domingo, 17 de novembro de 2013

Te Contei, não ? - Filhos da terra

Quilombos aguardam definição sobre posse de terras e mantêm viva herança cultural africana

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Marco Grillo

Benedito Leite e Terezinha Leite, moradores do Quilombo Alto da Serra do Mar: quase 50 anos de casados
Foto: Márcio Alves / Agência O Globo
Benedito Leite e Terezinha Leite, moradores do Quilombo Alto da Serra do Mar: quase 50 anos de casados Márcio Alves / Agência O Globo
RIO CLARO E VALENÇA - Do contato com as mãos ásperas de Benedito Leite vem a certeza de uma vida dedicada à terra. Segundo a história oficial do Brasil, seu elo com a escravidão se resumiria à árvore genealógica - familiares oriundos da África foram explorados nas fazendas de café do Vale do Paraíba. No entanto, a história real apresenta um fato mais severo: aos 6 anos de idade, na década de 50, Benedito começou a trabalhar na extração de carvão, em regime análogo ao abolido pela assinatura da Lei Áurea, meio século antes.
 
- Acordava de madrugada e ia até a noite. Não tinha pagamento. O trabalho era trocado por mantimentos, mas a gente estava sempre devendo ao patrão - recorda Seu Benedito, aos 70 anos, morador do Quilombo Alto da Serra do Mar, em Lídice, distrito de Rio Claro.
A comunidade, formada nos anos 1950, enfrenta hoje a batalha pela titulação da terra. O processo administrativo está na Superintendência Regional do Incra no Rio de Janeiro. O instituto já apresentou um relatório técnico (RTID) e está analisando os recursos impetrados pelas outras partes envolvidas na questão - há lotes ocupados por não quilombolas. Depois, se não houver acordo, a questão passará da esfera administrativa para a judicial, processo que costuma ser bastante demorado.
- Basicamente, são três fases: estudos, contestações e titulação - lista o antropólogo Miguel Cardoso, responsável pelos quilombos na regional fluminense do Incra.
Mesmo formada muito depois da abolição, a comunidade Alto da Serra do Mar pôde pleitear o direito de ser considerada quilombola graças ao decreto 4.887/2003. O documento prevê a autoatribuição como um instrumento de reconhecimento. Assim, o grupo fez a requisição, aceita pela Fundação Cultural Palmares, responsável pela certificação das comunidades quilombolas.
A luta pela terra também é uma questão do Quilombo São José da Serra, em Santa Isabel do Rio Preto, distrito de Valença. Este, porém, é um caso mais avançado: a ação corre na Justiça Federal, e o Incra já conseguiu a posse provisória - medida que costuma ser adotada pelos juízes em casos semelhantes, já que o caminho até a sentença final é longo - de três dos quatro imóveis requeridos. Uma dúvida em relação à decisão judicial, no entanto, provocou um atraso.
- A fazenda tem 169 hectares, mas o estudo da cadeia dominial (relação feita pelo Incra de todos os proprietários da história do terreno) só legitimou cem hectares. O juiz deu emissão para estes cem, mas não disse quais. Então, os contestantes continuam dizendo que não vão sair, porque não existe definição sobre qual área deve ser desocupada. Já fizemos uma petição sugerindo quais devem ser os cem hectares, mas o juiz ainda não deliberou sobre isso - explica Cardoso.
Enquanto a resposta jurídica não vem, os quilombolas permanecem cercados pela incerteza, mas todos mantêm o sorriso no rosto. A simplicidade de quem enxerga a vida fora da ótica dos grandes centros urbanos contorna as dificuldades.
- Temos um problema de água. Quando chega agosto, a mina seca - diz o líder do Quilombo São José da Serra, Toninho Canecão.
Dentro da comunidade, há uma escola que atende alunos até o 5º ano. Recentemente, as aulas chegaram a ser suspensas por conta do desabastecimento.
- A vida aqui sempre foi difícil, mas já melhorou. A luz elétrica chegou há seis anos, a Funasa fez o saneamento básico, e nossas plantações são suficientes - diz Toninho, acrescentando que cerca de 140 pessoas vivem hoje no território.
Uma das atividades desenvolvidas é o artesanato, mas a renda vem, principalmente, do turismo. No dia 13 de maio, há uma grande festa, que chega a receber três mil pessoas, para celebrar a abolição da escravatura. O quilombo é visitado por colégios de todo o estado, ao longo do ano. Os alunos entram em contato com o canto do jongo e a dança do caxambu, manifestações culturais africanas mantidas vivas pelos quilombolas.
- Aprendi a cantar com a Dona Zeferina (mãe de Toninho, já falecida). Agora, eu ensino para as crianças, porque a tradição não pode acabar - conta a moradora Jumara Silva.
Dentro das casas de sapê, pau a pique e barro - “amassado com o pé descalço”, esclarece Toninho -, além da vontade de preservar a memória, mora a sensação de que a vida foi generosa, apesar dos percalços.
- A gente vive bem aqui. Ruim só o meio de transporte - diz Mãe Tetê, líder espiritual da comunidade.
 
Do carvão aos cuidados ambientais
 
Após um período de regime de trabalho desumano para alimentar as carvoarias, entre os anos 1950 e 1980, e outro em que a tensão relacionada às disputas de terra subiu consideravelmente, na década de 1990, o Quilombo Alto da Serra do Mar passou por um momento mais ameno. O processo para a titulação do território ainda está em estágio inicial, mas a luta dos quase 200 integrantes da comunidade já é reconhecida.
- Antigamente, tinha visita de polícia, mas hoje a gente não é visto mais como invasor - destaca o líder do quilombo, Benedito Leite, que tem o mesmo nome do pai.
Assim que os primeiros moradores chegaram, nos anos 1950, as condições eram bastante adversas.
- A gente trabalhava no carvão para poder comer e beber. Fiz muito carvão para fornecer lá no Rio de Janeiro - lembra Seu Benedito, patriarca da família Leite.
O dono da carvoaria aparecia pouco no local, mas mantinha um intermediário atento aos negócios. O funcionário também era responsável pelo armazém, formando um sistema semelhante ao usado pelos fazendeiros dos tempos da escravidão.
- A gente entregava o carvão, e ele fornecia os alimentos. Se ele achasse que o trabalho não dava para cobrir as despesas, formava uma dívida, e aí tinha que trabalhar mais no mês seguinte. Era trabalho escravo mesmo - afirma Seu Benedito: - Nunca tive um direito trabalhista.
Quando a economia relacionada ao carvão deixou de ser lucrativa, o proprietário abandonou a atividade. Mas a tranquilidade não durou muito. O terreno foi vendido, e o novo dono entrou com uma ação de reintegração de posse, exigindo a expulsão de quem habitava a terra. Nesse momento os moradores se organizaram na busca pelo direito de serem reconhecidos como integrantes de uma comunidade quilombola.
- Foi um período complicado. Muita gente foi embora. Chegou perto de acontecer um conflito, mas não aconteceu. Não era nosso interesse (o confronto). Por isso, partimos para buscar os direitos na Justiça - acrescenta Leite.
Houve um acordo com o proprietário, e, na sequência, o grupo obteve a chancela da Fundação Cultural Palmares. Com a confirmação da condição de quilombo, iniciou-se outro processo, este tocado pelo Incra: a titulação.
- Nossa esperança é que isso se resolva o mais rapidamente possível. Temos muitos jovens aqui que podem trabalhar na terra - reforça Leite.
A incerteza jurídica persiste, mas as condições hoje são melhores do que eram no surgimento da comunidade. A água é encontrada na nascente - há até uma cachoeira dentro da propriedade -, uma moradora atua como agente de saúde, e o solo é bom para plantar, com destaque para a horta orgânica. Recentemente, foi realizado o reflorestamento de uma parte do terreno.
- No início, a comunidade fazia carvão. Hoje, cuida do meio ambiente - destaca o líder do quilombo.
Religiões convivem lado a lado
O equilíbrio entre a tradição e a abertura para novos costumes tem na religião o exemplo mais concreto. Na dinâmica das comunidades quilombolas, há espaço para a umbanda, ela própria uma experiência de sincretismo religioso, o catolicismo e a Assembleia de Deus.
No Quilombo São José da Serra, em Valença, o centro de umbanda é um dos locais mais emblemáticos, visitado, inclusive, por pessoas de fora.
- Nasci com a fé no coração. Ninguém tira. É ela que deixa a gente perto de Deus - diz Mãe Tetê, líder do centro: - Essa comunidade é abençoada. Tudo o que a gente pede é alcançado.
A influência católica também é forte - há uma igreja dentro do quilombo. E a convivência harmoniosa é a principal característica.
- Tenho um irmão evangélico. Todo mundo se relaciona bem. Meu pai não deixou dinheiro, mas deixou respeito e educação - acrescenta Mãe Tetê.
Ela aponta ainda a fé como fator responsável pelo ambiente de tranquilidade.
- A gente dorme descansada aqui. Todo mundo se ajuda como irmão. Nada perturba. Se a cobra não aparecer, está tudo certo - brinca.
O canto do jongo e a dança do caxambu são outras marcas que evidenciam as raízes.
- Fazemos festas muito bonitas - ressalta o representante do quilombo, Toninho Canecão.
Em Rio Claro, o domingo é sempre de atividades na comunidade Alto da Serra do Mar. Mais de cem moradores - há perto de 200, ao todo - fazem parte da Assembleia de Deus do local. Seu Benedito converteu-se há 33 anos e hoje é diácono.
- Encontro muita paz na igreja - assegura.
Após o culto das manhãs de domingo, crianças e adolescentes costumam permanecer na igreja ensaiando cânticos.
- Os cultos também acontecem durante a semana e são momentos em que os moradores aproveitam para se reunir. Tem gente que não é evangélica, mas, mesmo assim, vem à igreja - comenta Seu Benedito: - Converso com os mais jovens para passar esses valores. Uma pessoa tem que cuidar da outra.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/bairros/especiais-bairros/quilombos-aguardam-definicao-sobre-posse-de-terras-mantem-viva-heranca-cultural-africana-10408341#ixzz2kuDccK1h

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