domingo, 11 de janeiro de 2015

Crônica do Dia por Carlos Eduardo Rebuá

Por Carlos Eduardo Rebuá.


Hotel Ruanda (2004) é um filme dirigido por Terry George que relata a guerra civil ocorrida em 1994 naquele país da África centro-oriental, entre suas duas principais etnias (tutsi e hutus). À época houve quase nenhuma atenção do “Ocidente” (com a ONU se recusando em intervir no conflito, num pequenino país sem grandes “atributos” energéticos e minerais) aos eventos bárbaros que vitimaram um milhão de pessoas de um povo marcado – como toda a África – pelas perversas heranças do colonialismo e de sua versão “neo” do século XIX.


Conversando fortuitamente com um amigo acerca do filme no mesmo dia (07/01/2015) do ataque terrorista ao semanário francês Charlie Hebdo, foi quase automática a mesma indagação, feita há pouco menos de um mês, quando do ataque do Café em Sidney pelo muçulmano de origem iraniana Man Haron Monis (em 14/12/2014): por que o massacre de milhões de pessoas tem menor importância midiática e social do que o extermínio (atroz e condenável) de quinze pessoas (doze em Paris e três em Sidney)?
Rememorar o massacre de Ruanda trouxe à tona inúmeros outros fatos que foram negligenciados, esquecidos, negados pelos noticiários ocidentais, desde os mais distantes no tempo (os golpes empresarial-militares na América Latina, vivenciados por muitos de nós; as independências das ex-colônias em Ásia e África na segunda metade do XX, ou a eclosão da AIDS no continente mais miserável do planeta, antes de contaminar os brancos ocidentais, são alguns exemplos importantes) até os mais recentes, onde podemos citar não apenas o episódio australiano como também a epidemia de Ebola na África Ocidental que provocou cerca de 5 mil mortes em 2014 segundo a OMS, sendo a maior desde a descoberta da doença em 1976.
O que o filme, as mortes em Sidney e Paris envolvendo muçulmanos radicais e o Ebola têm em comum? Seja a ação de um indivíduo ou a morte de milhares, o que ocorre com o outro só tem importância quando nossa fronteira – cada vez mais encarnada na figura, concreta ou metafísica, do muro – é violada. O africano Mia Couto em Murar o medo (2011) já alertava que por muito tempo fomos (e ainda somos) ensinados (em casa, na escola, na religião etc.) que estamos mais protegidos quando não nos aventuramos para além da fronteira, dos muros de nossa língua, cultura, território.
Aumentando o escopo, a escala analítica, a despeito da vociferação costumeira dos conservadores de todas as horas, chegamos invariavelmente ao tema da reprodução do capitalismo em escala global, sob a roupagem de guerra ou de mercado ou quase sempre dos dois, produzindo e destruindo formas de sociabilidade, modos de vida, aliados e inimigos. Falar do fundamentalismo de rosto islâmico ou das guerras civis e epidemias na/da África contemporânea (cujo debate não pode prescindir da análise das indústrias bélica e farmacêutica, também profundamente vinculadas) é abordar, quer queira, quer não, as causas do “deserto do real” que é o Terceiro Mundo e suas subcategorias (Bem-vindo ao deserto do real, p. 49), cujo código postal tem endereço no núcleo hegemônico do capital (obviamente sem desconsiderar as dinâmicas internas de cada país), leia-se Estados Unidos-Europa-Japão e as experiências capitalistas autoritárias asiáticas como China e Arábia Saudita.
Se o ocaso da narrativa e da capacidade de intercambiarmos experiências, como vaticinou Benjamin em “O narrador” (1936), tem na profusão da informação como forma de comunicação uma de suas fontes, é imprescindível estarmos atentos sobre o que é o “novo” da vez dos telejornais, revistas e blogs, quais são os muros erigidos em termos de linguagem, identidade, sentidos. O massacre do Hebdo merece nossa atenção, nossas letras e lágrimas, mas se a informação só tem valor enquanto é “fresca”, tendo vida apenas nesse momento (p. 204), cabe indagar o que o frescor do ataque de Sidney, da chegada do Ebola na Europa e nos EUA, do extermínio de Paris deseja sustentar na superfície das coisas (as mobilizações da extrema-direita em França, Alemanha, EUA, nas ruas e nas urnas, contra minorias e estrangeiros, representam exemplos concretos), ou em outras palavras, quais antessalas são criadas a partir da cobertura “que não desliga nunca” de fatos que se não ocorressem do “lado de cá” do muro não ganhariam nem um precioso segundo de nossa atenção.
Não há dúvidas de que a islamofobia é uma chave de resposta poderosa forçando-nos a perguntar: por que os ataques de ocidentais contra ocidentais, seja de fanáticos ou da extrema-direita (como por exemplo o atentado de Oklahoma há exatos vinte anos ou os ataques na Noruega em 2011, que deixaram respectivamente, 168 e 92 mortos) têm uma cobertura mais “soft” do que ataques envolvendo árabes muçulmanos? O episódio de Sidney é paradigmático neste aspecto: um sequestrador e um saldo de 3 mortos tiveram uma colossal repercussão mundial durante o dia e semana adentro. Em setembro do ano passado a execução de 43 estudantes mexicanos por um cartel criminoso teve uma “leve” repercussão internacional. Será que atentados de organizações criminosas, de grupos neonazistas ou de seitas fanáticas têm um peso menor que aqueles cometidos por islâmicos?
Não custa alertar que a orquestração dos consensos em torno de agendas e práticas (neo) conservadoras e até fundamentalistas (termo que se tornou sinônimo de “Oriente” e de Islã) é diuturna e que as significações e justificações dos muros – linguísticos, sociais, econômicos, religiosos, seja em Berlim, Gaza ou Rocinha – são construídas socialmente, com os mass media jogando um papel estratégico sempre. Quando nos damos conta estamos sabendo mais sobre o “Mohammed” da vez do que sobre o que ocorre em nosso bairro, cidade, país.
Žižek ao abordar a guerra contra o terrorismo (que vale para todas as formas de guerra, simbólicas ou materiais, contra aqueles do “lado de lá” do muro) afirma que tal movimento: “(…) funciona então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que nada mudou realmente” (Bem-vindo ao deserto do real, p. 51). Talvez já não possamos mais afirmar que o objetivo seja apenas nos acalmar, uma vez que as ofensivas “bárbaras” têm crescido de maneira galopante, sobretudo depois das retaliações que se seguiram ao 11 de Setembro. Basta ligar a tevê ou abrir um jornal para notarmos que mais do que calma, as guerras contra o “outro” (o distante, o diferente) nos exortam à tomada de posição, num esforço de legitimação e de incremento da violência sistêmica em detrimento da violência emancipatória (Violência, p. 161).
Obviamente a questão não é defender que as doze vidas massacradas esta semana em Paris valham menos que as milhões de Ruanda em 1994. O que nos parece inadiável e urgente é refletir sobre silêncios, nuvens de fumaça – como por exemplo a “amnésia” das epidemias como motor do “mercado da cura” ou do Talibã e do Estado Islâmico como resultados diretos da ingerência estadunidense naquela região – e “alteridades interessadas”, capazes de erguerem muros para que nada mude realmente.


Referências
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas v. 1). São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 197-221.
COUTO, Mia. Murar o Medo [Texto apresentado na Conferência do Estoril, da Fundação Cascais, Portugal, ocorrida em 2011.]. Disponível aqui.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.
___. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.

Um comentário:

  1. Me sinto lisonjeado em colaborar com meu grande professor, amigo, pai... numa escola que me ajudou a me formar como professor e como gente...
    Abço.
    Carlos Eduardo Rebuá - Cadu

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