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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Resenhando - O culpado é sempre o escritor



Por Luiz Antonio Aguiar*

Imagine só…

O Detetive-Gênio chega à cena do crime… Com aquele nariz empinado de quem se acha o máximo (e é mesmo, sem precisar que ninguém o diga), passa uma olhada de relance pelo ambiente e fala: “O assassino é um joalheiro, altura mediana, mais para gordo e careca, e o nome dele é Fulano de Coisaetal, que mora na Rua Tal e Coisa, número…”
E acabava a história.
Ia ter graça?
Nenhuma.
É por isso que, nas histórias de detetive, existe a figura do sidekick.
É difícil traduzir com precisão o termo sidekick. É aquele personagem cuja função é ficar colado no detetive, fazendo perguntas. Daí, a genialidade do detetive é traduzida para o leitor numa espécie de passo a passo, que nada mais é do que a exposição das pistas – cujo olhar privilegiado do detetive identifica como relevantes – e dos raciocínios que o levaram a desvendar o mistério e descobrir o culpado.
Notem que o detetive, sem superpoderes, é um indivíduo com habilidades excepcionais. Geralmente, tem notável poder de observação, e uma capacidade dedutiva de deixar qualquer um boquiaberto. Como, ainda por cima, por vezes o detetive se diverte em esnobar o sidekick, que é também seu amigo e parceiro constante de investigações, mostrando o quanto seu cérebro é brilhante, o desvendamento do mistério se estende por páginas, capítulos, e somente aos poucos a história é resolvida.  Esse e outros truques, criados por Poe, fizeram dele o grande inventor da moderna história policial.
Moderna por quê?
Porque sempre existiram crimes, na Literatura, que precisavam ser desvendados. Mas, nas histórias modernas, cultiva-se o suspense e o mistério, ou seja, a investigação. E nessa trama, há um protagonista, o detetive brilhante, excêntrico, vaidoso. Poe criou o modelo de detetive nesses moldes, Auguste Dupin. E, além disso, escalou um  sidekick  (um anônimo bió-grafo de Dupin) para que trabalhassem em dupla de maneira a se complementarem. Cada qual representa seu papel.
A partir daí, desenrola-se todo um jogo de disfarces, um desafio entre o escritor (que dissimula, camufla as pistas e o assassino, embora esteja obrigado a passá-las bem debaixo do nariz do leitor) e o leitor, que procura desvendar o crime antes da cena final, quando o detetive mostra o que era pista, o que era enganação, e aponta o culpado e como chegou a essa conclusão. Essa dissimulação das pistas é outra grande inovação de Poe.
Poe chega ao requinte de compor todo um mistério em torno desse artifício de composição, no conto A Carta Roubada. Nele, Auguste Dupin recupera uma carta cujo roubo pode colocar a França em grave crise política. O ladrão a escondera deixando-a, com aparente displicência, à vista de todos, como se não fosse nada de mais. É o segredo de muitas histórias policiais depois de Poe: fazer o leitor ver, sem enxergar; ou sem distinguir o que vê.
Assim, o grande culpado é sempre o escritor. É ele quem cria a trama, o enredo e a maneira como vai contar a história, de modo a extrair o maior efeito. Ou seja, com o propósito de intrigar progressivamente seu leitor.
Edgar Allan Poe dava tanta importância a essa necessidade do jogo de cena, do efeito, que expôs isso no ensaio A Filosofia da Composição, da década de 1840. Nele, defende que o escritor deve deliberar com método e malícia sobre os ingredientes que utilizará para compor sua obra. Por exemplo, em seu famosíssimo poema O Corvo,  em que um angustiado homem insone recebe a visita de um pássaro agourento, Poe pensou muito até decidir qual ave escolher para aquele sombrio papel. Decidiu que o melhor efeito seria obtido pondo um corvo em cena.
Poe escreveu três histórias estreladas por Auguste Dupin: Os Assassinatos da Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada, todas nessa mesma década de 1840. No entanto, apesar das inovações que trouxe à novela policial, ele é mais conhecido pelos seus contos de terror. E também nesse gênero foi um inovador. Em quase todos seus contos usa um narrador em primeira pessoa, ou seja, um personagem que, ao mesmo tempo, nos conta a história e participa dela. E é quem sofre os impactos da experiência aterradora, a qual está no centro da história. Quando lemos o relato desse personagem, ficamos impedidos de distinguir se alguém nos conta uma experiência sobrenatural que o levou à loucura, ou se é um louco cuja narrativa foi criada por seus delírios.
Ou seja, é a incerteza levada ao extremo, que faz que questionemos nossa própria razão e nossa convicção do que é ou não realidade. Assim, Poe é também o inventor do terror psicológico. É uma vertente bastante diferente do terror europeu, da época (os Góticos Românticos) que explorava mais acentuadamente fantasmas e monstros- – como o Drácula e o Frankenstein. E ele tem contos exemplares, sempre citados como os melhores do gênero, como O Gato Preto, O Coração Delator e O Barril de Amontillado, entre outros.
O poder aterrador dos contos de Poe, mesmo sem monstruosidades (a não ser em A Queda da Casa de Usher, que nos traz uma morta-viva), bate lá no fundo de todos nós. É como aqueles pesadelos que temos, nos quais tentamos escapar de algo que nos persegue, mas que não conseguimos enxergar… Ou melhor, é quando um pesadelo desses é interpretado à luz da psicanálise, para nos informar que todas as criaturas que aparecem no sonho são versões de nós mesmos; e todos os sentimentos e sensações experimentadas ali estão dentro de nós. Como que ocultas, à espreita, em nosso íntimo. Poe explora em seus leitores um de nossos maiores medos – o de perdermos a noção da realidade.
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, EUA, em 1809, e morreu em 1849. Escreveu uma grande quantidade de contos, algumas novelas, poemas e textos de crítica literária, mas nunca obteve pagamento à altura da sua obra. Isso apesar de O Corvo ter sido republicado em vários países. Órfão desde pequeno, criado por pais adotivos, atormentado pelo alcoolismo desde a adolescência, teve uma vida de poucos momentos de felicidade. Um desses foi seu casamento com a prima Virgínia. Infelizmente, ela morreu de tuberculose, poucos anos depois de casados – por falta de recursos, não recebeu tratamento médico adequado. Por toda a sua vida, Poe passou por muitas privações e morreu praticamente abandonado e na penúria.
O reconhecimento que lhe faltou em sua curta vida, ele o obteve aos poucos, depois da sua morte, até se tornar, por sua inventividade, o autor preferido de inúmeros grandes escritores, que reutilizam os recursos que criou. Nosso Machado de Assis, em cuja obra se podem notar algumas influências das técnicas de Poe – principalmente na utilização do narrador-personagem de quem se deve desconfiar – foi o primeiro a traduzir O Corvo para o português. Poucos autores tiveram sua obra adaptada em tantas versões para o cinema como Poe. Atores de peso – como Boris Karloff e Vincent Price, nas décadas de 1950 e 1960 – se especializaram em interpretar seus atormentados personagens.
Não há, enfim, um só estudioso de Literatura, ou leitor aficionado dos gêneros terror e policial que não considerem Poe um gênio, e como um de seus autores favoritos. Dessa maneira, sua obra continua a gerar descendentes e a intrigar a todos que buscam na Literatura janelas (secretas?) para se observar os meandros mais sutis, ou mais escondidos, do espírito humano. •



* Luiz Antonio Aguiar é escritor no gênero terror, autor de Sonetos nas Trevas (Eldebra), organizador de Góticos I – Contos clássicos de terror (Melhoramentos) e Era uma Vez à Meia-Noite (Galera). Mestre em Literatura Brasileira, palestrante, orientador de oficinas de criação literária e leitura e professor do curso de qualificação em Literatura SME-RJ/FNLIJ para professores de salas de leitura

Revista Carta Capital

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Te Contei, não ? - Poe em novas versões

 
 
IVO BARROSO , ESPECIAL PARA O ESTADO, IVO BARROSO É POETA, TRADUTOR, AUTOR DO LIVRO O CORVO, SUAS TRADUÇÕES (LEYA, 2012) - O Estado de S.Paulo

Os estudos biográficos assumiram nos dias atuais características bem definidas que os distanciam bastante dos relatos empíricos e presuntivos das obras do passado, em que os autores se compraziam em relatar histórias sobre a vida de seus personagens sem quaisquer compromissos com a veracidade dos fatos ou com sua comprovação. Diversamente, o conceito atual de biografia implica um estudo -a bem dizer científico - de testemunhos e documentos, passíveis de cotejo e verificação por parte dos leitores, exigindo-se para tanto a citação rigorosa das fontes e a identificação precisa dos textos em que as proposições se encontram. Donde estarem hoje os biógrafos na contingência de solicitar permissão a autores e editores toda vez que citarem um texto que não seja de sua exclusiva autoria e, em alguns casos, até mesmo para a menção de uma única frase alheia. Este não é seguramente o caso de Edgar Allan Poe - O Mago do Terror, de Jeanette Rozsas (Melhoramentos), em que tais preocupações bibliográficas estão longe de existir.

Ainda bem que logo na capa do livro há algo como que uma advertência ao leitor: romance biográfico - ou seja, o mesmo que biografia romanceada, esse gênero em que o autor assume não só o poder de onisciência sobre os acontecimentos da vida dos personagens, mas ainda lhes empresta voz, lhes dá vazão aos sentimentos e interpreta as suas intenções. De modo que o relato resultante se assemelha a algo como as transposições televisivas de romances famosos, destinadas a deles transmitir apenas o desencadear da ação sem se preocupar com sua substância literária. Situado pois como "romance biográfico", totalmente descompromissado com os rigores da biobibliografia atual, este O Mago do Terror é de excelente leitura, agradável e sentimental, permitindo ao leitor conhecer as dificuldades pelas quais passou o grande poeta, filho adotivo de um patrono que o ajuda e ao mesmo tempo repudia, suas tentativas para se firmar no mundo literário, suas paixões e casamento, seu fim de miséria e irrealização.

Essas várias etapas decorrem dentro de uma cronologia amparada nos melhores biógrafos de Poe (Hervey Allen, por exemplo) e o livro cumpre com sua finalidade primordial, que, suponho, seja a de dar ao leitor iniciante, ou que lhe desconhece a obra, as linhas gerais de quem foi considerado o mais significativo dos escritores norte-americanos. E ficará sabendo também algo de sua vida literária: que foi redator e editor de jornais, que escreveu contos e poemas, sendo o mais famoso deles O Corvo, aqui apresentado (apenas) nas traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. A propósito, é de se observar que todas as frases do livro - todas as falas de Poe e dos demais personagens - são devidas à autora e é preciso aceitar que eles falassem assim. Mas quando se trata de citar o texto dos poemas, já não é ela quem fala, mas se vale de traduções alheias, infelizmente sem citar o nome do autor ou a fonte donde as tirou, o que não se justifica nem mesmo nas biografias romanceadas. É o caso, por exemplo, da página 74 em que é transcrito na íntegra o poema To Helen, ou da página 81: uma estrofe da tradução de Tamerlão, ou ainda da página 168: duas estrofes de O Corvo, todos em tradução de Milton Amado, sem que o nome dele apareça sequer na bibliografia onde deveria estar o livro donde foram tirados. Aparece apenas numa epígrafe da página 9, onde é transcrita uma estrofe de O Corvo, em tradução atribuída a Oscar Mendes e Milton Amado. (Pobre Milton: marginalizado a vida toda por Oscar Mendes, que o inferiorizava como "colaborador" em vez de creditar-lhe a tradução de todos os poemas do livro, ainda hoje é citado de maneira sub-reptícia ou quase ilegível).

***

Deserdado por seu pai adotivo, o escocês John Allan, o jovem Edgar Poe se mantinha precariamente com a publicação de trabalhos literários em jornais e revistas. Suas tentativas iniciais de firmar-se como poeta fracassaram inteiramente, mas seu conto Manuscrito Encontrado numa Garrafa valeu-lhe o prêmio de US$ 50 num concurso organizado pelo Saturday Visitor, de Baltimore, em 1833. Suas narrativas ficcionais, inaugurando um novo gênero literário em que predominavam o mistério e o terror, logo o tornam conhecido nos meios jornalísticos e já em 1835 ei-lo feito redator do Southern Literary Messenger, de Richmond. Hoje são conhecidos 69 desses contos, alguns publicados posteriormente à sua morte em 1849. A primeira tentativa de apresentá-los em livro data de 1839 (ou 1840) com o título de Tales of the Grotesque and Arabesque, reunindo 25 dessas histórias, organizadas então em dois volumes. Em 1845, Poe finalmente firma seu nome de poeta com a publicação de O Corvo, cujo êxito lhe permite ascender na escala social e o faz redator-chefe e depois proprietário do Broadway Journal. Em 1856, Charles Baudelaire publica pelo editor Michel Lévy, em Paris, as Histoires Extraordinaires, com a tradução de 13 contos de Poe, precedidos de um estudo sobre a sua vida e obra. O livro concorre definitivamente para firmar o nome de Poe no continente europeu, onde se tornou mais conhecido do que em sua própria terra.

No Brasil, a obra de Poe aparece pela primeira vez em 1903 sob o título de Novelas Extraordinárias, pela Garnier, provavelmente via Baudelaire; vem a seguir, e traduzida do inglês, a de Afonso d'Escragnolle Taunay, pela Melhoramentos em 1927, com o título de Histórias Exquisitas. Segundo a pesquisadora Denise Bottmann ("Alguns aspectos da presença de Edgar Allan Poe no Brasil", em Tradução em Revista, 2010/1, p. 01-19) há cerca de 15 edições dos contos de Poe entre nós com o título Histórias Extraordinárias, ou pequenas variantes, nenhuma das quais corresponde em conteúdo seja à das traduções de Baudelaire seja à editada pelo próprio autor. A mais completa edição dos contos entre nós é sem dúvida a da Nova Aguilar, de 1997, organizada por Oscar Mendes e Milton Amado, que compreende 66 dos 69 relatos até agora conhecidos.

A partir de 1908, a edição original dos Tales of the Grotesque and Arabesque, de escolha do autor, deu lugar a Tales of Mystery and Imagination, organizada pelo editor Padric Colum, com o objetivo de apresentar as narrativas mais características de Poe e incluir relatos inéditos em livro. Em 1919, o editor londrino George Harrap, ainda com este título, publicou edição ilustrada por Harry Clake, então o artista gráfico mais famoso da época (embora visivelmente influenciado por Beardsley), que a partir de então tem sido modelo para as edições americanas e estrangeiras dos contos de Poe.

Pois é essa edição ilustrada de Harrap/Clarke que a Tordesilhas nos apresenta agora, em capa dura e magnífica tradução de Cássio de Arantes Leite, contendo os 22 contos de Poe que se tornaram tradicionais (William Wilson, O Poço e o Pêndulo, Manuscrito Encontrado numa Garrafa, O Gato Preto, Os Fatos do Caso do sr. Valdemar, O Coração Denunciador, Uma Descida no Maelström, O Barril de Amontillado, A Máscara da Morte Vermelha, O Enterro Prematuro, O Encontro Marcado, Morella, Berenice, Ligeia, A Queda da Casa de Usher, O Colóquio de Monos e Uma, Silêncio - Uma Fábula, O Escaravelho de Ouro, Os Assassinatos da Rue Morgue, O Mistério de Marie Roget, O Rei Peste e Leonizando). Dada a qualidade gráfica, as expressivas ilustrações e principalmente a tradução rigorosa, esta edição ficará como referencial da obra contística de Poe em português.