sábado, 9 de novembro de 2013

Resenhando - Fernando Pessoa em cápsulas

 

Biógrafo do escritor português lança coletânea de frases que ajuda a entender a vida do poeta

Ana Weiss
 
É tarefa insana tentar levantar o número de citações atribuídas indevidamente a grandes autores no imenso telefone sem fio que a internet se tornou. José Paulo Cavalcanti Filho, autor de uma das mais importantes biografias do poeta Fernando Pessoa, tinha, porém, um filtro bem afiado quando resolveu fazer uma coletânea de trechos deixados pelo autor português: uma pesquisa que consumiu dez anos e mais de 30 viagens a Lisboa e que lhe valeu prêmios como o Jabuti, Bienal do Livro de Brasília, José Ermirio de Moraes, da Associação Brasileira de Letras e Dario Castro Alves, em Portugal.
chamada.jpgELEGÂNCIA
O escritor acreditava que o artista devia ser belo
e elegante. E que a ele restaria a segunda opção
“Li mais de 30 mil páginas, mais de 30 vezes cada uma e no original”,orgulha-se o jurista pernambucano, ex-ministro da Justiça do governo José Sarney, que contou com um historiador e um jornalista português no levantamento de “Uma Quase Autobiografia”, que, agora, na sétima edição, tem na coletânea um complemento pela mesma editora Record. “As obras se completam. Não só porque a primeira ofereceu o lastro a esta que lançamos agora, mas também porque na voz de Pessoa entendemos o que ele viveu.” E vice-versa.
Organizada por tópicos temáticos – sim, como em sites de citação, mas de fonte fidedigna –, a reunião ajuda a desvendar mais da vida e dos procedimentos literários do criador do “Livro do Desassossego”, segundo o crítico inglês Paul Bailey, “o livro do século XX”. Situação do excerto que abre a entrada de frases intitulada “Felicidade”: “Se eu casasse com a filha de minha lavadeira talvez fosse feliz.” Tido como uma metáfora sobre a alegria da simplicidade, o pequeno parágrafo ganha uma nova possibilidade, esclarecida pela nota de rodapé do pesquisador. Quando viveu na rua Coelho da Rocha, na capital portuguesa, Pessoa, muito cuidadoso com as próprias roupas, manteve uma lavadeira, Irene. “Entre os anos 1920 e 1928, ele estava separado de seu grande amor, Ophelia Queiroz, e namorou Guiomar, moça
de idade próxima a sua. E filha de sua lavadeira”, diz Cavalcanti.
LIVROS-B-IE-2283.jpg"As frases atribuídas ao poeta são quase
sempre falsificações fajutas"

José Paulo Cavalcanti Filho
Desse cruzamento, o advogado chegou a outra conclusão. “Pessoa escrevia só sobre ele mesmo ou sobre o mundo próximo que o circundava.” Não que o direcionamento seja raro entre escritores, sobretudo os poetas, teoricamente, os mais subjetivos do ofício. “Seus escritos e sua vida não se separam.”
Em algumas citações, porém, o poeta se arrisca a ir um pouco mais longe que seu umbigo. Na entrada “Brasil”, há dois trechos, o primeiro de Álvaro de Campos (um de seus 127 heterônimos), “E tu, Brasil, república irmã, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te descobrir.” O segundo, extraído de uma carta a Eurico de Seabra, assinada com o nome de nascença, “Sociologicamente, não há Brasil.”
Além das passagens em que se enxerga a fina ironia do escritor (figura de linguagem, aliás, com lista própria de citações), há espaço até para passagens em que o poeta demonstra um gosto quase visionário da apropriação mundial de suas frases: “Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me compreenda, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado.”
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