domingo, 4 de outubro de 2015

Te Contei, não ? - As aventuras de Hans Staden


Rabelais denunciou os exageros dos viajantes

As aventuras de Hans Staden


Hans Staden, um alemão que fora aprisionado pelos tupinambás no litoral fluminense, em 1554, depois de ter voltado para casa, escreveu, provavelmente, um dos primeiros best-seller sobre o Novo Mundo. Sua narrativa, tantas vezes editada entre nós, não só teve agora uma bem ilustrada nova impressão, como serviu de roteiro para um filme que ora ganha cartaz no Brasil inteiro.



A captura: imaginem ser capturado no Brasil do século 16 por um aborígine chamado Nhaepepô-açu ,"Panela Grande", e, pior ainda, ser dado em seguida de presente a um outro, de nome Ipirú-guaçu, o "Tubarão grande"! Nada de esperançoso, pois, aguardava o pobre Hanz Staden, um alemão do Hesse que, embarcado para cá, caíra aprisionado pelos tupinambás, no ano de 1554.

Não satisfeitos em ameaçar devorá-lo a qualquer instante, os seus captores, depois de terem-no levado para a aldeia deles em Ubatuba, arrastavam-no para que presenciasse as cerimônias antropofágicas que realizavam. Certa vez, carregaram-no até a aldeia de Tiquaripe, perto de Angra dos Reis, para ver um dos seus inimigos ter a cabeça esmagada pelo ibirapema, o tacape de execuções. Logo em seguida, assistiu os restos do bravo serem rapidamente deglutidos pela tribo inteira, embriagada previamente com licor de raízes de abatí.
Um livro incrível

Staden, que miraculosamente retornou ao Hesse, registrou seus tormentos de prisioneiro dos nativos num livro maravilhoso para ler: Viagens e aventuras no Brasil(Wahrhaftige Historia, editado em Marburg em 1557). Porém, ele não foi o primeiro alemão a pôr os pés no Brasil. Houve ainda um outro, um tal de Ulrich Schmidel, um lansquenete que, em 1540, com um grupo de aventureiros a serviço dos espanhóis, embrenhou-se inutilmente na Amazônia, atrás da lendária tribo de mulheres guerreiras (façanha contada na História verdadeira de uma viagem curiosa feita por Ulrico Shmidel, editada em Frankfurt, em 1567).

Interessa, porém, observar, no que toca ao livro de Staden, as precauções que ele tomou na Alemanha para que acreditassem nele. A Europa do século 16, o grande século das navegações, estava cansada de ler ou ouvir relatos eivados em mentiras e absurdos diversos.

O descrédito das narrativas de viagem. A tal ponto tinha chegado a coisa, que Rabelais, o grande satírico francês, fazendo mofa do livro do padre cosmógrafo André Thévet (Singularitez de la France Antarctique, 1558), decidiu-se inserir na sua obra-prima, dois capítulos denunciando, pelo riso, o disparate das visões mentirosas que alguns viajantes tiveram no inexistente País de Cetim. Criou, também, como símbolo desses mitômanos, um personagem-caricatura, o "Ouvi-dizer", que, apesar de ser um velho, corcunda e paralítico, tendo a língua esfacelada em sete pedaços, narrava, com um mapa-múndi aberto à sua frente, as suas impossíveis aventuras para uma multidão de crédulos. Eram histórias de unicórnios, de mantichoros com corpo de leão e cara humana, de cabeçudíssimos catoblepos de olhos venenosos, de hidras com sete cabeças, de onocrotalos que imitavam gritos de asno, de pégasos, e de tribos de seres com cabeças de pássaros, ou até mesmo com duas cabeças, de povos fabulosos que andavam apoiados nas mãos, com as pernas balançando no ar! (ver o livro V de Gargantua e Pantagruel, de 1564)

Querendo, pois, evitar ser chamado de embusteiro, Staden, além de banir do seu relato qualquer menção à zoologia fantástica, pediu a um conhecido seu do Hesse, um tal de Dryander, que assegurasse a veracidade do conteúdo do livro. O alemão, "ébrio de um sonho heróico e brutal", viera a dar com os costados no Brasil para satisfazer seu gosto pela aventura, para ver de perto as maravilhas que escutara na Europa sobre o Novo Mundo descoberto. Foi na sua segunda viagem ao Brasil (na primeira ele conheceu Pernambuco) que Staden naufragou nas costas do litoral fluminense. Por saber lidar com canhões, os portugueses, que o acolheram muito bem, promoveram-no a artilheiro do Forte de Bertioga.
Entre os tupinambás

Certo dia, num descuido seu, os tupinambás, inimigos dos lusos, o maniataram, dando início então ao seu calvário. Amarrado e transportado por mar na piroga indígena, Staden fez de tudo para convencer seus captores de que ele não era um peros, um português, mas sim um mair, um francês, portanto um aliado deles. Conseguiu pelo menos deixa-los na dúvida. Afinal, os índios podiam matar alguém amigo. A alvura do alemão e sua barba loira devem tê-lo ajudado, pois os tupinambás, provavelmente, nunca tinham visto um português brancarrão como ele. Staden atribuiu a sua sobrevivência às rezas, o tempo inteiro, feitas com redobrado fervor.


Cena antropofágica: mulheres da tribo retalham o morto


Os antropólogos, porém, conhecendo hoje melhor os rituais de antropofagia, lendo Staden, chegaram a outra conclusão. Não o abateram e o moquearam por que Staden pareceu-lhes um covarde, cuja carne era indigna de ser ingerida por um valente tupinambá. Não foi pois, o olhar de Deus que o salvou, mas o tremor que abalou o seu corpo e a sua voz.

O que impressiona o leitor, é como Staden conseguiu manter um excelente poder de observação em meio aos perigos em que se encontrava. Deve-se a ele termos um relato em primeira mão da vida dos indígenas, com quem partilhou hábitos e costumes, privando com os seus cheiros, humores, e impudores. Não se trata das observações, quase que de rigor científico, como as do genebrino Jean Lery em sua passagem pelo Brasil, quando por aqui esteve na França Antártica de Villegagnon, em 1557. Oportunidade em que, visitando algumas tabas e conversando com os nativos, ao redor da baia da Guanabara, coletou material e assunto. De volta ao Velho Mundo, Lery publicou um ensaio que é considerado como um dos mais soberbos levantamentos etnográficos do Brasil: o Viagem a terra do Brasil, La Rochelle, 1578. Staden, ao contrário, viveu oito meses em meio aos seus captores. Afinal, os tupinambás tinham-no transformado num Ché remimbaba indé, num animal doméstico, que seu dono, o já referido Tubarão Grande, conduzia amarrado como um cão para todos os lados.

Staden apela inutilmente por asilo


Angustia-se o leitor com a falta de solidariedade de alguns marinheiros franceses para com o pobre homem. Certa vez, o alemão chegou a abordar um barco ancorado bem próximo à praia para pedir asilo. O comandante, para desespero do fugitivo, mandou que se afastasse, porque não queria a inimizade dos índios. Se o acolhessem, disse, os tupinambás, magoados, não fariam mais escambo com ele. Mas, por fim, Staden conseguiu, numa outra oportunidade, um convés amigo que o levou de volta à Europa. O livro de Staden foi um sucesso, tendo conhecido várias tiragens. Talvez tenha sido o primeiro best-seller relatando uma aventura no Novo Mundo.
O primeiro best-seller do Novo Mundo

Zinca Wendt (Relatos quinhentistas sobre o Brasil, Berlim, 1993), demonstrou que o êxito da vendagem do livro de Staden , além das suas óbvias qualidades, e de transmitir ao leitor a permanente sensação de horror em vir-se a ser vítima do canibalismo, deveu-se largamente à mensagem religiosa que continha. O crente náufrago apareceu aos seus conterrâneos da Igreja Reformada, como alguém que escapara miraculosamente das garras do demônio, graças a sua fé protestante. Aliás, ao longo do livro, Staden reproduziu as orações e preces que fez aos céus para poder escapar aquele pesadelo. Portanto, a narrativa, também, serviu como uma poderosa arma na guerra travada ao longo do século 16, entre protestantes e católicos. A Nova Fé, derivada da rebeldia de Lutero, igualmente, era capaz de provocar milagres!

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