terça-feira, 30 de outubro de 2012

Crônica do Dia - Drogas: o que fazer? - Frei Betto

 

 
 
 
 
O tráfico de drogas no mundo movimenta, por ano, US$ 400 bilhões. Os dados são do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. O consumo de drogas mata, a cada ano, 200 mil pessoas.
O Brasil é, hoje, o segundo maior consumidor de cocaína, atrás apenas dos EUA. Dados de 2010 indicam que 27 milhões de brasileiros já consumiram o pó derivado da folha de coca. Entre 2004 e 2010, foram aprendidas, no país, 27 toneladas de cocaína.
Um debate se impõe: como lidar com a questão? O número de usuários e dependentes aumenta, o tráfico dissemina a violência nas cidades, as medidas repressivas não surtem efeito.
No Brasil, já conta com mais de 120 mil assinaturas o anteprojeto à mudança da Lei 11.343/2006, proposta pela Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia. O anteprojeto diferencia usuário e traficante. O usuário seria advertido, prestaria serviços à comunidade e, caso necessário, encaminhado a programas de reeducação. O traficante continuaria sendo punido.
O consumo cresce muito mais rápido que todas as medidas tomadas para coibi-lo. Encontrar a solução adequada não é fácil. A descriminalização do consumo me parece uma medida humanitária. Todo dependente químico é um doente e precisa ser tratado. Ainda que se mantenha a proibição das chamadas drogas pesadas, como estancar a disseminação do crack, mais barato e tão devastador?
A droga é um falso sucedâneo para quem carrega um buraco no peito. Esse buraco resulta do desamor e das frustrações frequentes numa sociedade tão competitiva. Uma cultura que se gaba de ter fechado o horizonte às utopias encurrala, sobretudo os jovens, em ambições muito mesquinhas: riqueza, fama e beleza.
Frei Betto é escritor, autor de ‘O vencedor’, romance sobre drogas

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Personalidades - Martinho da Vila

Martinho da Vila revê a revolução de Noel Rosa, aplaude o movimento negro e diz que foi censurado durante a ditadura


 Martinho da vila está de bem com a vida neste fim de tarde carioca. Acabou de gravar para a tevê uma demonstração de seu novo CD, Poeta da Cidade, de peças históricas de Noel Rosa (1910-1937) cantadas na companhia de seis vozes femininas. A sessão de samba de roda em volta do piano corre com a presença de algumas das cantoras, inclusive duas de suas filhas, Mart’nália e Analimar Ventapane. Circula por ali também Martinho Filho, coordenador da gravadora Biscoito Fino, que lança o disco do pai. Guarnecido de cervejas, gargalhadas e comida farta, o ambiente faz acreditar que a vida do cantor e compositor de 72 anos é igual à letra de seu primeiro sucesso nacional: na minha casa todo mundo é bamba/ todo mundo bebe, todo mundo samba.
Casa de Bamba estreou em 1968 no IV Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. “Sou filho dos festivais”, o músico sublinha um dado hoje pouco lembrado (“talvez porque era um samba, ou pelo meu tipo físico”). Estava em curso a cisão entre o que era rotulado como “MPB universitária” e o que não era, e Martinho foi desclassificado nas eliminatórias. Em seu primeiro LP, de 1969, usou o samba O Pequeno Burguês para comentar o cisma com a sutileza que lhe é peculiar: Felicidade, passei no vestibular/ mas a faculdade é particular/ livros tão caros, tanta taxa pra pagar/ meu dinheiro, muito raro,/ alguém teve que emprestar.
Martinho está ciente de que o embate entre músicos de origens sociais distintas governava com mão de ferro a tal MPB: “Alguns compositores foram catalogados como censurados, mas no duro todo mundo era censurado. O livro Eu Não Sou Cachorro, Não mostra isso”. Refere-se ao trabalho do historiador Paulo César de Araujo, de 2002, que do-cumentou o policiamento do regime militar sobre os artistas ditos “cafonas”, descartados como “alienados” pela MPB, mas que perturbavam a ditadura tanto quanto chicos e caetanos.
Nascido de pais lavradores na zona rural de Duas Barras (RJ), Martinho teve encontros e confrontos com a censura e os poderes constituídos. Aos 4 anos, migrou de Duas Barras para o subúrbio da Boca do Mato, na capital fluminense. “Foi uma mudança radical, do interior para a favela. A família Ferreira migrou porque leis trabalhistas não alcançavam o campo. Meu pai foi trabalhar numa fundição americana de ferro. Ele dizia: ‘Saí da roça para o inferno’. A fábrica parecia mesmo a casa do diabo.”
A favela tinha o nome de Serra dos Pretos Forros. “Era um lugar onde houve uma espécie de quilombo, uma comunidade de negros livres”, recorda. Em 1956, órfão de pai, integrou o Ministério da Guerra. Ocupou funções burocráticas, de escrevente, laboratorista e contador, até a patente de sargento. “Os sargentos eram todos janguistas, João Goulart sempre deu força aos militares de base. Quando veio o golpe, os sargentos eram malvistos. Na última semana de março (de 1964) foram todos desarmados.”
Permaneceu no Exército até 1969, e na maior parte desse intervalo compôs sambas-enredos sobre eventos da história do Brasil, primeiro para a escola Aprendizes da Boca do Mato. Era conhecido como Martinho da Boca do Mato, não da Vila Isabel (onde ingressaria em 1964 e onde faria uma coleção de oitavas, quintas e quartas colocações). Em 1974, aborreceu-se porque teve sua Tribo dos Carajás barrada na disputa interna da Unidos de Vila Isabel. “A ditadura começou a atuar indiretamente nas escolas, colocaram gente do sistema lá dentro. Só depois eu soube o que tinham dito à diretoria: ‘Não se pode falar de índio no Brasil’.” Estranhamente o homem branco chegou/ pra construir, pra progredir, pra desbravar/ e o índio cantou seu canto de guerra/ não se escravizou, mas está sumindo da face da Terra, dizia o samba publicado no mesmo ano, apenas no LP Canta, Canta, Minha Gente.
Antes, em 1972, excursionou pela primeira vez por Angola, experiência cujo impacto o também escritor Martinho narra no livro Kizombas, Andanças e Festanças (1992). “O primeiro show foi num reduto de negros, chamado N’Gola Cine. Por acaso era 7 de setembro, e eu, com espírito ainda militar, nacionalista, decidi falar sobre a Independência do Brasil. O teatro inteiro calou-se.” Angola era ainda uma colônia portuguesa, e ele foi advertido a não repetir o discurso nos shows seguintes.
De volta ao Brasil, tomou reprimenda equivalente ao declarar à imprensa local que havia uma revolução em curso pela libertação de Angola (consumada em 1975). “Ninguém da minha geração estudou sobre África. Estudávamos reis, rainhas, gregos, mas África nunca. Para nós, era um continente formado apenas por uma grande floresta, animais e negros que vieram escravizados para o Brasil. De repente me vi em África. Voltei para cá e comecei a falar que aqueles países iam ficar independentes.”
No início dos anos 1980, esteve no continente dos ancestrais com o projeto Canto Livre de Angola, uma comitiva de artistas brasileiros liderada pelo produtor Fernando Faro. Na volta, ficou “doidão”, por “tensão e excesso de birita”, segundo -suas palavras. “Fui internado, fiz sonoterapia por 15 dias. Poderia ter carteira de maluco. Fui estudar um pouco a história da loucura, cheguei até Freud. Antigamente era considerado um mal do inferno, os loucos tinham de resistir à tortura para melhorar. Hoje a loucura é mais entendida.”
Desde a década de 1960 era tido como comunista. “Fiquei visto como isso, mas não era”, diz, miudinho. Não chegou a ser preso ou maltratado, aqui ou na África. “Sou considerado em Angola por causa disso, eles precisavam de transparência e eu falei da luta deles no Brasil. E aqui a polícia repressora pensava que eu era um militante muito forte, que eu tinha respaldo. Acho que não me prenderam porque eu era muito popular. Na época, não tinha outro, nem Roberto Carlos”, avalia. “Para a ditadura, ser do movimento negro era mais perigoso que ser comunista.”
Isso significa que o manso cantor de Pra Que Dinheiro (1969), Segure Tudo (1971), Requenguela (1973), Disritmia (1974), Choro Chorão (1976) e Devagar, Devagarinho (1995) pertencia ao movimento negro? “Eu não gostava muito de movimentos. Abdias do Nascimento e Milton Gonçalves eram os mais combativos. Eu ficava no meu canto, fingindo que não estou fazendo nada…” Responsável pela popularização do partido alto, Martinho ficou à margem da turma que no início dos anos 1970 tentou forjar um black power à brasileira e foi reprimida pela ditadura. “Toni Tornado era radical. Eu não fazia discurso. Fazia coisas. Tem de ter de tudo, o radical, o pela paz, outro pela música, assim como Malcolm X era pela guerra e Martin Luther King era pela paz.”
Avalia que esse movimento teve grande importância política na formação do Brasil como é hoje. “Avançou aos poucos, com todos os segmentos lutando contra a ideia de que não havia racismo no Brasil, baseada na Casa Grande e Senzala do Gilberto Freyre.” Opina sobre o atual estágio da luta racial no País: “O racismo doente hoje não existe. Racismo é uma doença, achar que o negro não é nada. Mas isso são os mais velhos, a juventude não pensa mais assim. A classe dominante, embora não tenha essa doença, ainda é racista, só quer empregar negros em cargos subalternos. Levei um susto quando fui para os Estados Unidos. Todo mundo me prevenia ‘cuidado, os Estados Unidos são um país racista’, e pela primeira vez vi negros em cargos maiores, em limusines”.
O autor de O Pequeno Burguês afirma que a Universidade Zumbi dos Palmares, voltada prioritariamente a estudantes negros, é “uma das coisas mais importantes do Brasil”, e lamenta que a maioria dos brasileiros desconheça sua existência. “Há uns três anos, fui contratado pela Uniban de São Paulo para fazer propaganda. Pagaram muito bem, como é que pode?”, graceja.
Militante histórico do carnaval, Martinho defende a relevância cultural de enredos que na ditadura enfrentavam acusações de ser oficialescos e/ou pernósticos. “Falavam de independência, abolição. As escolas tiveram uma importância muito grande na integração contra o preconceito. Foram sempre discriminadas, e nunca discriminaram.” Vamos preparar lindos mamulengos/ pra comemorar a libertação, ecoavam os versos de Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade, sexto lugar no desfile de 1972. Afirmando-se um otimista (“as revoluções foram feitas pelos otimistas, não pelos conformistas”), Martinho destina discreto elogio ao Brasil atual: “Na política, não tivemos grandes exemplos, com exceção de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. E, agora, de Lula”.
Entrevista concluída, ele vibra com a paixão do momento, por Noel Rosa. Entre goles de cerveja, expõe à filha Mart’nália quão avançado era o compositor 80 anos atrás: “Ele tinha uma postura contra todos os preconceitos, sem falar e sem botar na música. Foi o primeiro a tratar do preconceito contra homossexuais, fez uma música (Mulato Bamba) e dedicou a Madame Satã. Os sambistas de morro eram discriminados, Noel ia lá, fazia parceria com eles, dormia com elas. O cara era branco, feio, e arranjava as mulheres que queria”. Está elogiando Noel Rosa, mas pelo avesso quase parece falar de… Martinho da Vila. •

Revista Carta Capital

Te Contei, não ? - Ecos da Escravidao


No anúncio de tevê feito para atrair turistas pelo governo da Bahia, o menino dizia que, quando crescesse, queria ser capoeirista como o pai. Por volta das 10 da noite de 21 de novembro do ano passado, Mestre Ninha, pai de Joel da Conceição Castro, chamou os filhos para dentro de casa, no instante em que a polícia fazia uma incursão pelo bairro onde mora a família, Nordeste de Amaralina, um dos mais violentos de Salvador. Segundos depois, o garoto foi atingido por uma bala perdida e morreu. Tinha 10 anos de idade.
A história do menino que não realizou seu sonho por não ter crescido, infelizmente, não é exceção. Como ele, cerca de outras 50 mil crianças, jovens e adultos, morrem vítimas de assassinato todos os anos no País, brancos e negros. Mas negros, como Joel, morrem em proporção muito maior. E o pior: a diferença tem aumentado nos últimos anos. Em 2002, foram assassinados 46% mais negros do que brancos. Em 2008, a porcentagem atingiu 103%. Ou, em outras palavras, para cada três mortos, dois tinham a pele escura. Quem maneja os dados preliminares de 2009 diz que a situação piorou ainda mais.
Não bastasse, os crescentes investimentos em segurança pública feita pelos estados e pela União parecem ter beneficiado, como de costume, a “elite branca”, como definiu o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo. Entre 2002 e 2008, o número de brancos assassinados caiu 22,3%. A morte de negros cresceu em proporção semelhante: os índices foram 20% maiores, em média. Em algumas unidades da federação, os números se aproximam de características de extermínio: na Paraíba, campeã dessa triste estatística, são mortos 1.083% (isso mesmo) mais negros do que brancos. Em Alagoas, 974% mais. E na Bahia, a terra do menino Joel, os assassinatos de negros superam em 439,8% os de brancos.
Até mesmo entre os suicidas os negros mortos superaram os brancos. Houve crescimento de 8,6% nos suicídios de cidadãos brancos, mas, entre os negros, os que tiraram a própria vida aumentaram 51,3%.
Os critérios utilizados para definir a “cor” das vítimas de violência são os mesmos do censo do IBGE. Nos atestados de óbito do Brasil, a partir de 1996, mais notadamente desde 2002, passaram a ser apontadas as características físicas dos mortos. Foram considerados no estudo todos os classificados como “pardos”, “pretos” e “negros” para chegar a esses números que assustam, em um País onde, como alguns insistem em dizer, principalmente nestes dias de carnaval, “não existe racismo”. Os passistas, puxadores de samba e operários das escolas de samba, que serão saudados como exemplos do “congraçamento de raças” são os mais propensos a perder a vida, sem confete, sem serpentina e em alguma esquina escura da periferia.
Surpreende que os indicadores tenham piorado mesmo com as políticas de ação afirmativa promovidas pelo governo Lula desde 2002 e com a melhora nos índices de Desenvolvimento Humano no Nordeste, região em que a violência mais cresceu, segundo os dados oficiais.
Obviamente, a desigualdade é um dos fatores a explicar esse abismo. Quanto mais um país enriquece e proporciona condições semelhantes a seus cidadãos, mais a criminalidade tende a diminuir. Mas ela não é o único fator a ser levado em conta. O Brasil experimentou um bom crescimento da economia nos últimos anos, associado a uma maior distribuição de renda. Mesmo assim, a melhora nos números de violência tem sido pontual, quando não cresce, a depender da localidade analisada. “A ineficácia das instituições de coerção também tem um peso importante no estado das coisas”, diz o cientista político José Maria Nóbrega, professor da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.
Sobre a incrível curva ascendente dos homicídios em seu estado natal, sobretudo no Maranhão, que já foi o mais tranquilo e em dez anos quadruplicou os assassinatos, Nóbrega é partidário da mesma teoria de vários de seus colegas estudiosos da violência: como ampliou-se o cerco nas maiores capitais do País – Rio e São Paulo, onde diminuíram os homicídios –, o foco da criminalidade deslocou-se para as cidades menores e para outras regiões. “A violência não migrou apenas do Sudeste para o Nordeste, mas das áreas metropolitanas para o interior. A Paraíba é uma exceção, porque ainda não se aplicaram políticas sérias contra o crime na capital.”
O resultado é que tanto em João Pessoa quanto em municípios menores os índices explodiram nos últimos anos. No Mapa da Violência, a capital paraibana aparece como a quarta onde os homicídios mais cresceram entre 1998 e 2008. Mas um município como Bayeux, na região metropolitana, com cerca de 95 mil habitantes, teve 84 assassinatos por 100 mil habitantes em 2009, um índice “avassalador”, segundo Nóbrega, comparado à média nacional, de 26,4 homicídios anuais.
Nas páginas policiais dos jornais, volta e meia aparecem notícias sobre a descoberta de grupos criminosos originários do Sul e Sudeste. Há duas semanas, a Polícia Federal desarticulou, em Salgueiro, Pernambuco, uma quadrilha ligada ao PCC paulista instalada em pleno sertão. Ao todo, 13 suspeitos foram presos. O esquema consistia em importar drogas de São Paulo e, a partir da pequena Salgueiro, com 52 mil habitantes, redistribuir para a Bahia, Pernambuco e Piauí.
“Os criminosos seguem táticas de guerrilha”, explica o sociólogo argentino Julio Jacobo Waiselfisz, que estuda a violência no Brasil há 15 anos e é o autor do Mapa da Violência. “Lembra-se daquela cena dos traficantes fugindo para o mato quando a polícia ocupou o Morro do Alemão? Então, o crime só parte para o confronto quando possui superioridade numérica. Quando tem minoria, submerge. Como em algumas capitais eles ficaram em situação de inferioridade, migraram para outras.”
Para o caso da mortandade dos negros mais especificamente, Waiselfisz levanta duas hipóteses. A primeira delas, compartilhada por diversos especialistas, é que acontece  com a segurança o mesmo ocorrido com a educação e a saúde: a privatização. Assim como quem possui condições financeiras vai a escolas particula-res, tem plano de saúde e por isso acesso a melhores hospitais, também se protege melhor do crime quem tem mais dinheiro. As guaritas, grades, carros blindados, os filhos com celular e os seguranças privados (em geral policiais fazendo bicos) protegem da violência as classes sociais mais altas e mais brancas.
Se essa é uma causa, digamos, privada, a outra razão é de responsabilidade direta do poder público.
“Tudo indica que as políticas que estamos desenvolvendo desde 2002 no setor de segurança, em muitos estados, se dirigem fundamentalmente aos setores mais abastados da sociedade”, critica o sociólogo. “Se a maioria dos negros é pobre, é óbvio que não serão beneficiados.”
Realmente, o problema no Brasil não parece ser a escassez de investimentos, mas a sua aplicação. No ano passado, os governos municipais investiram cerca de 2 bilhões de reais no setor, segundo cálculos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Renato Sérgio de Lima, secretário-geral do Fórum, reforça a tese da assimetria: “Os investimentos historicamente ficaram concentrados nas capitais e regiões metropolitanas. Com o crescimento das cidades do interior, era natural que os índices de violência aumentassem. Mas eles só atingiram esse patamar tão elevado porque os municípios não estavam preparados para o problema”.
O caso de Salvador corrobora a opinião de Waiselfisz. Uma análise das chamadas Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisp), criadas em 2009, leva à impressão de que se tem na capital baiana um verdadeiro apartheid por bairro, em termos da relação entre o número de policiais e habitantes. Enquanto os bairros onde moram os mais ricos, como a Barra e a Graça, possuem a proporção de um policial para cada 200 habitantes, bairros mais populares, como Liberdade e Pirajá, têm um policial para cada 2,1 mil habitantes.
Há algo mais grave, segundo Carlos Alberto da Costa Gomes, coordenador do Observatório de Violência da Bahia e professor de Desenvolvimento Urbano na Universidade de Salvador. “O policiamento na capital da Bahia é centrado em viaturas. Isso, na cidade oficial, que tem ruas, é eficiente. Mas, no que chamo de ‘cidade informal’, onde moram 70% dos soteropolitanos, as viaturas não chegam, o acesso é difícil a automóveis. Isto favorece o surgimento de enclaves propícios à criminalidade. E, é claro, a maioria dos que vivem neles é negra.”
Agora, em virtude do carnaval em Salvador, espanta-se Costa Gomes, o governo estadual prometeu deslocar 23 mil policiais para salvaguardar a folia. Sendo o efetivo total no estado de 33 mil policiais militares e 6 mil civis, não são poucos os que se perguntam: como fica o restante da sociedade? “Todo o efetivo policial vai ser colocado a serviço de algo no qual quem lucra é o empresário, a iniciativa privada”, afirma Gomes. “Não sou contra o carnaval, mas estamos mesmo adotando o modelo correto?”
Junta-se aos assassinatos em brigas de grupos rivais, dívidas de tráfico ou vinganças a ocorrência da violência policial, de que também são vítimas uma maioria de negros. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a proporção de pretos e pardos mortos pela polícia é maior do que na população em geral.
A socióloga Luiza Bairros, ministra da Igualdade Racial, opina que o problema começa na forma como os policiais são treinados para enxergar o negro. “A imagem utilizada para compor o criminoso é calcada na pessoa negra, mais especificamente no homem negro. O negro foi caracterizado como perigoso em estudos de criminologia e o lugar onde ele mora é visto como suspeito. É automaticamente enquadrado nas três possibilidades de construção da suspeição: lugar, características físicas e atitude. Ou seja, como o racismo institucional existe, acaba moldando o comportamento de boa parte da corporação.”
Em São Paulo, em abril do ano passado, o motoboy Eduardo Luís Pinheiro dos Santos, de 30 anos, foi espancado até a morte no 9º Batalhão da PM, no bairro da Casa Verde. Havia sido detido, ao lado de outros dois suspeitos, para investigação de um furto de bicicleta. Para ocultar o crime, os policiais abandonaram o corpo de Santos a duas quadras do batalhão. Depois, o levaram já morto a um hospital e registraram um boletim de ocorrência falso, como se o motoboy tivesse sido encontrado na rua inconsciente, mas ainda com vida. O Ministério Público denunciou 12 PMs pelo homicídio. A Ouvidoria da Polícia não descarta a possibilidade de as agressões terem sido motivadas por preconceito racial.
“O motoboy era um negro próximo do local onde uma bicicleta foi furtada, logo um suspeito em potencial para a polícia”, afirma o ouvidor da polícia, Luiz Gonzaga Dantas. “Infelizmente, muitos policiais ainda se portam como verdadeiros capitães do mato dos tempos da escravidão. O negro, pobre e marginalizado, é sempre visto como suspeito e rotineiramente é vítima de abordagens truculentas.”
Apenas no ano passado, a polícia paulista matou 495 indivíduos. O número é menor que a média registrada em 2009, quando 524 foram mortos em operações policiais, mas não há motivo para comemoração. “Trata-se de um índice de letalidade altíssimo, um dos maiores do mundo. E devemos recordar que, em 2008, o número de homicídios cometidos pela polícia era bem menor, 371”, comenta Dantas. “Não concluímos o levantamento, mas posso garantir que a grande maioria das vítimas tem o mesmo perfil: homem, jovem, negro e pobre.”
A ministra da Igualdade Racial lembra que sempre houve, dentro do movimento negro, muitos policiais que conseguem entender o racismo institucionalizado e que lutam contra ele. “Em todos os países onde isso mudou, como na Inglaterra, foi porque houve ação e organização dos policiais negros. Se o movimento é criado dentro da corporação tem maior legitimidade.”
Para Luiza Bairros, a política de cotas não foi suficiente para diminuir os índices de criminalidade entre a população negra porque atinge apenas a parcela que conseguiu concluir o ensino médio. E em termos populacionais, a parcela incapaz de concluí-lo é muito maior. “Existe um fenômeno nas cidades de diminuição das matrículas no ensino fundamental nos turnos vespertino e noturno. E as pessoas fora da escola são exatamente o contingente mais atingido pela criminalidade”, afirma a ministra. “Por isso, acho oportuno que o governo fortaleça agora o ensino médio e profissionalizante.”
É possível, no entanto, que para reduzir os homicídios de negros as políticas de ação afirmativa na área da educação precisem, de alguma forma, ser reproduzidas na segurança pública. Os especialistas criticam o foco na investigação do crime já ocorrido, em vez de, estrategicamente, analisar os locais que favorecem o seu surgimento e agir preventivamente. A solução mais consagrada atualmente é o policiamento comunitário, inspirado nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro. As UPPs estimulam a criação de laços com a comunidade do local protegido e aumentam a confiança dos moradores na polícia, o que pode diminuir a antiga relação de conflito com a população negra. É preciso também acabar com a sensação generalizada de impunidade.
A propósito, a bala que matou o menino negro Joel, concluiu em janeiro o inquérito feito pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, saiu da arma de um policial. A única punição para os nove envolvidos, até o momento, foi o afastamento de operações nas ruas. Passaram a fazer trabalhos internos na PM, mas podem voltar a “proteger” os baianos em 60 dias. Inclusive o soldado Eraldo Meneses Souza, autor do disparo.


* Colaboraram Manuca Ferreira, de Salvador, e Rodrigo Martins, de São Paulo

REvista Carta Capital

Te Contei, não ? A pré - história de Drummond




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Há um anjo protetor dos literatos novos, escreveu certa vez Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Ocupa-se em dar sumiço a textos juvenis para salvar autores do embaraço de se confrontar, anos depois, com a própria imaturidade. O que um dos maiores poetas da língua portuguesa deixou de prever foi a existência de um anjo protetor dos leitores, a operar atrás desse material perdido para colocá-lo nas mãos de um editor.
Um desconhecido (e único) volume escrito pelo moço Drummond chegou faz pouco tempo até Antonio Carlos Secchin, ensaísta e crítico literário dedicado a abastecer de raridades sua biblioteca em Copacabana, no Rio de Janeiro – um oásis que abriga 12 mil obras de literatura brasileira. Encadernadas numa firma de bairro, sob capa elegantemente azul, as páginas de aprendiz reuniam versos datilografados por uma jovem Dolores Dutra de Morais, já noiva do poeta de Itabira (MG). Esses mesmos 25 Poemas da Triste Alegria, assim intitulados, saem em meados deste mês, quase um século depois de concebidos, pela Cosac Naify. A edição é a nata de uma série de lançamentos e relançamentos que, desde o início de 2012, vem celebrando os 110 anos do escritor. Ele também receberá justíssima homenagem na 10ª Festa Literária Internacional de Paraty, programada para o começo de julho.
No meio do caminho que vai desde 1924, quando se deu a publicação artesanal, até os dias atuais, o tal volume único foi presenteado por Drummond ao amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade – e este o emprestou a uma terceira pessoa ou o devolveu ao poeta, segundo diferentes versões. Ao menos dois outros autores modernistas leram os poemas: Mário de Andrade, que enviou carta a Drummond com uma apreciação quase demolidora em 1926, e Manuel Bandeira, que se referiu a alguns em tom mais ameno numa crônica de 1958. Quem forneceu o exemplar a Secchin é outro bibliófilo, cuja identidade o crítico prefere manter em sigilo. “Gosto de dizer que livro raro não tem procedência. Tem destino”, brinca o estudioso, que jamais ouvira falar da obra até vê-la pela primeira vez. “O bibliófilo que descobre um livro desses, exemplar único, comprova que o paraíso existe, mas fica na Terra.”

PIOR COISA DO MUNDO
Inusitada por revelar a face extraviada do aprendiz de poeta, a obra carrega graça e valor adicionais por aquilo que ocupa seus espaços em branco: os comentários ao lado de cada poema feitos à mão pelo próprio Drummond, quando teve o volume novamente consigo em algum momento de 1937. Nas muitas linhas, que preenchem às vezes página inteira, ele ironiza o jovem que havia sido 13 anos antes. Mário de Andrade figura entre os mais citados nas anotações: “(O poema) Momento Feliz é a coisa pior deste mundo”, escreve o literato mineiro, concordando com a crítica do autor de Macunaíma, que ameaçara romper a amizade se aquilo fosse publicado. Mais adiante, ao reler versos de Convite Semanal, Quase Noturno e Ninguém Sabe, Drummond confessa sentir orgulho por ter abandonado a retórica, o penumbrismo (corrente literária fortemente intimista de inícios do século 20) “e outras covardias intelectuais”. Esforça-se para encontrar ali alguma “substância mais vivida do que literária”, e não acha.
No prefácio que redigiu para o lançamento da Cosac Naify, Secchin define Os 25 Poemas da Triste Alegria como um “quase livro de pré-poeta”, constituído de dois livros paralelos. Um é o do jovem e hesitante autor, antes de ser modernista. Outro, o do crítico de si mesmo. Ambos os ângulos podem ser contemplados pelo leitor nessa reedição, fac-similar. As imagens das páginas originais – que se espalham ao longo de todo o novo volume – foram fotografadas por Vicente de Mello, especialista em reproduzir obras de arte. A caligrafia pequena do escritor não deverá causar desconforto. A parte manuscrita é mantida, mas há também sua transcrição em letra de fôrma para que se tenha mais uma opção de leitura, explica o editor Milton Ohata. O livro inclui, ainda, textos de época assinados por Drummond e encontrados em arquivos mineiros, que ajudam a compreender o que ele pensava sobre poesia.
O poeta aprovaria tal inconfidência? “O método infalível para proscrever um livro juvenil é destruir os originais”, responde Secchin. “Se não o fez, e ainda por cima o repassou a outrem, quem sabe até para evitar tentações predatórias, é porque desejava preservá-lo.” Se é menor o valor literário, avalia, é muito maior o valor como documento da formação do autor. Desde a redescoberta do livro, a ideia da reedição agradou à família Drummond.

PEITO ABERTO
De trajetória clandestina, lembrado muito esparsamente pelo escritor e pelos amigos que viram esses primeiros versos, o novo volume de inéditos surpreenderá até seus leitores mais dedicados. Entre lembranças, entusiasmo e humor, poetas e críticos que há décadas acompanham a obra do mineiro receberam parte da edição pela internet para comentá-la livremente, a pedido de BRAVO!. “O fac-símile me levou de volta aos 20 anos, quando organizei uma coletânea de minhas poesias e mandei os originais a Drummond”, recorda-se a paranaense Josely Vianna Baptista, autora de Ar, Corpografia e do recente Roça Barroca.
Ela conta que o poeta lhe escreveu uma carta amistosa, “com aquela mesma letrinha inconfundível de 1937”, na qual citava versos seus dos quais não a salvou o anjo protetor dos literatos novos. “Vêm-me à cabeça as frases, entre gentis e travessas, em que ele dizia ser importante não ‘temer malambas nem remandiolas’, palavras que cometi no tal poema e que, revisitadas de próprio punho por Drummond, com o tempo passaram a me parecer brejeiramente irreverentes.” Sobre a correspondência entre Drummond e Mário de Andrade, observa: “Interlocução de primeira, sem suscetibilidades nem narcisismos feridos, séria, sincera e nada sisuda”.
Poeta drummondiano nascido no Rio, Armando Freitas Filho, autor de obras como A Mão Livre e Lar, garante que nada falaria sobre o livro oculto se Drummond estivesse vivo, “pois ele brigaria comigo”. Como teme que o fantasma do amigo venha lhe puxar o pé, ele diz o “óbvio e verdadeiro”: ninguém analisa melhor os poemas do que o próprio autor. “Ouso, contudo, afirmar que esse Drummond inicial esboçou em Ninguém Sabe a potência que irromperia em José, muitos anos depois. Que poeta aprendiz conseguiria tamanho feito, com tal excelência, sobre sua poética futura? Uma antevisão desse teor não é meramente inconsciente, mas fruto coeso de uma vocação irrepreensível e insuperável.”
Para os estudiosos, o valor do livro como documento de formação é o que mais sobressai. “Trata-se de uma coletânea fascinante”, comemora John Gledson, crítico literário inglês que traduz e estuda, além do poeta mineiro, o romancista carioca Machado de Assis. O que, naqueles versos juvenis, seria estranho ao Drummond mais conhecido? “A adesão a uma estética penumbrista, a influência avassaladora de Álvaro Moreyra, de Ronald de Carvalho e de Guilherme de Almeida, as repetições de certas palavras, como ‘ironia’ e ‘indiferença’, além das indefectíveis menções a paisagens crepusculares, jardins e estrelas”, responde Gledson.
Os inéditos também reforçam ângulos do poeta ainda pouco estudados. “Nenhum desses poemas terá feito qualquer falta à obra de Drummond, mas todos interessam por demonstrarem que o jovem escritor sabia bem o que fazer com a música e o ritmo das palavras”, afirma Alcides Villaça, crítico literário da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, da coletânea de ensaios Passos de Drummond.
Na opinião de Sérgio Alcides, crítico literário da Universidade Federal de Minas Gerais, o mais emocionante no livro são os comentários do Drummond maduro, ou nem tão maduro, mas já “feito”. “Há mistura de carinho e repulsa nesse reencontro consigo mesmo. O maior desconforto do poeta, ao reler suas tentativas antigas, é que elas são ‘meramente literárias’ (no mau sentido).” Os artigos de crítica incluídos na edição também merecem atenção, pois mostram que Drummond se expõe mais do que passaria a fazer depois da década de 1940, diz o professor da UFMG. “Os textos revelam a atenção que um jovem poeta de província dedicava ao contemporâneo, aos debates do seu tempo, com muita ânsia de participação, de tomada de posição. Ele escrevia de peito aberto, mas sem nenhuma leviandade – o que é muito bonito e raro numa pessoa assim tão jovem.”



Os poemas que acompanham esta reportagem são ­­­­fac-símiles­ da edição do autor (como A Sombra do Homem que Sorriu) ou transcrições que mantêm a grafia original (caso de Primavera nas Folhinhas e nos Jardins).
li-poema-drummond-1
PRIMAVERAS NAS FOLHINHAS E NOS JARDINS
O PERFUME DAS ROSAS ENTRA-ME PELO QUARTO,
NUMA LUFADA DE PRIMAVERA.
E EU FICO, DESVAIRADO, A SENTIR O PERFUME,
O PERFUME DAS ROSAS, PELO QUARTO...

NUMA LUFADA DE PRIMAVERA!

QUE BOM, LER OS POETAS SADÍOS,
E NÃO SABER DA LUA, DAS ESTRELLAS,
E NÃO SABER DO AMOR! E NÃO SABER DE TI!
(DE TI QUE ÉS PALLIDA E FEIA,
PALLIDAMENTE FEIA E MELANCOLICA.)
MAS APENAS SENTIR, ALLUCINANTE E FORTE,
O PERFUME DAS ROSAS, PELO QUARTO
NUMA LUFADA DE PRIMAVERA!

li-poema-drummond-2
VÊ COMO A AGUA SUSSURRA
VÊ COMO A AGUA SUSSURRA NO FUNDO DOS TANQUES ERMOS,
COMO A AGUA, INTIMAMENTE, CHÓRA.
E NA FACE DOS TANQUES ERMOS
BOIAM FLORES AZUES, GRANDES FLORES INDIFFERENTES.

A AGUA ESPADANA NO AR, EM FLORIDO REPUXO.
A ALEGRIA DA AGUA, SUBINDO
SOBRE A INDIFFERENÇA AZUL DAS GRANDES FLORES!
- VÊ O REPUXO CAHINDO
NOVAMENTE, SOBRE OS TANQUES ERMOS.

NOS JARDINS,
A IRONIA DA VIDA É FEITA DE BELLEZA.

(QUE RIDICULO PENSAMENTO...)

li-poema-drummond-3
A MULHER DO ELEVADOR
A QUE FICOU LÁ LONGE, NA GRANDE CIDADE...

A QUE EU VI APENAS UM MINUTO, UM MINUTO SOMENTE,
NO ELEVADOR QUE SUBIA.

COM QUE SAUDADE INEDITA EU ME LEMBRO
DA QUE NÃO FOI NEM UMA SOMBRA, UMA SOMBRA FUGAZ,
NO MEU DESTINO.

DA QUE FICOU, SORRINDO, COM UM POUCO DE MIM,
COM UM POUCO DO MEU SER ANONYMO E VULGAR,
A MILHARES DE KILOMETROS, NA GRANDE CIDADE...

Josélia Aguiar é jornalista e doutoranda em história. Edita o blog Livros Etc. na Folha.com.

O Livro: Os 25 Poemas da Triste Alegria, de Carlos ­Drummond de Andrade. Editora Cosac Naify, 255 páginas, R$ 79,90.


REvista Bravo

Resenhando - O culpado é sempre o escritor



Por Luiz Antonio Aguiar*

Imagine só…

O Detetive-Gênio chega à cena do crime… Com aquele nariz empinado de quem se acha o máximo (e é mesmo, sem precisar que ninguém o diga), passa uma olhada de relance pelo ambiente e fala: “O assassino é um joalheiro, altura mediana, mais para gordo e careca, e o nome dele é Fulano de Coisaetal, que mora na Rua Tal e Coisa, número…”
E acabava a história.
Ia ter graça?
Nenhuma.
É por isso que, nas histórias de detetive, existe a figura do sidekick.
É difícil traduzir com precisão o termo sidekick. É aquele personagem cuja função é ficar colado no detetive, fazendo perguntas. Daí, a genialidade do detetive é traduzida para o leitor numa espécie de passo a passo, que nada mais é do que a exposição das pistas – cujo olhar privilegiado do detetive identifica como relevantes – e dos raciocínios que o levaram a desvendar o mistério e descobrir o culpado.
Notem que o detetive, sem superpoderes, é um indivíduo com habilidades excepcionais. Geralmente, tem notável poder de observação, e uma capacidade dedutiva de deixar qualquer um boquiaberto. Como, ainda por cima, por vezes o detetive se diverte em esnobar o sidekick, que é também seu amigo e parceiro constante de investigações, mostrando o quanto seu cérebro é brilhante, o desvendamento do mistério se estende por páginas, capítulos, e somente aos poucos a história é resolvida.  Esse e outros truques, criados por Poe, fizeram dele o grande inventor da moderna história policial.
Moderna por quê?
Porque sempre existiram crimes, na Literatura, que precisavam ser desvendados. Mas, nas histórias modernas, cultiva-se o suspense e o mistério, ou seja, a investigação. E nessa trama, há um protagonista, o detetive brilhante, excêntrico, vaidoso. Poe criou o modelo de detetive nesses moldes, Auguste Dupin. E, além disso, escalou um  sidekick  (um anônimo bió-grafo de Dupin) para que trabalhassem em dupla de maneira a se complementarem. Cada qual representa seu papel.
A partir daí, desenrola-se todo um jogo de disfarces, um desafio entre o escritor (que dissimula, camufla as pistas e o assassino, embora esteja obrigado a passá-las bem debaixo do nariz do leitor) e o leitor, que procura desvendar o crime antes da cena final, quando o detetive mostra o que era pista, o que era enganação, e aponta o culpado e como chegou a essa conclusão. Essa dissimulação das pistas é outra grande inovação de Poe.
Poe chega ao requinte de compor todo um mistério em torno desse artifício de composição, no conto A Carta Roubada. Nele, Auguste Dupin recupera uma carta cujo roubo pode colocar a França em grave crise política. O ladrão a escondera deixando-a, com aparente displicência, à vista de todos, como se não fosse nada de mais. É o segredo de muitas histórias policiais depois de Poe: fazer o leitor ver, sem enxergar; ou sem distinguir o que vê.
Assim, o grande culpado é sempre o escritor. É ele quem cria a trama, o enredo e a maneira como vai contar a história, de modo a extrair o maior efeito. Ou seja, com o propósito de intrigar progressivamente seu leitor.
Edgar Allan Poe dava tanta importância a essa necessidade do jogo de cena, do efeito, que expôs isso no ensaio A Filosofia da Composição, da década de 1840. Nele, defende que o escritor deve deliberar com método e malícia sobre os ingredientes que utilizará para compor sua obra. Por exemplo, em seu famosíssimo poema O Corvo,  em que um angustiado homem insone recebe a visita de um pássaro agourento, Poe pensou muito até decidir qual ave escolher para aquele sombrio papel. Decidiu que o melhor efeito seria obtido pondo um corvo em cena.
Poe escreveu três histórias estreladas por Auguste Dupin: Os Assassinatos da Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada, todas nessa mesma década de 1840. No entanto, apesar das inovações que trouxe à novela policial, ele é mais conhecido pelos seus contos de terror. E também nesse gênero foi um inovador. Em quase todos seus contos usa um narrador em primeira pessoa, ou seja, um personagem que, ao mesmo tempo, nos conta a história e participa dela. E é quem sofre os impactos da experiência aterradora, a qual está no centro da história. Quando lemos o relato desse personagem, ficamos impedidos de distinguir se alguém nos conta uma experiência sobrenatural que o levou à loucura, ou se é um louco cuja narrativa foi criada por seus delírios.
Ou seja, é a incerteza levada ao extremo, que faz que questionemos nossa própria razão e nossa convicção do que é ou não realidade. Assim, Poe é também o inventor do terror psicológico. É uma vertente bastante diferente do terror europeu, da época (os Góticos Românticos) que explorava mais acentuadamente fantasmas e monstros- – como o Drácula e o Frankenstein. E ele tem contos exemplares, sempre citados como os melhores do gênero, como O Gato Preto, O Coração Delator e O Barril de Amontillado, entre outros.
O poder aterrador dos contos de Poe, mesmo sem monstruosidades (a não ser em A Queda da Casa de Usher, que nos traz uma morta-viva), bate lá no fundo de todos nós. É como aqueles pesadelos que temos, nos quais tentamos escapar de algo que nos persegue, mas que não conseguimos enxergar… Ou melhor, é quando um pesadelo desses é interpretado à luz da psicanálise, para nos informar que todas as criaturas que aparecem no sonho são versões de nós mesmos; e todos os sentimentos e sensações experimentadas ali estão dentro de nós. Como que ocultas, à espreita, em nosso íntimo. Poe explora em seus leitores um de nossos maiores medos – o de perdermos a noção da realidade.
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, EUA, em 1809, e morreu em 1849. Escreveu uma grande quantidade de contos, algumas novelas, poemas e textos de crítica literária, mas nunca obteve pagamento à altura da sua obra. Isso apesar de O Corvo ter sido republicado em vários países. Órfão desde pequeno, criado por pais adotivos, atormentado pelo alcoolismo desde a adolescência, teve uma vida de poucos momentos de felicidade. Um desses foi seu casamento com a prima Virgínia. Infelizmente, ela morreu de tuberculose, poucos anos depois de casados – por falta de recursos, não recebeu tratamento médico adequado. Por toda a sua vida, Poe passou por muitas privações e morreu praticamente abandonado e na penúria.
O reconhecimento que lhe faltou em sua curta vida, ele o obteve aos poucos, depois da sua morte, até se tornar, por sua inventividade, o autor preferido de inúmeros grandes escritores, que reutilizam os recursos que criou. Nosso Machado de Assis, em cuja obra se podem notar algumas influências das técnicas de Poe – principalmente na utilização do narrador-personagem de quem se deve desconfiar – foi o primeiro a traduzir O Corvo para o português. Poucos autores tiveram sua obra adaptada em tantas versões para o cinema como Poe. Atores de peso – como Boris Karloff e Vincent Price, nas décadas de 1950 e 1960 – se especializaram em interpretar seus atormentados personagens.
Não há, enfim, um só estudioso de Literatura, ou leitor aficionado dos gêneros terror e policial que não considerem Poe um gênio, e como um de seus autores favoritos. Dessa maneira, sua obra continua a gerar descendentes e a intrigar a todos que buscam na Literatura janelas (secretas?) para se observar os meandros mais sutis, ou mais escondidos, do espírito humano. •



* Luiz Antonio Aguiar é escritor no gênero terror, autor de Sonetos nas Trevas (Eldebra), organizador de Góticos I – Contos clássicos de terror (Melhoramentos) e Era uma Vez à Meia-Noite (Galera). Mestre em Literatura Brasileira, palestrante, orientador de oficinas de criação literária e leitura e professor do curso de qualificação em Literatura SME-RJ/FNLIJ para professores de salas de leitura

Revista Carta Capital

Resenhando - O Brasil do quiproquó



Antologia exibe e analisa pioneiros do humor

Livro reúne nove comédias do século 19 escritas por nomes como Machado de Assis, José de Alencar e Martins Pena

Se num grupo mais afeito ao baixo cômico alinham-se Pena e Macedo, em outra frente, de comédia de viés mais moralizante, aferram-se Alencar e Machado
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Pioneiros do humor nacional. Com "Antologia do Teatro Brasileiro (séc. XIX) - Comédia", a editora Companhia das Letras entra firme em terreno que vinha sendo ocupado, sem concorrência, pelos selos editoriais da Martins Fontes: a dramaturgia brasileira do século 19.
Em um primeiro volume da série, organizado por Alexandre Mate e Pedro Moritz Schwarcz, contempla-se o gênero da comédia. O livro reúne nove peças de sete autores, numa amostra do que de mais significativo os comediógrafos do oitocentos pátrio já produziram.
Além dos textos de Martins Pena (1815 -1848), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), José de Alencar (1829 - 1877), Machado de Assis (1839-1908), França Júnior (1838-1890), Artur Azevedo (1855-1908) e Qorpo-Santo (1829-1883), o volume traz excelente introdução de João Roberto Faria, um dos especialistas mais autorizados no assunto em questão.
Faria é o legítimo herdeiro do saudoso crítico e ensaísta Décio de Almeida Prado nos estudos da literatura dramática do nosso país, principalmente daquela produzida pelas escolas romântica e realista, que predominaram no período enfocado.
O estudioso descreve e analisa em minúcia as peças publicadas e as contextualiza na obra de seus autores, comparando-as com o seus outros textos dramáticos relevantes. Ele também explicita a tensão entre autores que utilizaram em suas comédias expedientes populares e outros que os evitaram.
Se num grupo de comediantes mais afeitos ao baixo cômico alinham-se Pena, Macedo, França Júnior e Azevedo, em outra frente, que favorece uma comédia de viés mais moralizante, aferram-se Alencar e Machado.
Como um híbrido dessas duas tendências, Qorpo-Santo combina pulsões moralistas com recursos estilísticos da farsa e da paródia.
SÁTIRA DE COSTUMES
Assim, por exemplo, as duas peças de Pena incluídas, "O Noviço" e "Os Ciúmes de um Pedestre", são representativas da combinação de sátira de costumes com elementos farsescos que caracteriza a produção desse desbravador do cômico nacional.
O mesmo se aplica a "O Primo da Califórnia", de Macedo, e "Maldita Parentela" de França Júnior.
De outro lado, "Verso e Reverso", primeira das comédias de Alencar, exemplifica as intenções edificantes do autor, sintetizadas na proposta de com ela "fazer rir, sem fazer corar".
"Caminho da Porta", de Machado, é exemplar do modelo francês de provérbios que o inspirava, gerador do que Faria nomeia de "comicidade de linguagem".
No caso das duas peças de Qorpo-Santo, "Um Credor da Fazenda Nacional" e "O Marinheiro Escritor", ressaltam as características ambíguas do autor.
Descoberto só nos anos 1960, ele mira o realismo de Alencar, mas opera com as ferramentas de Pena. De fato, escreve para o futuro e é o que mais dialoga com o teatro contemporâneo.

ANTOLOGIA DO TEATRO BRASILEIRO (SÉCULO XIX) - COMÉDIA

ORGANIZAÇÃO Pedro Moritz Schwarcz e Alexandre Mate

EDITORA Companhia das Letras

Jornal Folha de São Paulo

Crônica do Dia - Será que alguém vai em cana ?


                                    JOÃO UBALDO RIBEIRO

Ao que parece, estamos vivendo um momento histórico sem precedentes. Acostumados a ver a ladroagem, a trapaça, o enriquecimento ilícito, a falcatrua, o abuso de poder, o tráfico de influência, a irresponsabilidade, a ausência de espírito público e tantos outros vícios transformados em regra na nossa vida pública, sem que nunca os muitos denunciados sejam punidos ou sofram a não ser contratempos menores, é natural que estranhemos as condenações de que estão sendo alvo os réus do mensalão. Somos hoje um país de Tomés, o bom apóstolo que quis ver para crer.
Eu, por exemplo, quero. As condenações são um passo cuja relevância vai bem além das decisões judiciais. O que ocorrerá depois delas depende ainda de muita coisa. Não me refiro a firulas processuais, das quais o Brasil parece ser o recordista mundial, a ponto de, segundo li em algum lugar, já haver quem cogite dar entrada em algum recurso exótico, envolvendo decisões do Supremo no caso do mensalão. Ignoro se é verdade, ou mesmo se é possível, mas todos sabemos que isso ocorre no Brasil e um observador mais nervoso pode chegar a temer que algum legislador capitaneie a criação do Supremíssimo Tribunal Federal, para examinar em última instância as sentenças que hoje são de última instância.
Descontada essa questão, creio que cabe aos cidadãos prestar sua essencial colaboração. Sem ela, condenações ou não, pouco mudará. É muito cedo para que se esperem grandes mudanças, a curto prazo. Mas não é cedo para tomarmos consciência do que está acontecendo e do seu potencial, para aproveitar a chance de parar de reclamar em vão e passar a fazer alguma coisa, mudar de atitude. Como sempre repetindo a verdade, que às vezes esquecemos, de que os governantes, os políticos, os administradores públicos e os poderosos em geral não são marcianos, mas nascidos e criados aqui, é preciso que vejamos se não propiciamos a eles, por comodismo ou resignação indevida, um ambiente confortavelmente propício à sua ação.
Vamos lembrar, por exemplo, os preconceitos que manifestamos sem querer, automaticamente. Os jornalistas também não são marcianos, somos nós mesmos, só que divulgando e comentando as notícias. E aí é só lembrar por exemplo, que a notícia sobre quatro delinquentes juvenis apanhados em delito na zona sul carioca provavelmente se referirá a “quatro jovens”, deixando entrever compreensão, enquanto notícia igual, envolvendo quatro delinquentes do mesmo tipo, mas pobres e desclassificados, geralmente menciona “quatro menores”, já antecipando sua punição.
Assim como usamos eufemismos nessa e em muitas outras circunstâncias, vamos reconhecer que fazemos o equivalente em relação aos homens públicos e raramente repudiamos o político que sabemos ser ladrão. Pelo contrário, somos compreensivos, fazemos folclore em torno dele, damos risada de sua ladinice, manifestamos não tão relutante admiração pelo seu talento, criamos e figura jovial e simpática do “rouba, mas faz”, não achamos nada de mais em se ser visto na companhia dele. E o reelegemos, o que é bem mais importante.
Nós hierarquizamos pelo avesso o furto do dinheiro público. A julgar pelo que poderíamos chamar de nossa postura coletiva, meter o gadanho, por qualquer meio, no patrimônio público é o menos grave de todos os furtos. Ainda agimos como se o dinheiro público caísse do céu e, portanto, furtá-lo não prejudica ninguém. Mas é claro que, tão logo paramos para pensar, somos levados a concluir que o furto que atinge toda a coletividade é mais grave, não pode deixar de ser o mais grave e, por consequência, o que mais séria punição merece e o que maior repulsa justifica.
A sociedade tem de encarar o desvio de dinheiro público, em qualquer forma, com tolerância zero. Concretizá-la inteiramente é talvez impossível, considerando-se a famosa natureza humana. Mas é possível tê-la sempre em mente e aplicá-la sempre que se oferecer a ocasião. Acho que ninguém, a não ser os beneficiários dos desmandos, discorda de tolerância zero para quem nos rouba, nos condena ao atraso e causa tanta miséria e infelicidade. Ou seja, devemos ter esses inimigos públicos em conta inferior à de qualquer vagabundo ou ladrão de quintal. Este, além de roubar pouco e talvez nunca ter conhecido outro horizonte na vida, não achincalha as instituições, não debocha da lei e da justiça e não exibe cinicamente uma fortuna que todos sabem que não ganhou honestamente. Chega de eufemismos e de reverência indevida, o nome certo é ladrão e o nome do ato é furto, mesmo que venha sob a alcunha artística de peculato ou qualquer outra.
O quadro mudará, com as condenações? Depende. Se não houver cadeia, não muda e talvez piore. E não cadeia com açúcar, como já se prevê, serviços comunitários, essas coisas também eufemísticas. Cadeia mesmo, com grades e, se possível, a fotografia de pelo menos um dos criminosos lá dentro. Não se trata nem de ódio, nem de vontade de vingança, nem de nada passional. É que, se não houver cadeia, ninguém vai notar punição nenhuma, até porque, em última análise, não terá havido punição. Se os condenados continuarem a circular no bem-bom, sem que nada de realmente grave perturbe suas vidas, isto será, com justa razão, percebido como mais uma prova de que só quem vai para a cadeia é pobre e que nada cola nos poderosos, nem mesmo a condenação pelo Supremo Tribunal Federal. Abatimento moral e depressão não valem, já são filme visto. E em breve saberemos se o resultado da epopeia judicial que estamos testemunhando não acabará parte desse mesmo filme.

Te Contei, não ? - Lobato no banco dos réus


Após dois pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) enviados ao Ministério da Educação (MEC), um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) e dois anos de indefinição, será especificada a distribuição para escolas públicas do livro “Caçadas de Pedrinho” (1933), de Monteiro Lobato. A polêmica sobre o conteúdo racista atribuído à obra, em discussão desde 2010, será debatida em uma audiência de conciliação convocada pelo ministro Luiz Fux, terça-feira, dia 11, no STF.

A partir da decisão da Justiça, notas explicativas poderão ser incluídas nas novas edições do livro, e o MEC deverá promover a capacitação de professores a fim de sistematizar a abordagem da questão racial na educação básica. A denúncia de trechos depreciativos contra os negros, principalmente em relação à personagem Tia Nastácia (como “Lá é isso é — resmungou a preta, pendurando o beiço”), foi feita pelo técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 2010. De acordo com a avaliação de Costa, o livro incita o preconceito racial e não poderia ser financiado e distribuído pelo Programa Nacional Biblioteca Escola (PNBE), como foi feito nos editais de 1998 e 2003.

— É como se o governo financiasse a ideologia da obra. O uso do livro da maneira como se dá nas escolas é inconstitucional — diz Costa Neto ao referir-se ao preconceito racial, criminalizado pela Constituição de 1988.

A discussão sobre a discriminação contra os negros na obra do autor considerado o pai da literatura infantojuvenil brasileira traz à tona questionamentos sobre os limites do politicamente correto nas narrativas, além de provocar reflexões sobre como a obra de Lobato pode ser interpretada nos dias de hoje. A abordagem nas escolas de conceitos, tais como o racismo, que aparecem não somente na obra dele, mas na de outros autores como Lima Barreto e Aluísio Azevedo, também voltam ao debate com a audiência do STF.


Debate suscita releituras da obra do autor

Curadora da obra de Lobato e responsável pela edição dos livros do autor, publicados pela Globo Livros, Márcia Camargos defende que a interpretação racista do texto se contrapõe às intenções do escritor.

— Lobato sempre prezou pela educação infantil e por isso construiu uma obra tão vasta. Antes de as crianças se confrontarem com o preconceito, já censuramos o pensamento delas. Acho que aqui a questão é mais profunda do que colocar o Lobato contra a parede. A pergunta é: que tipo de adultos queremos criar? — indaga Márcia.

O questionamento proposto por Márcia encontra eco na reflexão de Ilan Brenman, autor de “A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil” (Aletria), entre outros títulos. De acordo com Brenman, a tentativa de fazer com que as histórias se transformem em um reflexo do mundo politicamente correto idealizado pelas experiências sociais dos adultos apenas reprime o pensamento crítico infantil.

— Nós problematizamos a questão antes que a criança, por ela mesma, consiga enxergar como uma temática social. Os adultos são incorretos, temos medos, paixões e preconceitos, assim como os pequenos. Acredito que a literatura seja um reflexo da complexidade desses sentimentos, e Lobato foi honesto a isso e ao seu tempo. Devemos provocar a criança, fazer com que ela reflita, e não dar a resposta pronta, pasteurizada — afirma ele, ao alertar que a mudança de “Caçadas”, abriria um precedente para que a obra de escritores como Aluísio Azevedo e Castro Alves sejam avaliadas.

A questão da formação dos professores, um dos pontos do processo, é o que mais preocupa a especialista em formação do leitor e literatura infantil Regina Zilberman.

— Os professores deveriam ser capacitados para debater não só a temática racista, mas a deficiência física, visual e outras questões da sociedade — alerta Regina.

Apesar do estigma racista que poderá marcar os livros e o próprio Lobato, Márcia afirma que o debate tem o seu lado bom. Para ela, este é um momento oportuno para que a crítica literária reflita sobre os múltiplos aspectos sociais da obra lobatiana.

— No fundo, este debate é pertinente porque nos dá a oportunidade de enxergarmos um pouco além do racismo e de outros preconceitos e compreendermos a dimensão do universo criado por ele — reflete Márcia.

Caderno Prosa / Jornal O Globo