Com a maior seca em décadas, a Califórnia investe 1 bilhão de dólares em uma usina para tornar a água marinha potável. Seria uma saída para o Brasil?
Diante da seca que transformou campos de golfe e os outrora verdejantes jardins de Beverly Hills em plantações de cactos, a Califórnia — o estado mais rico do país mais poderoso do mundo — resolveu buscar no mar a solução para a falta de água. Até o fim deste ano, a usina de dessalinização que está sendo erguida em Carlsbad ao custo de 1 bilhão de dólares será a maior do Ocidente, com capacidade de produzir 190 milhões de litros de água potável por dia. A tecnologia para tornar a água do mar própria para consumo existe há mais de quarenta anos. Em alguns lugares desérticos, como Israel, a água dessalinizada responde por cerca de 80% do abastecimento total. No Kuwait, toda a água potável é fruto de dessalinização. Nos Emirados Árabes, a taxa é de 97%. Segundo a Global Water Intelligence (GWI), a dessalinização produz em torno de 80 bilhões de litros por dia no mundo, volume capaz de atender às necessidades de 10% da população do planeta.
O problema, no passado como no presente, é o preço. Toda a produção da usina da Califórnia, por exemplo, será suficiente para abastecer não mais que 8% da população de 3,3 milhões de pessoas de San Diego, que será beneficiada pela sua construção. Em São Paulo, ela atenderia apenas um bairro como Sapopemba, na Zona Leste. O custo da água dessalinizada já caiu para menos da metade, mas continua salgado. No início dos anos 1970, para transformar um único galão (3,7 litros) de água do mar em água potável gastavam-se 9 dólares (27 reais). Hoje, pagam-se 4 dólares — quase seis vezes o necessário para tratar a água que chega às torneiras dos paulistas (0,65 dólar o galão).
Mas, como é melhor pagar caro pela água do que ficar sem ela, a dessalinização é uma alternativa para quando todas as outras fontes secarem. "Funciona como uma apólice de seguro caso os reservatórios baixem demais", resume o economista e especialista em água Gesner Oliveira. Em San Diego, onde a conta média de água de uma família é de 75 dólares, o preço deve aumentar outros 5 para bancar a nova usina de dessalinização. Mesmo sem ela, a conta dos moradores da região já está entre as mais caras do país, dado que mais de 80% da água usada em San Diego vem de um aqueduto de 400 quilômetros que parte do Rio Sacramento, ao norte.
A Califórnia está praticamente sem chuvas há quatro anos. No mês passado, o governador anunciou um corte obrigatório de 25% do gasto de água em todo o estado. Em áreas com consumo mais alto, como o milionário bairro de Beverly Hills, o talho será ainda mais profundo. Lá, a economia terá de ser de 36% — e o consumidor que não conseguir atingir a meta estará sujeito a multas de até 1000 dólares.
Em 1992, o estado já havia implantado uma usina de dessalinização em Santa Bárbara para driblar uma grave estiagem. Durou pouco. Assim que as chuvas voltaram, o funcionamento foi suspenso por causa do seu alto custo. Com a nova seca, as autoridades estudam não só reativar a usina como construir outras duas, além da de Carlsbad — em Huntington Beach e em Monterey. Se a ideia prosperar, a Califórnia terá quatro usinas funcionando na próxima década.
A "solução californiana" pode parecer sedutora para São Paulo, a maior e a mais rica cidade do país, onde há meses os moradores convivem com torneiras secas e boletins diários sobre os níveis do volume morto. Mas aqui haveria outro obstáculo, além dos altos custos do processo: mais caro do que tirar o sal da água do mar é levá-la morro acima — e a capital paulista está localizada a longínquos 760 metros acima do nível do mar. "Para cada 400 metros de altitude que precisam ser vencidos, o custo de distribuição dobra", diz Renato Ramos, diretor de Negócio de Águas para a América Latina da Dow Química.
Um estudo feito pelo banco BTG em parceria com a empresa FM Rodrigues e a espanhola Axioma analisa os prós e os contras de instalar uma usina na Baixada Santista e conduzir essa água até a capital. Dados preliminares já foram apresentados ao governo estadual. Se um dia o estudo virar realidade, essa água custará o dobro da água mais cara que abastece hoje a capital — a que vem do Sistema São Lourenço, em Ibiúna, a 83 quilômetros da cidade. O preço seria pago por todos os consumidores da Sabesp.
De acordo com o secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do governo paulista, Benedito Braga, trata-se de investimento alto demais para ser usado apenas em períodos sem chuvas. "A dessalinização faz mais sentido para o abastecimento de cidades litorâneas", diz ele. "Para a capital, há outras alternativas a ser exploradas." As principais são o reúso (reciclagem do que já escoou pelo ralo) e a captação de rios da Serra do Mar, como o Itapanhaú e o Alto Juquiá. Esse último já vem sendo tratado com a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). Embora o uso da água desses rios também dependa de tubulações e bombas para chegar à capital, a altitude a ser vencida é de cerca de 200 metros, dois terços menos do que seria necessário ultrapassar para pegar água do mar.
Especialistas afirmam, entretanto, que no médio prazo a dessalinização pode ser uma solução para cidades como o Rio de Janeiro, que também conviveu com uma ameaça de racionamento no começo deste ano. Em fevereiro, o governador Luiz Fernando Pezão disse que estudava implantar uma usina de dessalinização na Zona Oeste da capital fluminense, por meio de uma parceria público-privada.
De acordo com John Lienhard, Ph.D. em dinâmicas fluidas e diretor do Centro para Água e Energia Limpas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a escassez de água tende a se agravar no mundo todo. "Até 2050, haverá 2 bilhões de pessoas a mais no planeta e a quantidade de água se manterá a mesma", afirma. Para alimentar tanta gente, será preciso produzir 70% mais comida do que hoje. Além da agricultura, o maior destino da água disponível, a produção de 1 quilo de carne, por exemplo, gasta o equivalente a quinze caixas-d"água de 1000 litros.
A agravar esse quadro, está a estiagem em escala global identificada pela Nasa em um estudo divulgado no início deste ano. Segundo a agência espacial americana, algumas áreas do planeta, que abarcam partes dos Estados Unidos, da China e da América do Sul, estão sendo atingidas por uma seca persistente, sem previsão de término. Junte-se a isso o fato de o ano passado ter sido o mais quente desde o início das medições pela agência, em 1880, e a conclusão óbvia é que nenhuma alternativa para captação de água pode deixar o horizonte dos países — ao menos enquanto as nuvens de chuva teimarem em não aparecer por lá.
Aqui também já tem
A água dessalinizada abastece dezenas de milhares de brasileiros. Quem já visitou o arquipélago pernambucano de Fernando de Noronha, por exemplo, usou água desse tipo. O abastecimento local depende totalmente da água salobra retirada de quarenta poços, que produzem diariamente 500000 litros de água pronta para beber, uma média de 100 litros por pessoa na alta temporada (menos de um terço dos 330 litros que cada carioca consome por dia).
A escassez faz com que os moradores da ilha passem horas com as torneiras secas ou recorram a caminhões-pipa da Compesa, a companhia de saneamento de Pernambuco, responsável pelo abastecimento. "O ideal seria dobrar a produção", diz o professor Kepler Borges, do Laboratório de Referência em Dessalinização da Universidade Federal de Campina Grande. Cinco anos atrás, a capacidade já havia sido duplicada, mas o aumento do número de turistas fez com que a água voltasse a faltar. A implantação e a reforma da usina consumiram 20 milhões de reais. Por ano, são gastos outros 600000 reais só com energia para fazê-la funcionar.
No sertão nordestino, um programa federal utiliza o mesmo método para atender 90 000 pessoas. Chamado de Água Doce, ele estabelece a condição de que as famílias beneficiadas estejam a até 1 quilômetro do poço, o que barateia a distribuição. A implantação de cada um dos poços e sistemas de dessalinização ligados a eles custa 200000 reais, mais 145000 reais por ano com manutenção e energia. Ao contrário do que acontece em Fernando de Noronha, nenhuma dessas comunidades depende totalmente da água dessalinizada. Ela serve como alternativa para complementar o abastecimento quando o nível dos açudes está baixo demais.
Revista Veja
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