Corria pelos engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia de que,
para o lado das serras, na região dos palmares, havia um refúgio. Um lugar onde
era possível viver fora do poder dos senhores de engenho e manter vivas
tradições africanas recriadas na América. Lá, uma nova sociedade era construída:
guerreiros, agricultores, comandantes de guerra, líderes religiosos e uma
linhagem real que determinava os rumos políticos e militares.
Aquelas povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam ser
desmontados e montados em outras regiões, como estratégia de fuga ou de busca
por melhores terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de palmares não era
tarefa fácil. Após fugir dos engenhos ou das vilas, era necessário trilhar
caminhos íngremes e fechados pela mata. Qualquer descuido poderia resultar em
recaptura ou morte, pois havia pessoas dedicadas especialmente à perseguição de
escravos fugitivos, como os capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram
chegar ao local, incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os
mocambos no início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada
pela invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de expulsão
desses estrangeiros (1645-1654).
Como era feito em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a vegetação que
deu o nome para os mocambos, fibras e palmito, além de produzir vinho e óleo.
Não viviam isolados da sociedade colonial, mas buscavam reagir ao escravismo
governando a si próprios.
Mas quem contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum
registro escrito por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós foram
documentos produzidos por representantes da Coroa portuguesa que governaram a
capitania de Pernambuco, e relatos de pessoas que lutaram contra os negros dos
mocambos durante o século XVII. Por causa disso e de uma interpretação
preconceituosa dos primeiros historiadores de Palmares, a sua história foi
contada do ponto de vista da destruição. Era a versão dos vencedores.
O principal meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa
portuguesa para pôr um fim em Palmares foi enviar expedições militares. Elas
deveriam encontrar o caminho dos mocambos e fazer o máximo de prisioneiros
possível. Os prisioneiros seriam devolvidos a seus antigos senhores ou vendidos
para fora da capitania, para que não retornassem aos mocambos. Poderiam render
um bom lucro, mas durante os confrontos muitos morriam ou ficavam feridos. Como
meio de se defender dos ataques, os habitantes de Palmares faziam emboscadas e
levantavam acampamento, mudando os mocambos de local.
Um dos primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A primeira
corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número de habitantes dos
mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de 1644, data do confronto
entre os negros amocambados e a expedição comandada por um holandês chamado
Rodolfo Baro. O próximo marco escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição
militar comandada pelo capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe
especialmente para fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um
grande ataque. Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram
feitos prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba.
Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números. Importava
mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A fase final de
Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida pela destruição dos
mocambos remanescentes. Mas o salto na história promovido por Nina Rodrigues não
dá conta de explicar a mudança da liderança do rei Gana Zumba para Zumbi. Muitas
coisas acontecerem nesse meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas localizações
dos mocambos, diferentes posicionamentos políticos.
Como a maioria decidiu contar essa história a partir da destruição, o foco
escolhido foi a morte de seu líder mais famoso. No final do século XVII, o
governo de Pernambuco, cansado das expedições militares que fracassavam na luta
contra os mocambos, decidiu investir no contrato de um tipo diferente de tropa:
as bandeiras paulistas. Liderados por Domingos Jorge Velho, os indígenas e
descentes de europeus que compunham essa tropa assinaram um contrato se
comprometendo a destruir os mocambos de Palmares. Em troca, receberiam
prisioneiros, terras e benefícios da Coroa, chamados de mercês.
Em 1694, os homens de Jorge Velho atacaram o mocambo principal de Palmares,
localizado no Outeiro do Barriga, juntamente com homens da capitania de
Pernambuco. Lá estavam Zumbi e seu exército, na capital conhecida como Macaco,
protegidos por uma cerca alta que rodeava o local, à espera do ataque. Para
rompê-la, os paulistas decidiram subir até o local carregando dois pesados
canhões. Após horas de combate entre os que estavam do lado de fora e do lado de
dentro da cerca, as tropas a serviço da Coroa conseguiram entrar em Macaco. Seu
principal objetivo era capturar ou matar Zumbi, para provar que Palmares havia
sido derrotado. Mas não o encontraram. Estaria ele morto? Teria escapado?
Os primeiros historiadores de Palmares acreditaram na versão de que Zumbi
havia se suicidado pulando de um penhasco. Teria preferido morrer assim a ser
capturado ou morto pelos inimigos. Posteriormente, foram encontrados documentos
que relatam a morte de Zumbi um ano depois.
Inconformado por não poder atestar a morte de Zumbi à Coroa e a todos que
viviam em Pernambuco, o governador da capitania, Caetano de Melo e Castro,
decidiu enviar mais uma tropa aos mocambos. Em 1695, um habitante de Palmares
que havia sido capturado anteriormente foi coagido a ajudar os homens a serviço
da Coroa, e informou onde Zumbi estava escondido. Em uma emboscada, o líder
palmarino foi capturado e morto. Sua cabeça foi exposta em Recife, para que
todos soubessem – principalmente os escravos – que o refúgio de Palmares estava
definitivamente destruído.
Quase todos os historiadores posteriores adotaram esses marcos cronológicos,
mas quantos outros episódios importantes ficaram de fora da história contada
pelos vencedores? Em 1678, após a expedição comandada por Fernão Carrilho, Gana
Zumba decidiu enviar representantes seus para negociar um tratado de paz com o
governo de Pernambuco. Sua embaixada era formada por 11 pessoas, entre elas seus
filhos e importantes líderes militares. Em Recife, a comitiva de Gana Zumba foi
recebida com a pompa e a circunstância dignas de uma negociação entre chefes de
Estado. Cartas e presentes foram trocados entre os governantes de Palmares e de
Pernambuco.
Gana Zumba aguardou em Palmares os resultados das negociações. O governador
de Pernambuco desejava que os mocambos fossem esvaziados e os escravos que lá
viviam fossem devolvidos a seus senhores. Já Gana Zumba esperava que os
palmarinos pudessem escolher um novo local para viver e que os nascidos nos
mocambos fossem considerados livres.
As condições foram acertadas entre as partes, e os habitantes de Palmares,
liderados por Gana Zumba, mudaram-se para um local chamado Cucaú. Porém uma
parte dos palmarinos foi contra o acordo. Liderados por Zumbi, decidiram
permanecer nos antigos mocambos e resistir aos ataques das novas expedições.
Outras tentativas de acordo de paz foram feitas com Zumbi, mas nenhuma obteve
sucesso. Algum tempo depois da mudança para Cucaú, Gana Zumba morreu,
provavelmente assassinado por seus opositores políticos. A nova povoação foi
então desfeita. Alguns retornaram a Palmares e outros foram feitos escravos
pelos senhores locais, sendo vendidos para fora de Pernambuco.
O acordo feito em 1678 comprova que os habitantes de Palmares estavam
organizados politicamente e que seu governo, com base em conhecimentos
acumulados na África e na América, soube conduzir uma negociação com os
representantes da Coroa portuguesa. A destruição de Palmares apaga uma história
de mais de meio século de organização social e resistência política.
Laura Perazza Mendes Nascimentoé autora da dissertação “O
serviço de armas nas guerras contra Palmares: expedições, soldados e mercês”
(Unicamp, 2013).
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