sábado, 9 de novembro de 2013

Entrevista - Zico - "A ditadura pode ter me tirado da Olimpíada"

Um dos maiores ídolos do futebol brasileiro, autor de mais de 800 gols, Arthur Antunes Coimbra, o Zico, foi um craque dentro de campo e também muito atuante fora dele. Como presidente do sindicato dos jogadores, nos anos 1980, correu atrás de garantir pré-temporada decente e férias aos atletas, além de lutar para que os clubes tivessem maior participação na administração do negócio futebol. Hoje, aos 60 anos, atualmente treinando o Al-Gharafa, clube do Catar, o “Galinho de Quintino” tem acompanhado, a distância, o levante dos jogadores no Brasil que demanda da CBF a participação de atletas no conselho de competições e federações e uma reformulação no calendário de jogos. “Já estava na hora de um movimento do tipo”, diz ele. Pai de três filhos e avô de cinco netos, Zico revela que sua maior frustração no futebol foi nunca ter disputado uma Olimpíada e, na entrevista a seguir, explica por que a prisão de seu irmão durante a ditadura pode ter lhe custado a participação nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1972.
 

Harold.jpg“Fui convidado pela CBF para fazer parte do comitê
da Copa de 2014. Não aceitei porque eu treinava o
Iraque e porque perdi a confiança no Ricardo Teixeira"
 
action.jpg"Não tem como fazer uma Copa aqui no Catar
no meio do ano, o clima é terrível. Só dá para
treinar a partir das 19 horas e bate 34°C”

Istoé -Você foi um dos maiores ídolos do futebol brasileiro e está aposentado há mais de 20 anos. O que gostaria de ter vivido dentro de campo e não conseguiu? 

ZICO -
Faltou ter participado de uma Olimpíada. Copa do Mundo é o grande evento de futebol, mas Olimpíada é o grande evento do esporte. E eu estive na boca. Fiz o gol que classificou o Brasil no pré-olímpico, em 1971, contra a Argentina. Estava na lista dos jogadores olímpicos, mas, de repente, não fui chamado para os Jogos de 1972. Ficou uma frustração grande. No futebol, é o que falta para mim. Até da Champions League eu participei, como técnico (do Fenerbahce, da Turquia). A forma como não pude participar da Olimpíada foi o que mais me chateou.
 
Istoé -O que houve?
 


ZICO -
Depois que ganhamos o pré-olímpico de 1971, em dezembro, entrei de férias. Quando retornei, o Zagalo e a turma da Seleção tinham chegado ao Flamengo. O Zagalo me chamou e disse que não iria contar comigo porque eu havia sido lançado prematuramente. Durante dois meses, então, ia ao Flamengo, trocava de roupa, não treinava e vinha embora para casa. Voltei a jogar na base do clube, ganhamos um torneio e fui artilheiro. Na época da convocação olímpica, achava que meu nome estaria na lista. Aí, os caras do Flamengo comentaram: “Pô, que sacanagem fizeram com você. Não te chamaram!” Foi a única vez na vida que deu vontade de parar de jogar. 
Istoé -O que o fez desistir da ideia? 

ZICO -
Meus irmãos me convenceram, dizendo que o Flamengo não tinha nada com isso. E eu não quis que acontecesse comigo o que aconteceu com eles. Em 1964, meu pai não quis assinar um contrato de gaveta para o Antunes e ouviu de um cara que o filho não iria para a Seleção. O Edu, em 1969, foi eleito o melhor jogador do Brasil e não foi para a Seleção. Pensei: “De novo acontecendo, agora comigo?” Aí, decidi voltar a jogar e graças a Deus tomei a decisão certa. Mas minha irmã, psicóloga, bate na tecla de que fui impedido de ir à Olimpíada por causa do regime ditatorial, do problema do meu irmão Nando (Fernando Antunes Coimbra), que foi pego pelos militares e passou cinco dias na Polícia do Exército, no Rio. A ditadura pode ter me tirado da Olimpíada.  
 
Istoé -Por que o seu irmão foi levado pelos militares? 

ZICO -
A nossa prima, Cecília Coimbra, foi presidente do Tortura Nunca Mais durante muitos anos. Ela tinha um relacionamento com um cara que era presidente de um grêmio (e foi colaboradora do MR-8). Aquele pessoal era visto de forma diferente. E meu irmão não saía da casa desses primos. O Nando era motorista de táxi e um dia minha tia passou mal. Ele foi levar uns remédios à casa deles. E os caras (militares) deveriam estar de tocaia. Aí, acharam que havia uma reunião lá e levaram todo mundo, menos minha tia e um primo adolescente. A gente acionou pessoas para tirar o Nando de lá. O Edu estava bem naquela época e todo mundo o conhecia por causa do futebol. Um primo era sargento da Aeronáutica e um cara do bairro era tenente do Exército. Então, quando sentiram que haviam pego a pessoa errada, o Nando foi solto. 
Istoé -Esses casos envolvendo seus familiares podem ter sido decisivos para o seu corte da Seleção olímpica? 

ZICO -
Na Seleção, naquela época, só tinha militar. O treinador da Seleção olímpica era o Antoninho, mas quem comandava eram os militares. Era na escola de educação física do Exército que se decidia tudo, onde a gente treinava e se concentrava. Tenho recordação do Nando chegando em casa, muito maltratado, barbudo, apanhou um bocado. Meus irmãos tiveram de tirá-lo de lá, para que a fisionomia dele melhorasse antes que meus pais o vissem.
 
Istoé - Como vê a mobilização dos jogadores brasileiros por uma melhor administração do futebol?

ZICO -
Já estava na hora de um movimento desse tipo. Há seis anos sabe-se que a Copa será no Brasil. Por que então os órgãos de classe não foram chamados para conversar sobre o calendário no ano da Copa? Tudo está sendo imposto. Então, tem de marcar posição como fizeram os atletas. A gente já vem lutando há anos por um calendário mais justo. Falo de cadeira, porque fui presidente do sindicato (dos jogadores) do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80, corri atrás disso.
 
Istoé -Como era a sua atuação? 

ZICO -
Lutamos para criar um sindicato. Eram necessários cinco estaduais para ter um nacional, e conseguimos. Hoje, existe uma representatividade total da classe. A elaboração do calendário nunca foi conversada com os atletas. Eu, quando capitão da Udinese, na Itália, nos anos 80, participava de reunião com dirigentes que queriam ouvir os jogadores. Sempre briguei por férias, pré-temporada decente. Em qualquer lugar do mundo você se apresenta depois de 30 dias de férias e só vai jogar uma partida oficial um mês depois. No Brasil, são dez dias de preparação. Em 1981, depois de o Flamengo ser campeão do mundo, o clube veio falar conosco, porque terminamos a temporada em 12 de dezembro e teríamos jogo já no dia 20 de janeiro. Teríamos só sete dias de preparação. Conversamos e fizemos um acordo. Mas, na maioria das vezes, não é assim.  
Istoé -O Brasil teve sua liga organizada por clubes, a Copa União, em 1987. A Premier League inglesa, administrada por clubes que romperam com a confederação local, só surgiu cinco anos depois. Hoje, porém, a Inglaterra evolui na organização e aqui houve estagnação.  

ZICO -
Aqui houve retrocesso. Foi por causa do retrocesso que a gente acabou perdendo os grandes jogadores, que estavam jogando no Brasil. Sem eles, começamos a perder o público. A Copa União, em 1987, foi sucesso de público mesmo com a transmissão dos jogos pela tevê. Mas, com o sucesso, começaram as vaidades. Essas vaidades acabaram por fazer com que deixássemos passar uma grande oportunidade de criar uma liga forte.
 
Istoé -Chegou a ser consultado na época em que se formava o Clube dos 13, no final dos anos 80? 

ZICO -
Em nenhuma reunião de dirigentes, de confederação ou federação, qualquer jogador foi convidado. Nunca fomos chamados para nada. Antes do Clube dos 13, quando eu era presidente do sindicato, procurei a Justiça do Trabalho para requerer vistoria nos estádios antes de começar o campeonato. E teve dirigente que se negou a nos receber. Outros disseram que não iriam deixar o campo e o estádio em boas condições para um clube grande ir lá e dar goleada. A mentalidade era essa! Os caras deixavam o campo ruim de sacanagem. Se hoje temos campos que são tapetes, é porque foi uma vitória de classe da gente lá atrás. Hoje, o jogador não escolhe clube para jogar por causa da camisa como antes, mas sim pela estrutura. Quem oferecer isso leva o cara.
 
Istoé -Como avalia a administração do produto futebol no Brasil? 

ZICO -
O futebol não é administrado com responsabilidade. Administram o futebol só para ganhar e não como se fosse o seu patrimônio. Não se pode ter clubes que aumentam suas dívidas a cada administração. Será que se tomássemos o futebol como nosso patrimônio iríamos permitir que a dívida só aumentasse? Falta essa responsabilidade.  
Istoé -Aceitaria ser presidente da CBF? 

ZICO -
Não é o meu objetivo. Estive junto da CBF duas vezes, porque acreditei como coordenador-técnico (da Seleção, na Copa de 1998) e como participante de um comitê que pleiteava a Copa de 2006 aqui no Brasil (foi presidente do Comitê Organizador da candidatura do Brasil para sediar aquele Mundial). Me dei mal no final, porque o Ricardo (Teixeira, então presidente da CBF) não foi capaz nem de vir até nós para dizer o porquê de ter aberto mão da candidatura do Brasil. Eu estava em um congresso da Fifa em Luxemburgo e de lá iria para Zurique. Mas o Ricardo um dia simplesmente ligou e disse: “Não precisa vir para Zurique porque estamos abrindo mão da candidatura.” Pô, foi uma porrada sem tamanho a maneira como fomos desligados. Ele deveria ter tido a honradez de falar com quem trabalhava ao lado dele com esse sonho. E a gente viajou pelo mundo todo em congressos da Fifa para fazer campanha.  
Istoé -Ricardo Teixeira se desculpou?  

ZICO -
Fui convidado pela CBF para fazer parte desse comitê da Copa de 2014 junto com o Ronaldo. Não aceitei. Primeiro, porque eu treinava o Iraque e também porque perdi a confiança nele (Ricardo Teixeira). Nessa ocasião foi que ele veio me pedir desculpas, explicou as razões. A CBF fez um acordo: retiraria a candidatura em 2006, assim como a África do Sul. Aí, o Brasil votaria a favor da África do Sul para 2010 e toda a África votaria no Brasil para 2014. 
Istoé -O país onde você vive, o Catar, foi uma boa escolha para sediar a Copa de 2022? 

ZICO -
 Não tem condição de fazer uma Copa aqui no meio do ano. Em julho, o clima é terrível, muita umidade, todos suam demais. Eles disseram que iriam refrigerar os estádios. Mas e os centros de treinamentos? Onde os caras vão treinar? Eu estive aqui, antes, quando dirigia o Iraque, em junho. Só dá para treinar a partir das 19 horas e mesmo assim bate 34ºC. De manhã, não dá para sair na rua, o calor é desesperador. A Copa aqui tem de ser em novembro, dezembro. E a Fifa já sabia disso, lógico.
Istoé -Você já treinou times na Turquia, no Iraque, Uzbequistão, Japão, na Rússia, Grécia e, agora, no Catar. Acostumou-se com essa vida de forasteiro? 

ZICO -
A gente acostuma. Na vida é o seguinte: não se pode desperdiçar oportunidade. Ela passa na sua frente e não se deve brincar com a vida. Eu tenho uma vida legal, corro atrás, tenho uma infraestrutura grande comigo que preciso manter. Gostaria de ficar de papo para o ar no Brasil, tocando o meu projeto da escola de futebol, levando os meus netos para a escola, passeando com eles e com a família, mas não dá.  
 
Revista Isto É

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