráticos que animavam a vida noturna das
elites cariocas.
A partir de 1808 e com a abertura dos portos às nações amigas, deu-se a
chegada de milhares de europeus: portugueses, italianos, espanhóis, franceses,
ingleses, alemães. Entre eles havia compositores, instrumentistas, cantores,
atores e dançarinos, atraídos pelas oportunidades de trabalho no Real Teatro de
São João, inaugurado em outubro de 1813, e na Capela e na Câmara Reais. Os
teatros eram frequentados pela elite, composta pela Família Real, a aristocracia
e as oligarquias e as famílias que dominavam a política, a administração e a
economia desde a Colônia. Mas também comparecia a classe média urbana, bem mais
heterogênea – com seus brasileiros e imigrantes, intelectuais, estudantes,
artesãos, doutores, músicos, costureiros, comerciantes, donos de pequenos
negócios e burocratas.
Com a abdicação de D. Pedro I, em 1831, foi demitida a maioria dos
instrumentistas e cantores da Capela e da Câmara Imperiais, assim como os
cantores operísticos do Teatro de São Pedro de Alcântara (o mesmo São João,
rebatizado sob o Império, e atualmente João Caetano). A crise do teatro lírico e
da música sacra, que perdurou durante toda a década de 1830, favoreceu, por
outro lado, o surgimento de um teatro nacional em prosa e atraiu o investimento
de empresários interessados em lucrar com as formas mais populares de arte.
É a época dos cosmoramas – tipo de câmera ótica onde são projetadas imagens
distorcidas por espelhos. A entrada custava um terço do bilhete para os teatros
principais da corte, e incluía atrativos extras, como as músicas tocadas nos
realejos pelos escravos de ganho. Entre elas, danças populares, como o “Lundu de
Monroi” afro-brasileiro e a caxuxa espanhola, além de números de equilibrismo e
malabarismo. Desde os fins do século XVIII, o lundu e a caxuxa eram dançados nos
teatros europeus e, nas décadas iniciais do século XIX, em salões, bailes,
circos ou teatros de países da América do Sul, como Brasil, Argentina, Uruguai,
Peru, Chile e Bolívia. No Brasil, ambas as danças estrearam na década de 1820
com a dançarina e atriz brasileira Estela Sezefreda (1810-1874), responsável por
apresentar praticamente todos os gêneros conhecidos de dança da época, incluindo
o fandango, a tirana, o miudinho, o bolero e o solo inglês.
A partir de 1833, foram publicados lundus pioneiros nas tipografias do editor
e poeta mulato Francisco de Paula Brito e de João Bartholomeu Klier,
clarinetista, alemão radicado no Rio, que abriu sua loja de música em 1831 –
antes de o flautista francês Pierre Laforge se tornar o primeiro grande
impressor de música da cidade. Alguns dos ex-músicos da Capela ou da Câmara
Imperial, como Gabriel Fernandes da Trindade e Cândido Inácio da Silva, aparecem
nos anúncios dos periódicos da época como compositores de lundus e modinhas
recém-impressos, oude músicas para teatro, nas então chamadas “farsas ornadas em
música”.
Antes de Xisto Bahia e Baiano, o perfil híbrido de cantor e ator cômico se
verificava em artistas como o também mulato Martinho Correa Vasques, baixo
buffo, dançarinoe ator cômico da Companhia Dramática de João Caetano, a
primeira formada unicamente por artistas brasileiros. Na década de 1840,
Martinho se tornou famoso por suas cenas cômico-musicais, como a ária da polca,
do miudinho, do mascate italiano e a do capitão mata-mouros, cujas melodias
chegaram a ser publicadas em partitura. Ele as apresentava nos teatros e nos
palcos improvisados das festas da corte, como a do Divino Espírito Santo,
realizada no Campo de Santana. Em 1868, seu irmão, o também cômico Francisco
Correa Vasques, estreou Orfeu na Roça, uma paródia da opereta Orfeu
nos infernos, de Jacques Offenbach. Na versão de Vasques para o clássico da
mitologia grega, a morte de Eurídice é substituída pelo sequestro de Brígida,
que fica felicíssima com a sua liberdade inesperada. O juiz, por sua vez, tenta
se aproveitar da situação ao manter Brígida perto de si e longe de Zeferino
(Orfeu). No final, o can-can francês é substituído por um fadinho
brasileiro.
A cultura e os valores europeus eram constantemente apropriados e
modificados. A mistura de dança, ladainha, canção, ópera e música instrumental,
ocorrida no século XIX – e fomentada por uma rede de teatros e divertimentos
populares, festividades sacro-profanas e pelo comércio nascente de partituras –
formou a base de onde surgiria a música popular brasileira.
Luiz Costa-Lima Netoé professor de música, compositor,
violonista e autor de A música experimental de Hermeto Pascoal e Grupo
(1981-1993): concepção e linguagem (Unirio, 1999).
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