Com uma criança nas costas, um homem caminha com dificuldade por uma ponte improvisada na fronteira entre Hungria e Áustria. A travessia, clandestina e perigosa, levava à esperança de vida digna em outro país, longe de opressões políticas e conflitos. Esta cena poderia se referir a refugiados sírios ou iraquianos, escapando da violência do Estado Islâmico na atual onda de migrações para a Europa. No entanto, o sujeito e o bebê eram húngaros buscando fugir, em 1956, de seu país de origem, hoje um dos mais avessos a imigrantes. Estima-se que 150 mil pessoas tenham deixado a Hungria em menos de um mês naquele ano, pedindo asilo político principalmente na Áustria, mas também em uma série de outros países do mundo, como os Estados Unidos e o próprio Brasil.
Revolta popular iniciada por um grupo de estudantes contrários à política da União Soviética, que desde o final da Segunda Guerra Mundial controlava o país, a Revolução Húngara durou 24 dias, o suficiente para gerar 20 mil mortes.
— Dar asilo a pessoas que fugiam do domínio dos soviéticos era relativamente fácil na época, porque havia um incentivo ideológico. Simbolizava a luta contra o Exército Vermelho, visto pelos países ocidentais como o grande inimigo — explica Márcio Scalercio, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio. — Quando um alemão pulava o Muro de Berlim, da Alemanha Oriental para a Ocidental, era visto como herói e merecedor de ajuda imediata. O mesmo acontecia com os húngaros em 1956: muitos países tiveram interesses ideológicos ao acolhê-los. E, para completar, não havia racismo em pauta, porque, afinal, eram todos europeus, o que simplificava a questão.
Assim como a Hungria, países do Leste Europeu como Polônia, República Tcheca e Eslováquia, que décadas atrás — em diferentes momentos — tiveram habitantes seus entre asilados pelo mundo, hoje estão no centro da polêmica em relação ao acolhimento a refugiados do Oriente Médio. Autoridades dos quatro países têm feito declarações racistas e xenófobas. Esta semana, uma cinegrafista de TV húngara foi demitida após ser filmada derrubando imigrantes na fronteira de seu país.
Histórico de fugas
As primeiras grandes ondas migratórias partindo da Europa ocorreram após a Primeira Guerra Mundial. A situação, porém, intensificou-se durante a Segunda Guerra, época em que os poloneses logo passaram a deixar o país em massa, devido ao ataque à capital, Varsóvia, primeira cidade fora da Alemanha a ser ocupada pelos nazistas após o início do conflito. A estimativa é de que mais de 100 mil poloneses tenham se asilado somente no Irã, mas a maior parte se espalhou por outros territórios.
A Primavera de Praga também ocasionou grande leva de refugiados europeus. Isto ocorreu em 1968, quando habitantes da República Tcheca e da Eslováquia — que formavam a Tchecoslováquia — também se levantaram contra o regime soviético, sob o qual viviam.
— A questão dos refugiados é tão grave que uma das primeiras iniciativas da Organização das Nações Unidas, pouco tempo depois de ser criada, em 1945, foi fundar um órgão para cuidar de refugiados. Desde então, merecem muita atenção tanto os refugiados de guerra, como foi o caso dos poloneses e é o caso dos sírios e iraquianos de hoje, assim como aqueles que fogem da pobreza extrema ou de lutas políticas, caso dos húngaros e tchecos — comenta Scalercio.
Com o fim da ocupação da União Soviética, boa parte dos países do Leste Europeu passou a ser governada por partidos conservadores. Alguns, de extrema-direita, hostis ao comunismo, ao islamismo e a minorias sociais estrangeiras.
— Essa extrema-direita constrói sua identidade em cima do repúdio ao imigrante e, assim, conquista eleitorado, o que é triste — destaca Lauro Pereira, professor de História da PUC-SP. — A xenofobia e a islamofobia que vemos hoje com tanta evidência estavam latentes, prontas para explodir, e agora encontraram o momento “certo” porque a nova onda migratória tem aumentado dia após dia.
Segundo o historiador, a grande novidade é a Alemanha se anunciar tão aberta à recepção de refugiados, o que, para ele, é boa opção política e econômica.
— A Alemanha, assim como a Hungria, tem um problema demográfico. São países cuja população está envelhecendo e precisam de mais mão de obra jovem. Acolher refugiados é um gesto bonito, claro, mas não é despido de interesse, porque eles serão mão de obra. Além de o discurso xenófobo ser odioso, ele é burro, porque não percebe que a migração ajudaria nesse aspecto — ressalta Pereira.
“Posicionamento contraditório”
Professor de Direito Internacional da Unifesp, João Amorim lembra que a Europa está longe de ser o continente “puro” que tantos ultraconservadores propagam, e que os imigrantes que de lá já partiram somam números expressivos.
— Historicamente, as populações dos países do Leste Europeu são forçadas ao deslocamento e à segregação por conflitos armados e por forças de ocupação, principalmente a partir do século XIX. Então, o posicionamento atual contra refugiados é extremamente contraditório e revela o quão frágil e patética é a postura isolacionista e xenófoba — pontua Amorim.
Ele destaca que é extensa a quantidade de períodos na História em que houve migrações forçadas da Europa para outras regiões. Isto ocorreu nas Guerras Napoleônicas, nas guerras de unificação da Alemanha e da Itália e numa série de revoluções sociais, todas ainda no século XIX. Já no século XX, além das duas Grandes Guerras e das ocupações soviéticas, houve o genocídio na Armênia, a Revolução Russa, a recessão econômica dos anos 1930, o período do Salazarismo em Portugal, a guerra civil espanhola, a perseguição religiosa na antiga Iugoslávia e a Guerra dos Bálcãs — esta última entre Sérvia, Montenegro, Grécia, Turquia, Bulgária e Romênia.
— Os europeus sempre se valeram da acolhida de outros países, principalmente na África e na América, para escapar de guerras e de perseguições religiosas e para buscar melhores condições de vida — avalia o professor. — Desde a crise econômica de 2008, milhares de europeus vieram para o Brasil em busca de trabalho e de melhores condições de vida, e ninguém os barrou, colocou em campos de refugiados ou alegou que era uma “invasão”.
Amorim alega que a migração, em muitos casos, costuma fazer girar a economia do país hospedeiro, além de enriquecer a cultura daquela sociedade.
— Um país que recebe imigrantes ganha uma força a mais de trabalho e de ação social. Os imigrantes, sejam refugiados ou não, são pessoas que buscam recomeçar sua vida, querem trabalhar, estudar, criar sua família. Investir em políticas de acolhimento e de inserção social é fazer um investimento futuro na solidez e na força econômica de uma sociedade. Além disso, o imigrante traz sua cultura e a história de seu povo, o que é sempre benéfico — diz ele.
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