Publicado na edição impressa de VEJA
ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
Encenou-se no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no feriado de 21 de abril, em forma de peça teatral, uma celebração chamada “desenforcamento de Tiradentes”. Com advogado, promotor e júri popular, refez-se o julgamento do herói da Inconfidência Mineira, tudo mais ou menos conforme o que registram os autos de dois séculos atrás, mas com resultado inverso: no final o réu é inocentado. Ou seja, desenforcado. O melhor de tudo foi o título. “Desenforcamento” entra para o rol de mágicas palavras que o des inicial permite criar, invertendo significados e instituindo um mundo às avessas.
Em Apesar de Você, sua música contra a ditadura, Chico Buarque pediu: “Você, que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar”. Talvez já se invocasse o “desinventar” antes; depois, invocou-se mais ainda. Até foi acolhido no dicionário digital Aulete, que lhe dá o significado de “retroceder, retroagir na ação de inventar”, e oferece como exemplo um trecho do poeta Manoel de Barros: “É preciso desinventar os objetos. O pente, por exemplo. É preciso dar ao pente a função de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia”.
Numa de suas malucas aventuras no País das Maravilhas, Alice comemora seu unbirthday, como escreveu o autor do livro, o inglês Lewis Carroll. Unbirthday foi traduzida em português para “desaniversário”, bela palavra para significar um belíssimo não evento. E, por falar em belo, a escritora Ana Miranda deu o título de Desmundo ao romance em que narra a sina de uma órfã portuguesa enviada à força ao Brasil da época do Descobrimento para servir de esposa a um dos desbravadores da terra. “Desmundo” é mais que fim do mundo; é o mundo ao avesso.
É o que aguarda, no romance, a inocente Oribela. Há bons exemplos mais antigos. No livro Roteiro de Macunaíma, de 1950, o crítico M. Cavalcanti Proença escreveu que o personagem de Mário de Andrade resumia as “desvirtudes nacionais”. O próprio Mário de Andrade engendrou por sua vez outro oportuno des ao lamentar, num poema (Louvação da Tarde), a “pátria tão despatriada”.
Desvirtudes nacionais e despatriamentos da pátria continuam em cartaz, 87 anos depois da publicação de Macunaíma e setenta depois da morte de Mário de Andrade, completados neste ano, mas não é disso que se trata aqui – por que raios, ó insistente leitor, o colunista teria sempre de afundar no mar de nossas misérias públicas? Refugiemo-nos nas palavras. O tema de hoje são as que portam o prefixo des, começando com as inventadas mas não se esgotando nelas. O exímio criador/recolhedor de palavras que foi Guimarães Rosa espalhou por suas obras, entre muitas outras, “desamigo”, “desendoidecer”, “desdormido”, “desexistir”, “destriste”, “desfeliz”, “desviver”, “desfalar”.
No precioso livro O Léxico de Guimarães Rosa, da professora Nice Sant’Anna Martins, registram-se exatas 230 palavras com des, sinal de que o des é uma tentação irresistível para quem gosta de brincar com as possibilidades do idioma. Até “desmim” Guimarães Rosa inventou. “Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim mesmo, me tonteava, numas ânsias”, diz Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas.
O des traz em si a atração anarquista de pôr o mundo de cabeça para baixo. Mesmo as palavras em des perfeitamente acomodadas à língua, e acolhidas nos dicionários há muitos anos, nos chegam com novo viço quando nos detemos a examiná-las. A uma família melancólica pertencem “desamor”, “desventura”, “desencanto” e a fatal “desespero”, ao inverter o alto significado moral de “amor”, “ventura”, “encanto” e “esperança”. “Desassossego” vai no mesmo caminho.
“Desentendimento” é mais bruta; é eufemismo para briga. Ao contrário, de alto valor moral são “destemor” e “desassombro” ao opor-se ao temor e ao assombro. “Desatino” é humilhante; é perder o tino. “Desoras” só pode ter sido criada por um surrealista. Usa-se no sentido de “altas horas”, mas na pura raiz etimológica significa estar fora das horas – como assim, fora das horas? “Desasnar” é o inspirado sinônimo de aprender pela via de deixar de ser asno.
Uma ida ao dicionário, onde dormem as palavras em estado de inocência, revela maravilhas. O leitor não deve saber, como o colunista não sabia, que existe a palavra “desnamorar”, assim como “desnamorado”. A difícil arte do dicionarista revela-se em seu melhor na definição de “namorar” do Houaiss: “terem duas pessoas relacionamento amoroso em que a aproximação física e psíquica, fundada numa atração recíproca, aspira à continuidade”. Descontinuada tal relação, fica-se com a desconsolada figura do desnamorado, que se imagina desamparado, a desoras, desnorteado e desterrado de si mesmo, desfeliz.
Acho interessante o fato de como a nossa língua é rica em palavras. E o mundo está mudando tanto, que temos que inventar palavras novas, ou desinvestir algumas para darmos o devido significado e importância aquilo que ocorre em nosso dia a dia. Alguns religiosos dizem que a tecnologia veio para ajudar o homem a melhorar, otimizar seu trabalho, para fazê-lo ter menos esforço físico, e isso é verdade, e também, acaba que ele tem mais tempo livre, já que consegue fazer seu trabalho com máquinas, o problema é que alguns não sabem usar esse tempo. Ele deveria ser usado para praticar algum esporte, para aumentar e desenvolver seu intelecto. Mas muitos não sabem aproveitar isso, é aí que acontece a desumanização.
ResponderExcluirAgora esfaquear pessoas está virando moda, uma pessoa que simplesmente mata alguém da própria raça só pode estar vivendo como um animal, um desumano. Fora que estamos cada vez mais se afastando, tendo relacionamentos mais frios. Ao invés de estarmos evoluindo a cada dia, aprendendo mais, sendo mais solidários uns com os outros, estamos fazendo exatamente o contrário, estamos voltando a ser animais.
Davi Vieira 802