Entre os documentos das visitações inquisitoriais enviadas ao Nordeste
brasileiro no final do século XVI, vários dão pistas da religiosidade popular da
Colônia. Um senhor de escravos, cristão-novo, mandou Cristo à merda ao
acompanhar a procissão do Santíssimo Sacramento na Bahia seiscentista. Uma
cigana espanhola, em meio a um temporal nas ruas de Salvador, gritou: “bendito
sea el carajo de Cristo que mija sobre mí”. Outro gostava de colocar o crucifixo
embaixo da cama, para dar sorte, quando transava com a esposa – o que não deu
certo, pois a mulher era adúltera. Um senhor de escravos do Recôncavo Baiano
resolveu abrigar nas suas terras uma seita indígena meio tupinambá, meio
católica, e ainda se ajoelhava diante do ídolo de pedra que os índios cultuavam.
O chefão da seita dizia nada menos que era o verdadeiro papa e sua mulher, ou a
principal delas, ostentava o título de Santa Maria Mãe de Deus. Falando nisso, e
pulando para o século XVIII, Tereza de Jesus, cristã-nova pela metade, pois a
mãe era católica, disse que Santa Maria e Santa Esther eram a mesma coisa, assim
como Cristo e Moisés eram parecidos. Morava no Rio de Janeiro, morreu queimada
em Lisboa.
Onde estamos? Em alguma Babel religiosa? Não. No Brasil Colônia, onde a única
religião admitida era o catolicismo. Mas a Coroa portuguesa fez alguma coisa
para assegurar o triunfo do catolicismo no Brasil?
Ao menos tentou. Além das motivações comerciais, é sabido que um dos
principais objetivos da colonização era o de expandir o catolicismo no Novo
Mundo. Isto vale também para outras partes do império português, como os
enclaves no Oriente ou na África, embora nelas a presença portuguesa tenha sido
superficial, feitorial. No Brasil, onde os portugueses ocuparam o território e a
Coroa incentivou o povoamento, o esforço evangelizador foi mais saliente.
Não surpreende, porém, o abismo entre o catolicismo colonial e o projeto da
Igreja de Roma. Menos surpreendente ainda é que tenham grassado no Brasil
variadas formas de sincretismo religioso, mistura entre o catolicismo e crenças
nativas e africanas, para não falar das judaicas, trazidas pelos cristãos-novos
que fugiam da Inquisição, quando não vinham degredados por judaizar. Mesmo
assim, o Santo Ofício prendeu muitos e queimou alguns por heresia.
Em todo caso, quando falamos de religiosidade popular na Colônia, não convém
adotar uma sociologia rígida. O popular, no caso, diz mais respeito à
religiosidade cotidiana do que à posição social do indivíduo. Se o sincretismo
religioso prevaleceu desde o início, ele foi compartilhado, em vários graus, por
senhores e escravos, portugueses e naturais da Colônia, brancos, negros, índios,
mulatos, pardos, cafuzos, enfim, por toda a sociedade luso-brasileira.
Além disso, vale pôr em xeque dois estereótipos consagrados no senso comum. O
primeiro é a ideia de que o nosso sincretismo religioso se limitou à mistura do
catolicismo com as religiões africanas. O segundo é a ideia de que o catolicismo
fracassou no Brasil, aviltado pela mistura de religiões.
Sincretismo religioso colonial: o que foi isto? Um mix cultural de várias
faces e múltiplas combinações. Começou pela mistura do catolicismo com a
mitologia tupinambá, do que dá mostra a Santidade baiana de Jaguaripe. Nela
pontificava, sem trocadilho, o papa Antônio, índio educado pelos jesuítas, mas
com vocação de pajé. Homem que também dizia, em transe, que encarnava o
ancestral-mor dos tupis, Tamandaré, enquanto fumava o petim (tabaco) em um
cachimbo comprido. O próprio ídolo da seita tinha um nome que, apesar da língua,
era cristão: Tupanasu, grande deus, invenção jesuítica para nomear o deus
cristão em língua inteligível para os índios. O sincretismo fez sua estreia sob
a batuta dos jesuítas.
Sincretismo afro-brasileiro: nomeá-lo assim é dizer pouco. Isto porque o
catolicismo, antes de ser brasileiro, era português. Segundo, o catolicismo dos
portugueses não era exatamente o da Roma dos papas. Os portugueses do Brasil
eram mais dados à aventura do que à religião. Terceiro, porque nunca houve uma
África, senão várias. África bantu, África iorubá, para dizer o mínimo.
Na prática, as misturas foram extraordinárias. Um dos primeiros a enxergar o
sincretismo afro-brasileiro foi Nina Rodrigues, médico de profissão, etnólogo
por vocação. Sugeriu, no início do século XX, que os africanos cultuavam seus
deuses tradicionais misturados aos santos católicos. Ingenuidade. O etnólogo e
filho de santo Roger Bastide, francês, foi além e considerou tais cultos
originais. Interpretou a “religiosidade negra” como resistência à escravidão
ancorada em sobrevivências religiosas africanas. Ingenuidade também.
O sincretismo afro-brasileiro nem foi resistência, nem fingimento
acomodativo. Também não foi só afro-brasileiro, pois viscejou em Portugal. Na
Colônia, foi invenção construída por africanos, de várias origens, para lidar
com o sobrenatural em uma situação de diáspora. Situação colonial. Em alguns
casos, chegou-se a esboçar um protocandomblé, nas palavras de Luiz Mott,
referindo-se ao terreiro dirigido pela negra Josefa Maria, perto de Paracatu,
Minas Gerais, no século XVIII. Na escuridão da noite, escravos e forros se
reuniam para bailar a Dança da Tunda, Acontudá, ritual da nação courana,
originária do Daomé. No Rio de Janeiro também havia um calundu dirigido por uma
parda forra, Veríssima, onde todos dançavam ao som dos batuques. Quais orixás
baixavam nesses terreiros? Não faço a menor ideia. Os inquisidores, menos
ainda.
A própria palavra calundu, de origem bantu, consagrada no século XVII para
designar os cultos da senzala, foi invenção colonial para generalizar a
religiosidade negra. Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, escreveu sem
rodeios: “o que digo é que, nestas danças, Satã tem parte nelas”.
Falar em sincretismo afro-brasileiro, portanto, é dizer pouco. Como
interpretar as “bolsas de mandinga”, cobiçadas por protegerem seus portadores de
todos os males, além de facilitar amores, fechar o corpo e ganhar no jogo? Pois
bem, as bolsas tiveram origem no norte africano, entre os mandingas, povo
islamizado. Eram uns saquinhos, como sachês, que continham um verso do Alcorão
escrito em um pedaço de papel. A coisa se espalhou pela África, pelo Brasil e
Portugal e foi aumentando de tamanho. Passou a incluir ossinhos de mortos,
pedaços de pedra d’ara (altar cristão), cabelos, unhas... O sachê original virou
um bolsão de algodão cru repleto de elementos religiosos, vivos ou mortos.
Impossível conceituar este mélange, senão como resultado de um
intercurso cultural de diversos continentes.
O catolicismo fracassou? Só se adotarmos o modelo do Concílio de Trento. Não
é o caso dos historiadores. De sorte que, na verdade, o catolicismo irrigou toda
a religiosidade colonial. Esteve presente em algumas rezas do Acotundá mineiro,
na Santidade indígena da Bahia, no terreiro carioca da forra Veríssima, nas
bolsas de mandinga, nos calundus e catimbós, nas invenções de cristãos-novos que
misturavam Cristo e Moisés.
Uma evidência indiscutível é a crença de que as palavras eucarísticas tinham
poder de atração sexual ou, ao menos, de amansar maridos hostis. Hoc est
enim corpus meum – “este é o meu corpo”. Na Bíblia, consta que Jesus assim
consagrou o pão na última ceia, e nisto reside o mistério da transubstanciação.
É o corpo de Cristo que está na hóstia consagrada? Ou é um símbolo, uma
metáfora? O povo entendia este mistério de modo direto: se o corpo de Cristo
entrava na hóstia por meio daquelas palavras, o corpo do amado passava a ser de
quem proferisse a mesma frase. Mas havia um detalhe: era preciso dizê-las em
latim e no ato da cópula. Entre gemidos e gozos.
Outra evidência final: Madre Vitória da Encarnação, freira do convento baiano
de Santa Clara do desterro. Era tremendamente religiosa. Punha cinza na comida
para estragar o paladar. Carregava nas costas uma cruz pesada pelos corredores
do convento. Usava cilícios para flagelar o corpo. Esbofeteava-se. Um exemplo do
catolicismo colonial: sensível, barroco. Madre Vitória também dizia ter visões.
Dizia que visitava, à noite, as almas do Purgatório. Contava ainda que, algumas
vezes, viu o Diabo, que lhe aparecia na forma de um “molequinho negro”.
Catolicismo barroco, catolicismo escravista. O arcebispo da Bahia instruiu
processo para transformá-la em santa, ao menos beata. Não prosperou a ação do
arcebispo. O Brasil nunca teve santos. Nem santas.
Ronaldo Vainfasé professor da Universidade Federal
Fluminense e autor de A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil
Colonial (Companhia das Letras, 2010).
Diferenças ibéricas
Comparado à colonização espanhola, o apoio da Coroa à evangelização foi
pífio. Basta dizer que, até meados do século XVI, só havia um bispado no Brasil,
o da Bahia, criado em 1551, enquanto a vizinha América Espanhola possuía
dezenas. Qualquer indicador reforçaria esta constatação. No mundo
hispano-americano: presença expressiva de várias ordens religiosas,
universidades que formavam teólogos, tribunais do Santo Ofício, organização da
Igreja conforme o Concílio de Trento (1545-1563), bastião da Contra-Reforma. No
Brasil, apesar do esforço missionário dos jesuítas, os limites da pastoral
católica eram fortes. Além dos jesuítas, alguma ação dos franciscanos, sobretudo
na Amazônia; os beneditinos abrigaram filhos da elite colonial; padres
franceses missionaram nos sertões, patrocinados pela Propaganda Fide. As
irmandades leigas – vá lá – tiveram algum papel na rotina dos colonos – e até
dos escravos – sobretudo em Minas, onde a Coroa proibiu as ordens religiosas,
sabedora de que o ouro e os diamantes também despertavam cobiça nos homens de
Deus.
SAIBA MAIS
CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e
Inquisição no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
MOTT, Luiz. “Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e o calundu”. In:
MELLO e SOUZA, Laura de & NOVAIS, Fernando A. (orgs.). História da vida
privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.
155-220.
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