quinta-feira, 31 de maio de 2012

Crônica do Dia - O mau convívio entre internet e privacidade



Privacidade e internet são incompatíveis. Quanto mais fácil for trocar arquivos (texto, imagem, som) por um meio rápido e de capacidade incomensurável de armazenamento, mais devassadas estarão pessoas, empresas, instituições em geral. E quanto mais se tomar consciência desta realidade melhor para, comrapidez, se tomar precauções. De todos os tipos, no plano pessoal, institucional, onde for.

É o preço a pagar pelas vantagens desta revolução histórica nos meios de comunicação, capaz de rivalizar em importância com o feito de Gutemberg, a pedra fundamental da mídia impressa.

Um dos exemplos recentes, no Brasil, do outro lado desta incrível ferramenta, foi o roubo de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann, por hackers fora de Rio e São Paulo. Ficou evidente que não é necessário ser um profissional de refinada técnica e experiência para ter êxito em invasões digitais da privacidade alheia.

O assunto preocupa legisladores, governantes e mesmo as próprias empresas do setor, alvos constantes de investigações e inquéritos - todos necessários, ressalte-se. Um dos casos em tramitação, de interesse geral, envolve o Google, o Poder Judiciário e agências públicas em alguns países.

O sistema de operação do Google, como vários outros, rastreia os hábitos de navegação dos internautas. Em geral, as suspeitas caem sobre o uso dessas informações, sem o conhecimento do dono dos dados.

Mas um outro sério foco de problemas tem sido o Google Street, eficiente serviço de tomada de imagens, por vários ângulos, conjugada com GPS, nas principais vias das maiores cidades do mundo. O sistema funciona acoplado ao Google Maps, pelo qual é possível localizar endereços e vê-los em mapas, fotos de satélite, com zoom, observá-los dos mais diversos ângulos a partir das tomadas feitas para o Google Street. Como os
sistemas falam entre si, pode-se enquadrar a portaria de um prédio ou sobrevoá-lo com registros feitos de satélite pelo Google Earth.

Fascinante, útil, mas também perigoso para a privacidade geral, devido à forma como os registros são feitos. Reportagem publicada no início da semana passada no "New York Times" revela que, na Alemanha, um funcionário do setor do governo responsável pela proteção da informação conseguiu ter acesso a uma amostra do que os esquipamentos colocados pelo Google sobre carros captam quando transitam pelas cidades: fragmentos de e-mails, fotos, senhas, conteúdos de redes sociais, sites etc.

Amazon, Facebook, Apple também armazenam montanhas de dados das pessoas. O que fazem com eles? O Google está sob pressão na Europa e nos Estados Unidos, e não apenas devido à invasão de privacidade. Há demandas na Justiça sobre o desrespeito da empresa aos direitos autorais.

Na questão específica da privacidade, até agora, nos Estados Unidos, nenhum agente público teve acesso ao material capturado pelo Google Street (Rio e São Paulo estão mapeados e disponíveis aos internautas).

O assunto é sério. Na Alemanha, a empresa tem sido particularmente pressionada. Há razões para isso, explica o jornal americano: os nazistas e, depois, a Stasi, polícia política da Alemanha Oriental, usaram arquivos oficiais para perseguir judeus e inimigos do regime em geral.

Fonte: O Globo

Te Contei, não ? - O despertar de Drummond




Aos 15 anos, um jovem interno do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, publicou seu primeiro texto. "Vida nova" — que saiu no dia 14 de abril de 1918 no jornal "Aurora Collegial" — falava da expectativa da chegada à nova escola, "com a alma povoada de esperanças miríficas e sonhos maravilhosos". Sonhos esses que terminariam em 1919, quando Carlos Drummond de Andrade foi expulso por "insubordinação mental", após discutir com um professor.Foram apenas dois anos de Anchieta, período em que ele escreveu pelo menos dez crônicas. Graças ao esforço de Nelson Bohrer, presidente da Fundação D. João VI, de Friburgo, nove delas foram recuperadas, digitalizadas e estarão disponíveis a partir desta semana no portal www.djoaovi.com.br. Ele teve acesso a exemplares do jornal, feito pelos alunos do colégio entre 1905 e 1922. Vários volumes estavam embrulhados em papel de jornal. Alguns exemplares haviam se rasgado.
— Higienizei, consertei e devolvi tudo recuperado — diz ele, que prefere não revelar como conseguiu o material, guardado pela escola. — Só não foi possível encontrar a crônica "Extraordinária visita", publicada em 10 de junho de 1919. Ou o jornal veio para mim só com as páginas 1, 2, 5 e 6 ou no processo de digitalização foram puladas as páginas 3 e 4, onde estava a crônica.
"Extraordinária visita" descreve um sonho em que aparece o corvo de Edgar Alan Poe. Ele responde com a frase do poema — "Nevermore" — às perguntas do autor sobre seu sucesso nos exames.
Drummond não tinha muito apreço por seus primeiros textos.
— Ele nunca se interessou por eles. Considerava-os infantis demais — diz o poeta, crítico e tradutor Fernando Py, de 76 anos, autor da "Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade", que cataloga os textos de 1918 a 1934 e onde cada um saiu publicado.
Mas se estão longe de entrar numa antologia das melhores crônicas brasileiras, seu valor documental, histórico e biográfico é inegável. Ao fazer seu livro, Py listou os nomes das crônicas e as datas em que saíram no "Aurora Collegial".
— Drummond não queria que eu tomasse conhecimento delas. Dei como exemplo Machado de Assis, que teve toda sua bibliografia publicada em 1955. Ele me respondeu: "Eu não tenho a importância de Machado de Assis!" Mas tudo que se refere a ele é interessante.
Nas colaborações para o "Periódico Quinzenal da divisão dos Maiores", como o "Aurora Collegial" se autointitulava, ele assinava Carlos Drummond Andrade, sem o "de". No caso de "Uma noite na Senegambia", de 31 de julho de 1919, anotou CêdêÁ. Às vezes, aparecia "74", referência a seu número como aluno, e 2 ano Ginasial. Em "Uma data", de 17 de agosto de 1919, artigo comemorativo do número 200 do periódico, Drummond fala com simpatia do jornal: "Duzentas alvoradas tingiram de oiro e púrpura o céu friburguense, e duzentas vezes gemeram os prelos para que viessem à luz da publicidade duas centenas de números da ‘Aurora’."
Em nenhuma crônica há sinal de interferência ou de censura da direção do jornal. No entanto, em "Estréia literária", poema de "Fria Friburgo", de 1979, é denunciada a intromissão em pelo menos um de seus textos: "O padre-redator introduziu/ Certas mimosas flores estilísticas/ No meu jardim de verbos e adjetivos." Devia estar se referindo a "Maio", de 30 de abril de 1918, talvez a crônica mais derramada, em que há a mistura de clichês líricos com arroubos "poéticos" que certamente ele renegaria depois: "Há gemidos vagos em toda a natureza", "súbito, a grande voz dos sinos, na altura nevoenta dos campanários", "o bimbalhar sonoro dos sinos, a música álacre dos pássaros, a alegria triunfal do mundo", "a terra reverdece e se adorna de mimosas flores".
Em outro poema, a denúncia é de censura na correspondência: "Não te mando esta carta/ que um padre leria certamente./ E me põe de castigo uma semana/ (e nem tenho coragem de escrever)./ Esta carta é só pensada."
— Ele era censurado ideológica e estilisticamente — diz o professor emérito da Universidade do Porto, o português Arnaldo Saraiva, de 72 anos, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Fernando Py confirma que os textos eram "deturpados". Mais tarde, Drummond se queixaria de uma emenda: "Um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão ‘tímidas cecéns’, que me indignou." A passagem pela escola foi citada na "Revista Acadêmica": "Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis."
As primeiras crônicas de Drummond, publicadas no "Aurora Collegial", exibem sua erudição precoce, citando o crítico Sainte-Beuve, o filósofo Nietzsche, os sábios de Hélade e a Biblioteca de Alexandria. Mas, de modo geral, abordam temas frugais e variados, como a volta às aulas, a primavera e o mês de maio.
Em "História do pinto pelado", de 25 de maio de 1919, Drummond fala de um pintinho "desprezado dos irmãos e de todos, que vivia uma vida d’isolamento, lá no seu cantinho" e que se imagina pássaro, borboleta, flor ou raio de sol, até que volta à dura realidade, "à sua primitiva pequenez ignorada... Era de novo pinto sem penas".
"Calor, exames e o nariz de Cleópatra", de 30 de setembro de 1919, traz comentários sobre o tempo em Friburgo: "Isto de calor em pleno setembro é uma pilhéria de mau gosto, que nos faz perder o sono e comer consideravelmente menos." Ele também fala do nariz de Cleópatra: "Os apêndices nasais desta senhora desviaram o curso da história do mundo. Ah! Se Cleópatra não tivesse nariz!"
‘Profissão d’encher linguiça’
Em "Conversa fiada", a última delas, de 19 de outubro de 1919, Drummond inaugura, antes de Rubem Braga, a crônica sobre a falta de assunto, que é "cousa rara como carne de vaca na Rússia de hoje". Com autoironia, ele explica que se vê "constrangido a exercer a tristíssima profissão d’encher linguiça". E, como não pode apresentar um "suculento prato de árdua confecção", ele cita a conversa que teve com um vagalume — em "Primavera", de 18 de setembro de 1919, ele já havia falado com um lírio. Aqui, depois de dialogar com o pirilampo, o autor o despacha com humor, por estar com sono, "pois tive aula de latim hoje".
No texto "As prosas colegiais de Carlos Drummond de Andrade", o professor Arnaldo Saraiva diz que há um desnível artístico entre as duas primeiras crônicas, "Vida nova" e "Maio" — que "denunciam a inexperiência e a ingenuidade de um principiante" —, e as restantes, que trazem referências a Eça de Queiroz e são revolucionárias, no sentido de que "reagiam pela justeza, pela medida, pela elegância, pela descontração contra a solenidade, a pompa, o derrame sentimental, o foguetório verborraico dos prosadores da época".
Das dez crônicas, Fernando Py, autor da "Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade", diz que somente "Maio" foi republicada, no dia 2 de dezembro de 1979, no jornal "O Estado de S. Paulo". Saraiva incluiu nove delas — não conseguiu ter acesso a "Uma noite na Senegambia" — em sua tese "Carlos Drummond de Andrade: do berço ao livro — Subsídios para a história do modernismo no Brasil", apresentada em 1968 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas o material teve circulação restrita.
— A tese não foi impressa porque Drummond não gostaria de ver esses textos juvenis publicados. Ele os desvalorizava — explica Saraiva.
Ele fez 20 exemplares, em edição mimeografada. Ficou com dois, entregou outros para a banca e para o arquivo da faculdade, enviou alguns a amigos e estudiosos e mandou cinco para o Brasil.
— Duas, eu sei que se conservam na biblioteca que era de Plínio Doyle e na de Gilberto Mendonça Teles.
Se nas crônicas não há referências à passagem pelo educandário dos jesuítas, nos 40 poemas de "Fria Friburgo" Drummond abre o verbo para se queixar. Ele relata o que chama de "dois anos jogados fora", traduzidos em trechos ora amargos, ora irônicos, ora sarcásticos. Do triste período escolar, ele teria guardado até o modo de andar com os braços colados às pernas e a cabeça baixa. Foram anos de inadequação e sofrimento. A certa altura, ele pergunta: "Quando termina, se é que termina, o meu exílio?".
Desde o começo, o aluno "74", apelidado de "O anarquista", manifesta seu desassossego. Em "Terceiro dia", já não suporta mais a saudade, o frio, o dormitório que lembra um hospital, o travesseiro que ele ensopou de "lágrimas ardentes", o banho de madrugada no chuveiro gelado. "Mamãe, quero voltar/ Imediatamente/ Diz a Papai que venha me buscar." A saída do colégio se deu de forma brusca, como lembra Saraiva:
— As notas eram lidas em voz alta. Drummond me contou que o professor de português, após a leitura, disse: "Essa nota foi dada por comiseração." Ele respondeu: "Eu não quero nota por comiseração, eu quero uma nota justa."
Segundo Pedro Drummond, neto do poeta, os jesuítas mandaram que se retratasse, senão seria expulso. Ele se retratou — e foi expulso. Drummond se sentiu traído.
— Meu avô disse que foi um ato tipicamente jesuíta. Nos anos 1980, no aniversário do colégio, ele foi convidado, mas recusou: "Não vou voltar a um lugar do qual fui expulso."
Helenio Campos da Silva, que passou 22 de seus 81 anos como professor de biologia do Anchieta, diz que "insubordinação mental" era um termo muito comum na época, referente a um tipo de indisciplina considerado grave. O episódio parece ter deixado marcas também na escola. No livro "Colégio Anchieta 1886/1986", lê-se: "Entre os alunos que se tornaram célebres não podemos omitir os nomes do Dr. Sobral Pinto, Almirante Amaral Peixoto, os senadores Mozar Lago e Artur Bernardes Filho, os Drs. Vilhena de Morais e Bandeira Vaughan, os Padres Gentil e Leonel Franca, Sabóia de Medeiros, Vioti e Aguiar, e tantos outros." Drummond entrou para a categoria "tantos outros".
Nelson Bohrer, presidente da Fundação D. João VI de Friburgo, teve acesso ao material quando começou a digitalizar todo o acervo do Arquivo Pró-Memória, que guarda quase meio século da história da cidade. Ele está digitalizando 1,5 milhão de itens, como os exemplares de mais de 40 jornais diferentes de Friburgo, entre eles o "Aurora Collegial".

Jornal O Globo

Entrevista - Deepak Chopra - "A SAÚDE É O ESPELHO DO QUE PENSAMOS"




Antes de perguntar ao médico o que fazer para viver mais e com melhor qualidade de vida, faça essa pergunta ao seu próprio corpo. Descobrir como ele se sente antes da tomada de decisões é um dos segredos para conseguir adotar hábitos saudáveis e chegar a um estado de perfeita saúde. Essa é uma das principais posições do médico indiano Deepak Chopra, 65 anos, autor de livros como “As Sete Leis Espirituais do Sucesso” e “Conexão Saúde” e admirado por celebridades como a cantora Madonna e a apresentadora Oprah Winfrey.

O endocrinologista radicado nos Estados Unidos usa como base de seus tratamentos os princípios da medicina ayurvédica, criada há mais de cinco mil anos na Índia. Ela preconiza a prevenção das doenças por meio de uma sintonia entre o corpo e a mente que poderia ser obtida, por exemplo, com a prática da ioga e da meditação

Em sua clínica na Califórnia, no entanto, o médico também se utiliza dos instrumentos da medicina ocidental quando acha necessário. É, por excelência, um defensor da medicina integrativa, uma corrente cada vez mais forte que prega a união entre os conhecimentos da medicina praticada no Ocidente com os recursos oferecidos por terapias como a acupuntura. “É preciso caminhar para uma integração de tratamentos”, defende. No sábado 26, Chopra é esperado para ser um dos principais palestrantes da primeira edição do Fórum da Saúde e Bem-Estar, evento organizado pelo Lide, Grupo de Líderes Empresariais, realizado em São Paulo. Antes de desembarcar no Brasil, o médico falou à ISTOÉ

Istoé -
Embora o sr. tenha nascido na Índia, aprendeu a meditar em Boston, nos Estados Unidos. Também foi médico em tempo integral em um hospital de Massachusetts. Como foi sua transição da medicina convencional para a ayurvédica? 
Deepak Chopra -
Por meio da meditação, percebi que havia muitos mecanismos que a medicina não explicava porque olhava na direção errada. Ela, às vezes de modo eficaz, se concentra em um estado de doença, e não de saúde. Mas cheguei à conclusão de que a experiência da Ayurveda é simples, integrada. É um caminho de volta para o pleno funcionamento biológico. 
Istoé -
Mas seus princípios podem ser aplicados hoje, para o homem ocidental, com os mesmos efeitos? 
Deepak Chopra -
Não só podem como estão sendo usados para isso. Os meus pacientes seguem as recomendações, são capazes de analisar a própria vida, ouvir o próprio corpo, controlar a hipertensão, a diabetes. Eles aprendem a prestar atenção no funcionamento do organismo. E hoje temos aparelhos de biofeedback que dão uma medida do quanto um pensamento e uma atitude podem determinar uma resposta fisiológica e controlar uma doença. Essa tecnologia comprova o que o corpo já sabia e que pode ser percebido em um estado de atenção. 
Istoé -
De que maneira isso melhora a saúde? 
Deepak Chopra -
A saúde é o espelho da nossa consciência, do que pensamos. Atualmente, estudos comprovam que pensamentos geram respostas fisiológicas correspondentes, que podem ser positivas ou negativas. Cada estado de humor fica impresso em nossas células. Mas temos a capacidade de controlar algumas reações do organismo por meio do domínio dos pensamentos.
 
Istoé -
Como fazer isso?
Deepak Chopra -
Pode-se voltar a atenção para si mesmo, pensar na qualidade dos relacionamentos, questionar o próprio corpo e relacionar o bem-estar com as escolhas diárias. Tudo isso não é feito de uma maneira estritamente racional, mas com o pensamento que passa pela intuição do organismo sobre o que é a saúde ou simplesmente nos perguntando se estamos bem ou não.
 
Istoé -
O que significa não pensar de uma maneira racional? O que é esse pensamento? Intuitivo? 
Deepak Chopra -
É um processo que nos livra dos condicionamentos. É preciso alguma inocência para ouvir o corpo. 
Istoé -
Uma técnica descrita em um dos seus livros para auxiliar a prática de uma vida saudável é justamente perguntar ao corpo, antes de uma tomada de decisão, se ele se sente confortável com aquela escolha. De que modo isso é benéfico?  
Deepak Chopra -
 A resposta de conforto é uma medida do que nos é caro, do que nos é saudável, do que irá produzir uma sensação de bem-estar. Ela nos livra da dúvida, de um peso e nos coloca na direção da saúde.
Istoé -
Para o tratamento de muitas doenças crônicas, como a diabetes e a hipertensão, os médicos frisam a importância de adotar hábitos mais saudáveis. Mas muitos não conseguem. O que poderia ajudá-los? 
Deepak Chopra -
Posso dar alguns mecanismos: atenção, repetição, foco no presente e o entendimento de que o novo hábito a ser instaurado é bom. Quando ele se instaura, a consciência consegue encontrar um canal para se sentir bem. Sem o hábito, o corpo se esforça para atender a consciência e, numa mente voltada para o cigarro e o álcool, por exemplo, vai se flexibilizar ao máximo até chegar à exaustão, dando espaço a doenças.  
Istoé -
Qual a sua opinião sobre a medicina ocidental? 
Deepak Chopra -
Há muitos tratamentos válidos que ajudam o corpo físico a combater uma enfermidade já instaurada, mas eles obtêm comprovadamente mais sucesso quando integrados a outras terapias. É preciso caminhar para uma integração de terapias. O problema é que algumas vezes a ciência do Ocidente se pauta em modelos reducionistas e a natureza não funciona dessa maneira. É preciso entender quando há outros mecanismos relacionados que, de algum modo, também podem intervir no processo de uma cura. É o que a medicina integrativa, na tentativa de unir essas terapias, está querendo mudar. 
Istoé -
Pode citar exemplos de comprovação científica de bons resultados dessa integração?
Deepak Chopra -
Um estudo publicado na revista científica “The Lancet Oncology” mostrou que técnicas de meditação e ioga podem aumentar a quantidade de telomerase, enzima associada à proteção contra o envelhecimento precoce. Ela é responsável pelo aumento do comprimento dos telômeros, estruturas presentes nos extremos dos cromossomos cujo encurtamento está ligado ao envelhecimento e ao surgimento de males como o câncer. Em um outro extremo, uma pesquisa divulgada no “The New England Journal of Medicine” mostrou que a cirurgia de ponte de safena feita apenas como um recurso de prevenção em pacientes estáveis só conseguiu aumentar a expectativa de vida em 3% dos indivíduos que passaram pelo procedimento. 
Istoé -
Qual seria o tratamento indicado para doenças crônicas? 
Deepak Chopra -
Hoje, sabe-se que 95% dessas enfermidades são motivadas por fatores que envolvem um estresse sobre o organismo. A medicina ocidental é capaz de dar uma resposta positiva imediata para médicos e pacientes com drogas e tratamentos comprovadamente capazes de reduzir um tumor, por exemplo. Essa intervenção mais urgente é necessária em alguns casos, mas em outros ela é dispensável porque é preciso fazer uma análise mais profunda sobre as origens da doença e ter uma atitude de cura, de saúde, com alimentação adequada e bons relacionamentos.
 
Istoé -
No seu livro “Cura Quântica”, o sr. descreve o caso de uma paciente com câncer de mama que acabou curada submetendo-se à quimioterapia e às técnicas da medicina ayurvédica. E, embora o câncer dela tenha tido remissão, ela continuou com a quimioterapia. Por que isso aconteceu? 
Deepak Chopra -
As pessoas tomam decisões baseadas naquilo que confiam, no que acreditam ser válido para a situação que enfrentam. É uma avaliação difícil. Eu faria uma análise diferente. 
Istoé -
O sr. não teme que seus pacientes deixem de seguir os tratamentos convencionais, abandonando os remédios, por exemplo?
Deepak Chopra -
Não é essa a minha orientação.  
Istoé -
Em “As Leis Espirituais do Sucesso”, o sr. descreve a necessidade de não darmos importância aos resultados. Este seria o caminho para que eles, os resultados, de fato sejam obtidos. Pode explicar isso?
Deepak Chopra -
É o que chamo de lei do desprendimento. O desprendimento dá espaço para a fé enquanto o apego aos resultados abre caminho ao medo e à insegurança. Quando você se prende ao resultado, opta por um símbolo que limita a natureza. A ordem natural tem uma ação que vai muito além de variáveis usadas para quantificar o efeito de um tratamento, por exemplo. O desprendimento dá espaço para uma busca profunda pelo bem-estar.  
Istoé -
Hoje a medicina sabe sobre o peso das emoções na nossa saúde. Mas, de alguma maneira, não estamos conseguindo chegar a uma vida sem estresse. Onde estamos falhando? 
Deepak Chopra -
É um caminho que cada um precisa trilhar, questionar de que modo algumas escolhas se refletem na saúde. Há pessoas conseguindo fazer isso com muito sucesso. 
Istoé -
Para alguns de seus pacientes que sofrem de insônia, o sr. recomenda, como tratamento, permanecer acordado de 48 a 56 horas. Como isso funciona? 
Deepak Chopra -
Essas pessoas estão em desequilíbrio biológico. Ficar em vigília por mais tempo comprovadamente renova o organismo e proporciona um recomeço. 

Te Contei, não ? - Abuso Sexual - O longo caminho da superação



Aumentam as denúncias de violência contra crianças e adolescentes, mas ainda é preciso avançar no atendimento às vítimas e na punição dos culpados

Ao o romper o silêncio e contar, na tevê, ter sido vítima de abuso sexual na infância, a apresentadora Maria da Graça Meneghel, a Xuxa, jogou luz sobre um tema que somente agora a sociedade começa a encarar de frente. O resultado mais imediato do depoimento foi o aumento de ligações para o Disque Direitos Humanos, o Disque 100. Nos dois dias seguintes ao seu desabafo, no domingo 20, o principal canal de denúncias de violência contra crianças e adolescentes recebeu 285 mil ligações, 30% a mais do que nos mesmos dias da semana anterior. Um pico como esse é raro, mas o histórico do Disque 100 mostra um crescimento do número de ligações ano a ano (leia quadro), reflexo do maior conhecimento das pessoas sobre o tema. O primeiro passo para resolver o problema é saber suas proporções, mas o caminho até a superação do trauma por parte da vítima e a punição de seu algoz é longo. E nisso o Brasil está apenas engatinhando.
As denúncias chegam, em geral, por conhecidos das vítimas, raramente pelas pessoas abusadas. "Por um misto de medo e culpa, muitas delas passam décadas sem compartilhar a dor com ninguém", explica a psicóloga Elizabeth Vieira Gomes, do Comitê Nacional de Enfrentamento de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Xuxa levou mais de 30 anos para assumir publicamente os abusos. O silêncio de L. durou 12 anos. "Eu tinha medo de ninguém acreditar em mim, ele era uma pessoa em quem todos confiavam", conta. Ela não tinha mais de 4 anos quando o avô lhe disse "olha o que eu tenho aqui, é diferente do que você tem", e lhe mostrou seu órgão sexual. A carioca de 31 anos não se lembra de detalhes desse dia, mas tem recordações claras das carícias sexuais que ele lhe fez aos dez anos. "Eu sabia que era errado porque ele me pedia que não contasse a ninguém e porque nenhum outro adulto fazia aquilo comigo", diz. Só aos 16 anos ela confessou o ocorrido à mãe. "Passei esse tempo nutrindo ódio pelo meu avô sem nunca revelar a razão", diz ela.
As reações de descrença em Xuxa manifestadas nas redes sociais também acontecem com anônimos. Muitas vezes, por parte de quem deveria ajudar a vítima. "É comum os médicos e os policiais dizerem que tudo não passou de "sem-vergonhice" da pessoa que sofreu o abuso", afirma Waldemar Oliveira, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan da Bahia (Cedeca). Em alguns hospitais do País, porém, a situação é diferente. No Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, funciona há dez anos o Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis). Trata-se de um grupo formado por enfermeiros, assistentes sociais e médicos de várias especialidades que se empenham em prestar atendimento rápido e eficiente a quem precisa. "Os casos de violência sexual exigem muita sensibilidade", diz a médica Ivete Boulos, coordenadora do Núcleo. As vítimas, e, às vezes, alguns familiares, também recebem acompanhamento psicológico por, no mínimo, seis meses.
"O médico precisa estar preparado para fazer o primeiro acolhimento, pois os remédios que podem prevenir Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) só são eficientes nas 72 horas posteriores à agressão", diz Ivete. Segundo ela, há pessoas que chegam anos depois de terem sofrido a violência e são diagnosticadas com doenças como sífilis e vários problemas psicológicos. Em outros casos, pais levam os filhos para tratar problemas de saúde e os médicos detectam a existência de DSTs. Serviços desse tipo também existem em cidades como Ribeirão Preto, Campinas, Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia, mas ainda não estão presentes na maior parte do País.
Nas esferas legislativa e jurídica também são necessárias adaptações. O avanço mais recente foi a sanção da lei que define que o tempo de prescrição do crime de abuso sexual conta a partir dos 18 anos da vítima. No campo jurídico, as mudanças começaram na década de 1990 com a criação de varas especializadas em infância e juventude. "Nas varas comuns, o objetivo é prender o suspeito, nas especializadas a prioridade é acolher as vítimas", explica Lélio Ferraz de Siqueira Neto, promotor de Justiça da Infância e Juventude do Ministério Público de São Paulo. Para isso, os membros recebem treinamentos especiais e até alguns dos processos são revistos. Em São Paulo, a criança presta depoimento uma única vez e não precisa repetir a história para o delegado, depois para o promotor e assim por diante.
Essas varas especializadas agilizam o julgamento dos casos. De acordo com levantamento realizado pelo Cedeca da Bahia, antes da criação da primeira vara especial do Estado, em 1997, a maioria dos processos de abusos sexuais demorava tanto tempo para ser julgada que prescrevia. Com as varas especializadas, o problema praticamente acabou e o tempo de tramitação, que antes variava entre seis e dez anos, passou a ser, no máximo, de dois anos. No entanto, ainda existem pouquíssimas dessas varas no País. A média é de um juiz especializado para atender quase 400 mil pessoas. Essa deficiência, aliada à dificuldade em se conseguir provas de uma agressão que acontece, na maioria das vezes, dentro da casa das vítimas, resulta em um enorme número de casos sem solução. É preciso mudar essa realidade.

Revista Isto É

Te Contei, não ? - Fortuna macabra



Maria Selma Costa dos Santos, hoje com 70 anos, era uma mãe zelosa com os três filhos, duas meninas e um garoto, o primogênito José Fernandes. O marido, o empresário José Geraldo dos Santos Reis, conhecido como Caseca, atualmente com 91 anos, vem de uma família tradicional e rica, com raízes em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ). O pai dele, Gastão Glicério Gouveia José Geraldo dos Santos Reis, fora um político poderoso, prefeito duas vezes do município e dono de um patrimônio que incluía terrenos, imóveis, sítios, lojas comerciais, laboratório médico, franquia da Habib’s e cartórios. Na década de 2000, Caseca decidiu passar o controle dos negócios para o filho.

No início, tudo ia bem e o clã se reunia em datas festivas como qualquer família. Até que, há cerca de cinco anos, mãe e filho começaram a se desentender devido à desconfiança dela de que ele estaria lesando os familiares na partilha. Numa briga, ela o chamou de “ladrão” e ele revidou dizendo que só não quebrava a cara dela porque era uma mulher. Maria Selma passou a desconfiar que o filho estaria tramando sua morte, e teria sido mais rápida do que ele. Ele foi alvejado às 19h30 de 29 de novembro do ano passado quando saía da casa da mãe. Fria, falsa, ela teria se despedido dizendo “vai com Deus, meu filho.” Após ouvir os estampidos, mudou o tom: “Graças a Deus, este vai para o inferno.” Reis tinha 51 anos e era pai de um garoto de 15.

As frases constam dos depoimentos dados à polícia por testemunhas. Maria Selma nega que tenha sido a mandante do assassinato, mas a empregada doméstica Maria José da Silva Dias Irmã, 42 anos, confessou ter intermediado o crime. Ela declarou ter dado R$ 5 mil de adiantamento ao pistoleiro Isac Paula de Moraes, 22 anos, e mais R$ 15 mil após a realização do serviço. Todos estão presos. O assassino era segurança de rua e deu dois tiros na cabeça e um no tórax do filho de Selma. Ela foi presa na segunda-feira 21 por policiais da Delegacia de Caxias. “Ao mesmo tempo em que ficamos felizes por colocar na cadeia uma assassina, a gente se ressente ao ver essa degradação total do ser humano, por motivo tão torpe”, diz a promotora Cláudia Porto Carrero, garantindo que as provas contra Maria Selma são incontestáveis.

O crime causa enorme perplexidade porque subverte um dos instintos considerados mais básicos da natureza humana: mães são capazes de defender os filhos até a morte, jamais mandar matá-los. Para a psicóloga Vera Lúcia Moris, às vezes as relações familiares são as mais doentias. “A pessoa alucina numa situação de ódio e perseguição e pode eleger um filho como algoz. E quando tem dinheiro envolvido, as pessoas ficam mesquinhas e cegas”, diz. Infelizmente, ninguém percebeu a tempo a perigosa relação doentia que se estabeleceu entre mãe e filho.

“Até cinco anos atrás, Selma dizia que o Casequinha (apelido de Reis) era um filho maravilhoso. Os dois se davam muito bem”, revelou uma amiga da família que preferiu não se identificar. No entanto, segundo ela, a mãe passou a suspeitar do filho porque ele se recusava a mostrar a contabilidade dos negócios para a família, abrindo alguns dados apenas para o pai idoso e doente. Não que faltasse dinheiro. “Ele (Reis) dava R$ 8 mil de mesada para as duas irmãs e também para a mãe”, contou. Mas enriquecia mais que os outros. Reis morava em um apartamento em Ipanema, um dos bairros mais caros do Rio, e tinha outros imóveis. A mãe se ressentia principalmente por conta da filha caçula, Maria Lúcia, 47 anos, com quem ela se dava melhor.

As brigas mudaram o tratamento entre eles. Reis não mais chamava Maria Selma de mãe e, sim, de “dona Selma.” Seis meses antes do crime, houve uma discussão muito séria e a divisão dos lucros, mais uma vez, estava no foco. “Ela ficou sentida por muitos dias. Depois, começou a dizer que o filho queria matá-la”, contou uma empregada da casa. Era o fim dos laços de afeto. De seu lado, Reis chegou a comentar com a mulher, a professora Vania Filgueiras Lopes, seu receio de que algo ruim acontecesse. Em depoimento à polícia, Vania revelou a conversa com o marido: “Ele chegou tenso. Perguntei o que estava havendo e ele disse ‘a dona Selma está armando alguma coisa para mim’.” Infelizmente, Reis estava certo.
DIÁLOGOS REVELADORES Algumas frases de Maria Selma, gravadas com autorização judicial em ligações telefônicas:

"Se ela (enfermeira que cuidava do marido) falar alguma coisa (sobre as brigas dela com o filho) não vai sobrar nem alma nem carne."
(Em conversa com a nora)
"Vou combinar com o advogado para orientar ela (uma das empregadas) a dizer que o José Fernandes era calado e não falava com ninguém."
(Com uma das filhas)
"Tudo vai depender do que a garota (outra enfermeira) falar. Pobre é uma merda mesmo. É tudo lixo. Se ela quiser me ferrar, vou mover céus e terra. Eu tenho dinheiro."
(Com a nora)
"Vamos vender logo a casa pra não ter que dar nada pro filho dele (neto dela, filho da vítima)"
(Com uma filha)

Revista Isto É

Resenha - Trono de Sangue




Diante de um totem formado por dois grandes teares, três bruxas literalmente “tecem” com longas agulhas seus malignos vaticínios: a de que um general da corte da Escócia será coroado rei e, para se manter no trono, terá de tomar cuidado com um homem não nascido de ventre feminino. Essas predições pontuam a magnífica tragédia “Macbeth”, de William Shakespeare. Na versão em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo, a partir da sexta-feira 1º, as feiticeiras não são interpretadas por mulheres, mas por homens. Era assim que na época elisabetana, no século XVI, as personagens femininas ganhavam vida no palco. A originalidade da montagem assinada pelo diretor Gabriel Villela e protagonizada por Marcello Antony está em mostrar a história de um rei que manchou o trono de sangue na potência de todos os recursos cênicos. As bruxas, por exemplo, usam bermuda, colete militar, meiões, joelheiras, óculos de sol e uma estranha coroa formada por retroses de tecelagem. Suas agulhas são antenas de rádio, objeto que depois, nas mãos de soldados, lordes e do próprio rei, tornam-se lanças e espadas. Da mesma forma, o sangue que seus “gumes” provocam não são feitos de ketchup, mas de um amontoado de linhas vermelho-encarnado.

Esse uso de objetos e roupas incomuns liberta o espectador e abre espaço para outras inovações. A primeira delas é a utilização de um narrador, que comenta a ação à maneira brechtiana. Segundo Villela, sua função é “reconstruir a história perante a plateia”. Nessa síntese, os 20 personagens totais são interpretados por apenas oito atores. Os únicos que não se revezam em cena são Marcello Antony e Claudio Fontana, no papel de Lady Macbeth. A ideia original do diretor era que Antony fizesse a personagem feminina, mas a mudança veio para melhor. De sua parte, Antony contribuiu para uma cena capital, o monólogo que inclui a definição da vida como “um conto cheio de som e fúria significando nada” – ele assume movimentos de marionete. “Tive essa ideia no momento em que Macbeth repete ‘o amanhã, o amanhã, o amanhã”, diz o ator, para quem a peça chega em um momento oportuno: “Estamos vendo isso agora com esses políticos que fazem o que querem com o poder.” 


Crônica do Dia - Críticos - Zeca Baleiro

Personagem longevo na história das artes, o crítico sempre esteve num lugar próximo ao purgatório, entre o céu e o inferno

Oscar Wilde dizia, com seu habitual veneno, que “nos melhores dias da arte não existiam críticos de arte”.

Personagem longevo na história das artes, o crítico sempre esteve num lugar próximo ao purgatório, entre o céu e o inferno. Se alguns cumpriram papel importante na história ao fazerem prognósticos certeiros e relatos ponderados sobre a arte (e os artistas) de seu tempo, outros foram crucificados por conta dos equívocos e maledicência ou gratuidade de seus julgamentos.

Certo é que sempre haverá críticos, seja em revistas, seja em jornais, bares, padarias, blogs e – atualmente onde estão os mais implacáveis – nas redes sociais, afinal criticar é da natureza humana. Como compositor popular que sou, alvo tanto de balas maldosas como de salamaleques superficiais de tais personagens, e depois de acurada pesquisa no submundo do show biz, dou meu contributo a este capítulo da arte com uma catalogação moderna deste espécime tão controverso e específico, o crítico de música popular.

Segue lista com alguns tipos emblemáticos que hoje atuam com suas resenhas ora risonhas, ora odiosas:

Tipo “erudito de balada” – conhece todos os DJs hype, viu o último show do Kraftwerk no Brasil, mas não tem ideia de como esse negócio de música eletrônica começou. Nem quando.

Tipo “fanzineiro da USP” – acha Sidney Magal um artista muito interessante por conta do impacto sociológico. Já leu alguns textos do Tatit, mas diz preferir seus filmes.

Tipo “forever young” – mais velho e experiente, é no mínimo quarentão. Divide-se em dois subtipos:

“Autoexilado em Los Angeles” – quer ser único. Para se destacar dos demais, vive à caça de bandas e artistas bizarros ou pouco conhecidos. Seus critérios não se baseiam em “qualidade” ou “atualidade” do trabalho, mas na estranheza, pura e simplesmente. Suas matérias divagam sobre a bandinha australiana que toca num pub de Canberra um novo som, o “punk aborígene”, ou a nova música do leste europeu, o “cabaret-rock esloveno”, que tem influências de Kurt Weill e Kurt Cobain.

“Coroa antenado do Leblon” – repercute qualquer coisa sobre o artista-revelação do momento, mesmo que nunca tenha ouvido seus discos.

Tipo “bastião da pureza do samba” – nunca esteve numa roda de samba, mas acha que o samba é a grande expressão da alma popular brasileira. Considera “música gringa” qualquer música que não contenha pandeiro e cavaquinho, mesmo se feita no Brasil. Defende a criação de uma estátua gigante de Dona Ivone Lara em lugar do Cristo Redentor.

Tipo “defensor apaixonado do senso comum” – acha que Michel Teló e Luan Santana são interessantes como fenômenos de massa, embora não goste de sua música. Mas, afinal, se o grande público adora, certamente tem alguma mágica escondida nisso daí. Defende que música popular tem também relevância antropológica. Considera Roberto Carlos tão importante para a humanidade quanto Freud.

Tipo “fundador obsessivo-compulsivo de movimentos imaginários” – este tipo é atualmente muito comum na cena. Nomeia tudo o que vê pela frente, no afã de entrar para a história como o descobridor/propagador de algum “ismo” e, para isso, não economiza desonestidade. Nem cinismo.

Tipo “sábio de facebook” – este não é necessariamente profissional, embora seja sempre implacável. Geralmente encarna o tipo “não ouvi e não gostei”. Acha toda a produção contemporânea um lixo, embora a do passado também não tenha sido grande coisa. Costuma ser do contra, e seu lema é algo como “se dizem que é bom, só pode ser ruim”.

Há ainda outros tipos, óbvio. Mas ficam para um próximo texto. 

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Te Contei, não ? - Os Sertões




Os Sertões dá início ao que se chama de Pré-Modernismo na literatura brasileira, revelando, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. Euclides da Cunha critica o nacionalismo exacerbado da população litorânea que, não enxergando a realidade daquela sociedade mestiça, produzida pelo deserto, agiu às cegas e ferozmente, cometendo um crime contra si própria; o que é o grande tema de Os Sertões. Em tom crítico, também mostra o que séculos de atraso e miséria, em uma região separada geográfica e temporalmente do resto do país, são capazes de produzir: um líder fanático e o delírio coletivo de uma população conformada.

Todos os importantes questionamentos e as grandes formulações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas para compreender o Brasil, antes e depois da República, tiveram seu embrião nas páginas de Os Sertões.

A obra  revela, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. A transição de valores tradicionais para modernos está na denúncia que faz da realidade brasileira, até então acostumada a retratar um Peri, uma Iracema, um gaúcho, ícones do nosso Romantismo. Evidencia, pela primeira vez em nossa literatura, os traços e condições reais do sertanejo, do jagunço; "a sub-raça" que habita o nordeste brasileiro; o herói determinista que resiste à tragédia de seu destino, disfarçando de resignação o desespero diante da fatalidade. Essa ruptura de visão de mundo gera também um rompimento no plano lingüístico. A objetividade científica na abordagem de um problema leva o autor a buscar termos precisos e, nesta escolha, sua linguagem torna-se especializada e, por isso, às vezes difícil, mas que se justifica pelo objetivo de tornar exata a comunicação das idéias.

Considerada uma das obras-primas da literatura brasileira, Os Sertões, publicada em 1902, ano de sua primeira edição, cinco anos após a campanha de Canudos, cujo trágico desfecho Euclides da Cunha testemunhou como repórter de O Estado de São Paulo, apresenta não só um completo relato da Campanha de Canudos, que foi a luta sangrenta contra os fanáticos chefiados por Antônio Conselheiro, os quais ameaçavam a segurança das cidades e povoações vizinhas, mas apresenta ainda um admirável estudo da terra e do homem do sertão nordestino, das condições de vida do sertanejo, da sua resistência e capacidade, de acordo com a visão de Euclides da Cunha. Ele foi o único jornalista que atentou para a valentia dos jagunços.

Da primeira à última página, O Sertões é uma obra que incomoda. Ele foi escrito exatamente para isso. Para instigar, provocar a pesquisa e estimular a procura da verdade. É um livro contra o conformismo. É um livro de idéias e soluções, de questionamentos e proposições ousadas. Já é lugar comum dizer que algumas de suas conceituações científicas não resistiram à evolução. Contém os vícios ou distorções típicos da época.

É uma narrativa da insurreição de um grupo de fanáticos religiosos e não só descreve a sociedade mas também a geografia, geologia, e zoologia plana do sertão brasileiro. Com seu apurado estilo jornalístico-épico, traça um retrato dos elementos que compõem a guerra de Canudos: A Terra, O Homem e A Luta.  A descrição minuciosa das condições geográficas e climáticas do sertão, de sua formação social: o sertanejo, o jagunço, o líder espiritual, e do conflito entre essa sociedade e a urbana, mostra-nos um Euclides cientificista, historicista e naturalista que rompe com o imperialismo literário da época e inicia uma análise científica em prol dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira.

A primeira parte, A Terra, descreve o cenário em que se desenrolou a ação. Euclides da Cunha, num apanhado geral, estudou os caracteres geológicos e topográficos das regiões que estão entre o Rio Grande do Norte e o sul de Minas Gerais, de modo particular a bacia do rio São Francisco. Nos sertões do norte, fala discorre sobre a seca, das causas da mesma, dando relevo especial ao papel do homem como agente geológico da destruição, que ao praticar desde os tempos mais remotos a agricultura primitiva baseada em queimadas, arrasou as florestas. Os desertos, a erosão, o ciclo das secas terríveis vieram em seguida.

A segunda parte, O Homem, completa a descrição do cenário com a narrativa das origens de Canudos. Ali Euclides da Cunha estudou a gênese do jagunço e, principalmente, a de seu líder carismático, Antonio Conselheiro. Falou de raças (índio, português, negro), e de sub-raças (que indica com o nome "mestiço"). Em O Homem o autor caracterizou o sertanejo como "Hércules-Quasímodo", usando antíteses e paradoxos (Hércules era um semi deus latino, encarnação de força  e valentia; Quasímodo era sinônimo de monstrengo, de pessoa disforme, personagem de Nossa Senhora de Paris, romance de Victor Hugo). Preparando o ambiente para os episódios de Canudos, Euclides da Cunha expôs a genealogia de Antônio Conselheiro, suas pregações e a fixação dos sertanejos no arraial de Canudos.

A terceira parte, A Luta, é a mais importante, constituída da narrativa das quatro expedições do Exército enviadas para sufocar a rebelião de Canudos, que reunia "os bandidos do sertão": jagunços (das regiões do Rio São Francisco) e cangaceiros (denominação no Norte e Nordeste). Havia cerca de 20.000 habitantes no arraial, na maioria ex-trabalhadores dos latifúndios da região.

Dividida em seis subtítulos (Preliminares, Travessia do Cambaio, Expedição Moreira César, Quarta Expedição, Nova Fase da Luta e Últimos Dias) completou, por sua vez, o elenco dos personagens esboçado na segunda parte (O Homem), quer estudando-os em conjunto, como no trecho  do Soldado, quer em closes particularizantes, como no retrato físico e psicológico do coronel Antônio Moreira César.

Início da luta

As autoridades de Juazeiro se recusam a mandar a madeira que Antônio Conselheiro adquirira para cobrir a igreja de Canudos; os jagunços, então, pretendiam tomar à força o que haviam comprado e pago. Avisado das intenções dos homens de Conselheiro, o governo do Estado manda que em Juazeiro se organize uma força que elimine o foco de banditismo.

A primeira expedição - Cem homens, comandados pelo tenente Pires Peneira, são surpreendidos e derrotados pelos jagunços no povoado de Uauá.

A segunda expedição - Quinhentos homens, comandados pelo major Febrônio de Brito e organizados em colunas maciças, são emboscados pelos jagunços em terrenos acidentados, no Morro do Cambaio e em Tabuleirinhos. Destacam-se os “bandidos” João Grande e Pajeú, este último considerado por Euclides verdadeiro gênio militar. Reduzidas a cem homens, as tropas do governo decidem voltar.

A terceira expedição - Mil e trezentos homens, comandados pelo coronel Moreira César, armados com canhões Krupp — recém-importados da Alemanha —, sem planos definidos, partiram em fevereiro de 1897, atacando de frente, do Morro da Favela, o arraial de Canudos. Os jagunços, protegidos pela irregularidade do relevo, buscavam o corpo-a-corpo e desorganizaram as tropas, que na retirada desastrosa deixaram para trás armas, munições, os canhões Krupp e o próprio general Moreira César, morto após ter sido ferido em combate.

A quarta expedição - Cinco mil homens, comandados pelos generais Artur Oscar, João da Silva Barbosa e Cláudio Savaget, são enviados pelo sul. As tropas dividem-se em duas colunas. A primeira é cercada pelos jagunços no Morro da Favela e tem de se socorrer da segunda coluna que, vitoriosa em Cocorobó, havia mudado de estratégia, dividindo-se em pequenos batalhões. As duas colunas tentam um ataque maciço. Conseguem tomar boa parte do arraial, mas os soldados mal resistem à fome e à sede.

Em agosto de 1897, oito mil homens deslocam-se para a região, comandados pelo próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt.

São cortadas as saídas de Canudos, o abastecimento de água é interrompido. Um tiro de canhão atinge a torre da Igreja. Estóicos, esperando a salvação eterna, os sertanejos não se renderam, e muitos foram degolados após o assalto final.. Perpetrou-se dessa forma o crime de uma nacionalidade inteira, no dizer de Euclides da Cunha, que a tudo acompanhou do Morro de Uauá, de onde escrevia suas reportagens para o jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, mais tarde refundidas nessa obra monumental que são Os Sertões.


Te Contei, não ? - O Guarani





O Guarani - A epopéia da formação da nacionalidade

Escrito originalmente em folhetim, entre fevereiro e abril de 1857, com 54 capítulos, O Guarani teve tal êxito na edição folhetinesca que, antes do fim do ano de 1857, foi publicado em livro, com alterações mínimas em relação ao que fora publicado em jornal.

Mantiveram-se as quatro parte originais: Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, com os capítulos dispostos como saíram do folhetim.

O romance se compõe, em grande parte, de personagens e episódios, mas as imagens permanecem na memória e amarram os fios mais importantes da narrativa. São imagens poderosas, que se impõem sobretudo por seu caráter plástico. Por isso, a crítica distingue em Alencar um grande escritor, um grande artista da palavra, mas não compartilha do mesmo entusiasmo quando se refere aos seus enredos, à carpintaria da narrativa, algumas vezes falha (os conhecidos "cochilos" do escritor), e quase sempre previsível quanto às ações das personagens, lineares ou planas.

A narrativa de O Guarani é simples, mas não simplista. Trabalhando habilidosamente as possibilidades e contradições do romance romântico, vale-se com muita liberdade da trama novelesca, da coloração épica, do devaneio lírico, da anotação histórica da efabulação mítica e lendária, do ímpeto ideológico nacionalista e de elevada carga simbólica, tudo isso revestido de uma profusão de luzes e cores que invade a pupila do leitor, como se ele estivesse assistindo a um espetáculo grandioso, povoado pelas forças da natureza e por titãs, absorto pela beleza da cena, mais do que pelos pormenores da intriga.

Personagens:  Peri: índio valente, corajoso, chefe da nação goitacá, o Guarani.

Ceci (Cecília): moça linda, de doces olhos azuis, gênio travesso, mas meiga, suave, sonhadora, herdeira da força moral interior de seu pai, D. Antônio Mariz.

Isabel: moça morena, sensual, de sorriso provocador; filha bastarda de D. Antônio Mariz com uma índia, oficialmente sobrinha dele e prima de Ceci.

D. Antônio Mariz: fidalgo português da mais pura estirpe.

Dona Lauriana: senhora paulista, de cerca de cinqüenta anos, magra, forte, de cabelos pretos com alguns fios brancos; um tanto egoísta, soberba, orgulhosa, diferente do marido, D. Antônio Mariz.

D. Diogo Mariz: jovem fidalgo, na “flor da idade”, que passa o tempo em caçadas e correrias; tratado com rigidez pelo pai, D. Antônio Mariz, em nome da honra da família.

Loredano: um dos aventureiros da casa do Paquequer; italiano, moreno, alto, musculoso, longa barba negra, sorriso branco e desdenhoso, ganancioso, ambicioso; ex-padre (Frei Ângelo de Luca), religioso traidor de sua fé.

Enredo

A ação passa-se na primeira metade do século XVII, iniciando-se em 1604. Por meio do flashback, o narrador, ao apresentar o fidalgo D. Antônio Mariz, recua até à fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1567, por Mem de Sá, da qual o pai de Ceci teria participado, combatendo os índios inamistosos e os invasores franceses. Após o desastre português nas areias do Marrocos, em Alcácer Quibir, em 1578, e o subseqüente domínio espanhol, em 1580, D. Antônio Mariz decide-se a permanecer no Brasil, para não submeter ao governo filipino. Decide estabelecer-se na sesmaria que lhe fora concedida por Mem de Sá, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Coroa Portuguesa. Em 1593, começa a construir uma habitação provisória, até que artesãos do reino edificassem e decorassem o misto de fortaleza, castelo e vivenda, em que se estabeleceu definitivamente com sua família, cavaleiros, agregados, aventureiros etc. Assim como o Frei Antão, protagonista das Sextilhas, de Gonçalves Dias, D. Antônio quer manter na Colônia a integridade do Império Português.

O espaço é o planalto fluminense, a Serra dos Órgãos, às margens do rio Paquequer, afluente do rio Paraíba. A ação principia e termina tendo o cenário o Paquequer; imagem primeira - primordial, plena e pura - que se associa à figura nuclear do protagonista, Peri: "filho(s) indômito(s) desta pátria de liberdade", mas também "vassalo(s) e tributário(s)": o índio, de sua "senhora", Cecília Mariz; o rio, "desse rei das águas", o Paraíba.

D. Antônio Mariz, fidalgo da mais pura estirpe, leva adiante no Brasil uma colonização dentro do mais rigoroso espírito de obediência à sua pátria. Sua casa forte, às margens do rio Paquequer, edificada como verdadeiro castelo medieval, abriga, dentro de um código cavaleiresco semelhante à suserania e vassalagem medievais, ilustres portugueses, afinados ao mesmo espírito patriótico e colonizador. Entre esses cavaleiros e fidalgos insinuam-se aventureiros, mercenários em busca de ouro e prata, liderados por Loredano (ex-frei Ângelo di Lucca), que assassinara um homem desarmado para obter o mapa das famosas minas de prata. Valendo-se da ingênua cordialidade de D. Antônio Mariz, Loredano trama a destruição da nobre família do fidalgo e de seus ilustres agregados. Trama também o rapto de Cecília, filha de D. Antônio. Mas os planos de Loredano esbarram na vigilância constante de Peri, índio da tribo dos goitacás, que, tendo salvo Cecília de uma avalanche de pedras, obteve a mais alta gratidão de D. Antônio Mariz e a amizade de Cecília, que o trata como a um irmão.

A narrativa inicia seus momentos épicos logo após o incidente em que Diogo, filho de D. Antônio, inadvertidamente, mata uma indiazinha aimoré, durante uma caçada. Indignados, os aimorés procuram vingança: surpreendidos por Peri, enquanto espreitavam o banho de Ceci, para logo após assassiná-la, dois aimorés caem transpassados por certeiras flechas; o fato é relatado à tribo aimoré por uma índia que conseguira ver o ocorrido. A luta que irá se travar não diminui a ambição de Loredano, que continua a tramar a destruição de todos os que não o acompanhem. pela bravura demonstrada do homem português, têm importância ainda duas personagens: Álvaro, jovem enamorado de Ceci e não retribuído nesse amor, senão numa fraterna simpatia; Aires Gomes, espécie de comandante de armas, leal defensor da casa de D. Antônio. Durante todos os momentos da luta, Peri, vigilante, não desgruda dos passos de Loredano, frustrando todas as suas tentativas de traição ou de rapto de Ceci. Muito mais numerosos, os aimorés vão ganhando a luta passa a passo. Num momento dos mais heróicos, Peri, conhecendo que estavam quase perdidos, tenta uma solução tipicamente indígena: tomando veneno, pois sabe que os aimorés são antropófagos, desce as montanha e vai lutar "in loco" contra os aimorés: sabe que, morrendo, seria sua carne devorada pelos antropófagos e aí estaria a salvação da casa de D. Antônio: eles morreriam, pois seu organismo já estaria todo envenenado. Depois de encarniçada luta, na qual morreram muitos inimigos, Peri é subjugado e, já sem forças, espera, armado, o sacrifício que lhe irão imprimir. Álvaro (a esta altura enamorado de Isabel, irmã adotiva de Cecília) consegue heroicamente salvar Peri. Peri volta e diz a Ceci que havia tomado veneno. Ante o desespero da moça com essa revelação, Peri volta à floresta em busca de um antídoto, espécie de erva que neutraliza o poder letal do veneno. De volta, traz o cadáver de Álvaro, morto em combate com os aimorés. Dá-se então o momento trágico da narrativa: Isabel, inconformada com a desgraça ocorrida ao amado, suicida-se sobre seu corpo.

Loredano continua agindo. Crendo-se completamente seguro, trama agora a morte de D. Antônio e parte para a ação. Quando menos supõe, é preso e condenado a morrer na fogueira, como traidor. O cerco dos selvagens é cada vez maior. Peri, a pedido do pai de Cecília, se faz cristão, única maneira possível para que D. Antônio concordasse na fuga dos dois, os únicos que se poderiam salvar. Descendo por uma corda através do abismo, carregando Cecília entorpecida pelo vinho que o pai lhe dera para que dormisse, Peri consegue afinal chegar ao rio Paquequer. Numa frágil canoa vai descendo o rio abaixo, até que ouve o grande estampido provocado por D. Antônio, que, vendo entrarem os aimorés em sua fortaleza, ateia fogo aos barris de pólvora, destruindo índios e portugueses. Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempestade. Cecília acorda e Peri relata-lhe o sucedido. Transtornada, a moça se vê sozinha no mundo. Prefere não mais voltar ao Rio de Janeiro, para onde iria. Prefere ficar com Peri, morando nas selvas. A tempestade faz as águas subirem ainda mais. por segurança, Peri sobe ao alto de uma palmeira, protegendo fielmente a moça. Como as águas fossem subindo perigosamente, Peri, com força descomunal, arranca a palmeira do solo, improvisando uma canoa. O romance termina com a palmeira perdendo-se no horizonte, não sem antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas do romance, uma bela união amorosa, semente de onde brotaria mais tarde a raça brasileira...

"O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte..."

As partes estruturais da narrativa - As quatro partes do romance compõem  três que podem ser identificados com a distribuição ortodoxa da narrativa em: princípio, clímax e desfecho.

Cenário - A Natureza e a Cultura - Suserania e Vassalagem

O  1º movimento introduz o cenário e as personagens e caracteriza-se pela ausência de conflitos, pela harmonia entre o pólo da Natureza e pólo da Cultura, entre sujeitos e objetos. Há coordenação, complementação e harmonia. Descreve-se seqüencialmente um cenário de montanhas e rios no interior fluminense, os aspectos exteriores do "castelo / fortaleza / casa" de D. Antônio Mariz, e, logo a seguir, os interiores da construção, enfatizando uma antropomorfização da natureza e uma naturalização do homem, de forma que nessas três descrições o natural e o cultural constituam um cenário edênico, paradisíaco, no qual a natureza é a casa do homem, a casa é uma extensão da natureza e o homem opera a união das duas.

Assim, a escada de lajedo é construída metade pela natureza e metade pela arte”, pois nessa paisagem a “indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar os meios de segurança e defesa". A integração é completa: "havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza, rica, vigorosa e explêndida, que o vista abraçava do alto do rochedo"; nos aposentos de Ceci "parecia que a natureza havia se feito menina", e seu quarto, decorado com aves, animais e pedras preciosas, é apresentado como “ninho da inocência" ou "como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava".

Exemplos dessa integração harmônica entre natureza e cultura podem ser fartarnente rastreados até o capitulo VIII. Esse clima edênico, paradisíaco está sugerido no brasão da família Mariz, no qual os três reinos, o vegetal, o mineral e o animal, estão enlaçados, numa clara simbologia ou, ainda, quando na descrição da missa rezada por D. Antônio diante de sua Família, a natureza é tomada como uma catedral aberta, imagem ao gosto da mais genuína tradição romântica: Chateaubriand, Lamartine, Garrett, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, para ficarmos nos exemplos mais próximos da tradição romântica luso-brasileira. Nessa missa, não apenas o homem, mas “a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!, "uma prece meio cristã, meio selvagem", vale dizer, uma oração que integra o cultural ao natural.

A ideologia romântico medieval que embasa O Guarani toma a composição piramidal da sociedade, dividida em "senhor" e "servos", em "suserano" e "vassalos", e em "soberano" e "súdito", como princípio natural da ordem e da paz. D. Antônio Mariz exerce em seus domínios o
direitoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. natural, conforme concebido na Idade Média, a partir da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino. O chefe praticava tanto a lei natural quanto a lei humana. Para Santo Tomás de Aquino, a lei natural é o ato da razão e vontade de Deus, que prescreve a observância da origem moral, proíbe a violação e que se manifesta às criaturas na luz natural da razão; e a lei humana é um preceito da razão  ordenado para o bem da sociedade, emanado da autoridade competente e por ela promulgado (Suma Teológica, XCIV, 1 e XCVI, 4). D. Antônio Mariz tipifica o exercício das duas leis, como um senhor feudal que associa o poder humano e espiritual, sendo guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo: "Assim vivia, e no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, com seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.

A ideologia romântico-medieval que ilustramos até aqui com exemplos do romance é justificada por uma espécie de “modelo natural” que envolve o cenário e as personagens desde a primeira página. Aí, como já referido, a descrição entre o rio Paquequer e o Paraíba é assim descrita: "dir-se- ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro com os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática: suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso sofre o látego do senhor."

Essa descrição inicial vale como índice não só da estrutura feudal dentro da sociedade chefiada por D. Antônio, mas também da situação inicial de Peri diante de Ceci. O índio guarani (goitacá) chama a fidalga portuguesa de Iara, que significa Senhora, e aparece referenciado várias vezes como escravo submisso, diante da mulher que ele adora com  fervor religioso, como um devoto diante de Nossa Senhora, ela Virgem Maria, de que já ouvira falar na educação mariana dos jesuítas, com a qual teve um ligeiro contato. Ao final, senhora e escravo serão descritos como irmã e irmão, sugerindo uma integração total dos elementos, de acordo, com a ideologia do autor, que agora vai afirmar a supremacia da Natureza sobre a Cultura, pois só com a integração total na natureza poderia haver paz.

Conflitos - Natureza e Cultura - Os bons e os maus

O  2º Movimento é o em que os conflitos começam a se delinear, as personagens vão entrando em choque até a quase destruição de todos eles.

O código dramático, a ação conflitual instaura-se quando elementos conflitantes começam a emergir dentro de um clima harmonioso que marca o início do romance e que ocultava os conflitos latentes entre o natural e o cultural e as oposições internas dentro de cada conjunto.

Assim, há dois eixos fundamentais e, em torno deles, desdobram-se todas as relações conflituais:

1º - Natureza x Cultura

2º - Os Bons x Os Maus

Formam-se assim quatro subconjuntos:

1. Os bons da natureza - Peri e os índios da tribo goitacá, pertencente à nação guarani, dóceis, nobres, leais, tomados dentro de uma perspectiva sempre positiva.

2. Os maus da natureza - os índios aimorés, antropófagos, descritos com "fisionomias sinistras, nas quais as braveza, ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana".

3. Os bons da cultura - D. Antônio Mariz, sua família, especilamente Cecília e, pouco abaixo, Diogo, o filho desastrado; D. Lauriana, a esposa paulista orgulhosa, preconceituosa; Isabel, a suposta filha natural do fidalgo com uma índia, que ele não perfilhou, mas assumiu discretamente como filha adotiva. Seguem-se o cavalheiro Álvaro, corajoso, cortês, dentro do mais restrito figurino das novelas medievais e o escudeiro de D. Antônio, Aires Gomes, espécie de chefe-de-armas do fidalgo.

4. Os maus da cultura - capitaneados pelo vilão, assassino e traidor Loredano, ex-frei Ãngelo di Lucca, que de posse do roteiro das minas de prata descobertas por Ribeiro Dias, no interior da Bahia, pretende vender o seu segredo ao Rei de Espanha, enriquecer e, ainda, destruir D. Antônio Mariz e sua família, raptar e possuir sexualmente, pela força, se necessário, a casta filha loira de olhos azuis do fidalgo. Seguem-se-lhe os demais aventureiros: Rui Soeiro e Bento Simões, entre os mais ativos.

Os elementos negativos e positivos da cultura e da natureza acabam polarizando-se em relações opositivas, regidas por um sentido geral de simetria, cuja bilateralidade vai compondo módulos narrativos que mantêm uma perfeita proporcionalidade.

A partir do segundo capítulo, Alencar começa a desdobrar os sujeitos em pares opostos, repetindo um modo dual de oposição, seja segundo a raça, a moral, a nacionalidade, a religião, os costumes e os sentimentos.

D. Antônio Mariz, fidalgo português, e sua esposa, D. Lauriana, paulista, não fidalga.

Cecília, filha legítima, loira de olhos azuis, e sua irmã por adoção, Isabel, filha natural "dos amores do fidalgo por uma índia", morena de cabelos e olhos escuros.

Álvaro, cavalheiro gentil, de fala cortês e bem cuidada, pretendente à mão de Cecília, Loredano, bandido e assassino, de fala italianada, recheada de lugares-comuns, que pretende raptar Cecília e destruir seu pai.

Álvaro e Loredano - O mocinho e o Bandido

Personagens antagônicos, esse antagonismo é referenciado pela própria natureza que os envolve. No primeiro lance do capítulo III, os encontramos caminhando paralelamente, junto ao rio Paraíba, numa conversa também paralela, em diálogo que não se entrelaça, e mais parece um duelo verbal:

"Uma dessas ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral.

De maneira concisa, a descrição começa a talhar a personagem que exerce a função de autoridade na tropa, ressaltando as qualidades positivas na aparência e na maneira nobre como domina a sua montaria. A gentileza do exercício do mando emerge com a frase alegre de Álvaro:

"— Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas umas quatro léguas!"

A voz do cavalheiro abre um diálogo tenso, através do qual Alencar, também hábil dramaturgo, constrói pela alternância das falas as personalidades antagônicas de Álvaro e de Loredano, definindo seus sentimentos e perfis morais: o bom-mocismo do primeiro e a mordacidade do segundo:

"Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura e, avançando algumas braças, colocou-se ao lado do moço.

— Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.

— Decerto, Sr. Loredano: nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar.

— Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animais.

—  Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Álvaro com um movimento de enfado.

— Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.

Álvaro corou.

— Não vejo em que isto vos cause reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.

— Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.

Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeu:

— Ora, Deus, Sr. Loredano; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.

— Assim deve ser. Diz a escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.

— Oh! temos anexim! Aposto que aprendestes isto agora em São Sebastião; foi alguma velha beata, ou algum licenciado em Cânones que vos ensinou? disse o cavalheiro gracejando.

— Nem um nem outro, sr. cavalheiro, foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custoso brocados e lindas arrecadas de perólas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro  à sua dama.

Álvaro enrubesceu pela terceira vez.

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— Excelente. Vede, vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que nionguém percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu: disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.

— Contai-nos isto, há de ser curioso.

— Ao contrário, é o mais natural possível: um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite às luz das estrelas... Pode haver coisa mais simples?

Álvaro empalideceu eu desta vez.

— Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?

— Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.

— está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o ofício de espião.

Álvaro intervém com afirmações diretas e recusa-se a conversar "com meias palavras", apresentando sua opção pela franqueza, seu apreço à verdade e sua prática obediente e leal a Dom Antônio Mariz. Este é evocado para demarcar o universo do bem e para construir e legitimar autoridade do jovem sobre a tropa. Assim, ao enfrentar as insinuações de Loredano com recursos próprios à fidalguia, Álvaro revela não dispor de armas adequadas para tratar com a baixeza. Com esses traços, o narrador desenha o moço virtuoso que habita o reino da inocência e deste extrai um amor casto, trazendo mais um fio para o tecido romanesco. O moço sente-se surpreendido, pois seu interlocutor alude a um sentimento que ele julgava oculto. O traço ingênuo da personagem manifesta-se no seu constrangimento não só por titubear para responder ao tropeiro, mas sobretudo pelas anotações do narrador ao registrar que o moço três vezes enrubesce e finalmente empalidece.

Desta forma, Alencar põe em cena um preposto do Dom Antônio Mariz que conquista essa condição por sua conduta de lealdade e generosidade. A narrativa confirmará o caráter virtuoso e ingênuo de Álvaro provendo para ele ações que lhe permitam explicitar suas qualidades. O moço que apanha a flor e suspira será reencontrado quando deposita um presente na janela de Ceci ou quando a ela dirige a palavra de maneira tímida e respeitosa. A lealdade ao fidalgo será reiterada quando se compromete a casar-se com sua filha, renunciando a realizar sua paixão por Isabel, ou ainda por atirar-se à morte numa batalha. Tudo se dá como convém a um cavalheiro a quem o narrador não destina a princesa ou a um jovem a quem Alencar não atribuiu participação decisiva ao processo de configuração do país.

A esta figura contrapõe-se Loredano. Suas intervenções no diálogo são construídas por dois recursos fundamentais: a frase formulada de modo alusivo e o tom irônico. Considerando apenas sua fala, o leitor já percebe que falta grandeza a este homem para enfrentar a situação de conflito, pois ele opta pelas "meias palavras" e revela que seus conhecimentos sobre Álvaro decorrem da atitude de espreita. Mas fundamental para dar a esta personagem o talhe de grande vilão são os comentários do narrador:

"Decididamente o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto no tom mais natural do mundo.

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Nestas condições, o italiano lançava sobre ele um olhar a fundo, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo.

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pela chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa eram os principais traços deste aventureiro.

Ele é pródigo em adjetivos para qualificar o tropeiro como encarnação do vício e revela as paixões vis que lhe dão a estatura de agente do mundo demoníaco tão necessário para viabilizar o conflito da estória romanesca. A voz narrativa intercala-se com as frases de Loredano e descreve seu comportamento, realizando um movimento eficaz para anunciar que ele se constitui pela fraude. O narrador segue de perto a personagem e indica-lhe o modo de proceder pautado por disfarces e saudações. Assim, o leitor vê que "a expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita"; que "o sarcástico italiano, com seu espírito mordaz", destilava sua malícia "no tom mais natural do mundo"; no tom mais natural do mundo"; que se apresenta "com uma ingenuidade simulada".

Cecília e Isabel - A Loira e a Morena — A "Mulher-Anjo" e a "Mulher-Demônio"

O narrador retoma o mesmo recurso do contraste que utilizou para caracterizar Álvaro e Loredano; a virgem loira é descrita em um longo trecho, que integra a roupa, a moral, a fisionomia e o ambiente para em que imagens elevadas, de nítido gosto romântico, compor a personalidade de Ceci, aproximada das flores, dos pássaros e da idéia de inefável, gracioso, infantil e angelical.

Isabel tem sua beleza caracterizada como "o tipo brasileiro", revestido de languidez, malícia, indolência e vivacidade, um tipo bem mais terreno, com seus traços humanos mais vincados, os "cabelos pretos", os "lábios desdenhosos", em três parágrafos curtos e precisos:

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível.

Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede, e não pode furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito, passou pelo seu rosto mas esvaeceu-se logo.

A imagem sensual enfatiza o "poder de sedução irresistível", capaz não só de despertar sentimentos indignos, mas de portá-los também, como a insinuada sombra de despeito pela beleza e "superioridade" de Ceci.

Alencar colhe a mestiça em situação de precário equilíbrio entre a marginalização, imposta a ela pela dona da casa, e a integração a família, sugerida nos cuidados discretos do fidalgo a ela dispensados e claramente explicitada por Ceci, quando esta lhe propõe tratá-la por irmã. O favor, travestido de afeto, revela-se no testamento de Dom Antônio Mariz. A condição de filha natural pode ser tolerada na casa, mas o acesso ao nome da família lhe é vedado. Ela não pode sonhar com o príncipe encantado ao seduzir Álvaro, transformando o compromisso do moço com Ceci em obrigação e não mais ato de devoção, Isabel conquista o
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A morte como expiação dos pecados dos amantes e os arquétipos românticos da mulher-anjo e da mulher-demônio dois elementos modulares da narrativa folhetinesca, que Alencar cumpriu à risca.

Na longa caracterização de Cecília que se vai ler, o narrador esmera-se nas comparações sugestivas, mobilizando recursos para traduzir a impossibilidade de descrever precisamente tanta graça e beleza: diminutivos, adjetivos, expressões como "pareciam", "uma espécie de", "um quer que seja de", e comparações que aproximam a graça ao pequeno e delicado, e a suavidade ao ingênuo e simples. As cores predominantes, branco e azul, mesclam-se ao louro e rosa.

Fusão de fada, menina e mulher, a ambigüidade aparece entre atitudes de menina e devaneios de moça.

À languidez do corpo motivada pelo encantamento amoroso vivido no sonho segue-se a criança contrariada a bater o "pezinho", porque em vez de "lindo cavalheiro" via um "selvagem". A imagem onírica perturba o corpo da menina imprimindo nele movimento de mulher, que leva a personagem a aparecer ‘"toda trêmula", "com o seio palpitante substituindo o contentamento pela tristeza. Ela mesma, usando a mediação da contrariedade, localiza a origem da melancolia na distância entre cavalheiro e selvagem. Já desperta, ela confessa seu sentimentoo a Isabel e esta também o vincula ao índio, mas através de outras mediações. As diferenças na interpretação da tristeza reapresentam, sob outro ângulo, a oposição entre a loura e a morena, contrapondo a inocência de um sonho de amor impossível, de "algum desses mitos de um coração de moça" à experiência cotidiana de lsabel, que vive na escala intermediária entre o branco, que domina e o selvagem escravizado.

A apresentação das duas personagens se dá através do emprego de diferentes procedimentos para descrever cada urna delas e da justaposição de uma cena de diálogo à narração de um sonho. Esta montagem deve alertar o leitor para tentar reconhecer a elaboração particular que Alencar dá ao cânon romântico de contrapor a loura casta à morena demoníaca.

Concluindo, O Guarani é inegavelmente belo, válido como obra de arte. A narrativa parte do lendário, mas segue uma racionalização gradual, com ações rigorosamente distribuídas por capítulos que levam a uma concepção harmônica da história e à consonância com os manifestos ideais de afirmação do jovem país.