RIO - A boca é carnuda e aparece no retrato em preto e branco meio entreaberta, num leve sorriso, mostrando os dentes grandes. O cabelo é solto e despenteado e, na mão, ela segura um cigarro. Mas a arma da femme fatale está nos olhos: grandes, de ressaca, que tragam tudo, como Capitu. Tom Jobim trocou o verde pelo castanho, mas teria traduzido o olhar após cruzar com ele pela primeira vez numa tarde chuvosa no bar Veloso: “Mas teus olhos castanhos/Me metem mais medo que um dia de sol/É... Lígia Lígia”.
A foto ficou escondida por 19 anos, período em que a Lígia da música (na verdade, Lygia Marina de Moraes) esteve casada com o escritor Fernando Sabino, que morria de ciúmes dela. A fotografia, de 1971, foi feita por seu primeiro marido, o cineasta Fernando Amaral, e é um retrato da Lygia que fulminou corações e foi eternizada como uma das musas de Tom, que idealizou em “Lígia” um amor que nunca aconteceu. “Eu nunca sonhei com você/Nunca fui ao cinema/Não gosto de samba, não vou a Ipanema/Não gosto de chuva nem gosto de sol”.
O quadro está na parede de um dos quartos do seu apartamento, na Rua Joaquim Nabuco, em Ipanema.
— Fernando (Sabino) achava que era foto de uma devassa, de uma mulher boêmia com um cigarro na mão e olhar de mormaço — afirma a musa de grandes olhos verdes, que tem 1,75 de altura e nenhuma plástica.
Aos 68 anos, mãe do fotógrafo Luís Moraes (filho de Amaral) e avó de Sara e Lucas (de 2 e 4 anos), ela conserva, além da beleza, um ar brejeiro. Diretora da Casa de Cultura Laura Alvim desde 2007 (no dia 1º de fevereiro, como consequência da dança das cadeiras no governo do estado, ela deixará o cargo), Lygia conta, sentada na sala de seu apartamento, com vista para uma linha de mar sobre os prédios vizinhos e iluminada pelo sol de fim de tarde, que com Tom rolou só um beijo.
Era 1968 e Lygia tinha namorado, enquanto Tom era casado. O encontro, que teria motivado um amor platônico do maestro, é descrito no livro recém-lançado “Musas de músicas: a mulher por trás da canção” (Editora Tinta Negra), da jornalista Rosane Queiroz. Os dois se conheceram no Veloso. Ela tomava um chope com uma amiga, depois de deixar a escola onde dava aula. Tom, em outra mesa, passou a trocar olhares e, num certo momento, foi até ela.
— Eu disse para ele: “é uma coincidência encontrar você aqui. Acabei de sair do colégio e a Beth (filha do Tom) é minha aluna. Ele teve um ataque de rissos e falou: “é a primeira vez na minha vida que uma paquera vira reunião de pais e mestres" — lembra Lygia, rindo como se tivesse sido ontem.
Muitos chopes depois, ele chamou as duas para irem com ele até a casa de Clarice Lispector, no Leme, onde Tom terminaria de dar uma entrevista.
— Quase morri! Como pode, na mesma noite, conhecer o Tom e ser apresentada a Clarice pelo Tom? — diz Lygia, recordando que Clarice não gostou nada da história e que, horas depois, ele deu uma carona até sua casa, em Botafogo, num Fusca azul. — Tom me deixou em casa, me deu um beijo, claro, mas imagina se eu, uma menina, ia me meter nessa confusão!
POEMA ASSINADO
Tom deixou de lembrança daquele dia um poema, escrito na casa de Clarice Lispector, que foi emoldurado por Lygia e leva a assinatura A.C.J. “Teus olhos verdes são maiores que o mar/Se um dia eu fosse tão forte quanto você/Eu te desprezaria e viveria no espaço/Ou talvez então eu te amasse/Ai que saudade me dá/Da vida que eu nunca tive”. Já a versão de que Tom escreveu “Lígia” inspirado nela não é aceita por todos. Depois de lançar uma biografia de Fernando Sabino, o jornalista Arnaldo Bloch recebeu um telefonema de Chico Buarque contestando a tese.
Lygia diz que, tempos após o flerte no Veloso, Tom ligou para Sabino pedindo o telefone dela, sem saber que os dois estavam juntos. O escritor teria dado o número errado não só uma, mas duas vezes. Desse caso, ela afirma que nasceu o verso: “e quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano”. Parceiro de Tom, Chico disse que quem compôs esse verso foi ele.
Para Rosane Queiroz, Lygia não é menos musa de Tom com a polêmica:
— Para mim, o Tom tinha uma atração platônica pela Lygia, e isso ficou conscientemente ou inconscientemente impresso na letra — diz Rosane, recordando que Ruy Castro já registrou em livro que Tom vivia de olho em Lygia.
A entrevista para o “Musas de Músicas” aconteceu no Astor, em Ipanema, e Rosane lembra que Lygia chegou como se houvesse “comprado o bar”, parando o lugar:
— Ser musa é um estado de espírito, que Lygia traduz muito bem. Ela chega e não passa despercebida e, ao mesmo tempo, não faz questão de chamar atenção. Ela está sempre muito bem humorada, sorrindo e muito bem acompanhada. Tem amigos, amores... Musa é isso aí!
A vida da musa deu uma reviravolta na última semana, quando foi avisada pela nova secretária de Cultura, Eva Doris, que deixará a Laura Alvim, espaço com três cinemas, duas salas de teatro e galeria de arte. Ela ainda não sabe exatamente os rumos que a vida vai tomar a partir de fevereiro, mas quer continuar trabalhando, até porque “precisa viajar":
— Tenho duas coisas de que não abro mão: viagens e meu uísque — diz Lygia, que já foi dos “Estados Unidos ao Japão”.
BOM HUMOR E TERNURA
Ela está hoje no terceiro casamento. O primeiro acabou porque era muito jovem para lidar com os altos e baixos da vida de um cineasta. O segundo, com Sabino, terminou tumultuado, com o escritor retirando de sua obra todas as menções à ex-mulher. Foi decisão dela se separar, o que aconteceu depois de o escritor sofrer um massacre pelo lançamento do livro sobre a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello:
— Ali ele começou a ir ladeira abaixo. Ficou recluso, não via os amigos, não saía mais de casa. Ele não soube lidar, foi uma pena. E eu caí fora.
Ela e o marido José Luiz Peixoto, de 73 anos, moram em casas separadas.
— Lygia é muito inteligente, informada, e, acima de tudo, terna. Ela tem humor, um modo gostoso de viver. Ultrapassa bem as dificuldades, assim como faz com os maridos! — diz o advogado, espirituoso como a mulher. — Deve ter virado a cabeça de muitos homens...
Se pudesse, ela agora cairia fora é do Rio. Ainda toma chope na Fiorentina, mas não vai mais à praia, nem curte o verão carioca e o carnaval. As queixas vão da areia cheia ao jeito de vestir dos cariocas (“me incomoda essa coisa do Rio balneário”), passando pelos serviços (“as pessoas não são treinadas para nada”).
— O Rio acabou. Eu vivo dizendo isso, e as pessoas ficam injuriadas. A inadequação carioca extrapolou — reclama Lygia, cujas críticas costumam causar estranhamento. — Ainda carrego essa cruz de garota de Ipanema! Talvez por eu ser, eu possa reclamar.
Era fim de tarde na terça-feira e Lygia servia um uísque para ela e o marido na sala, uma espécie de galeria da sua história, com muitos quadros nas paredes (inclusive um de Tom), CDs na estante e livros espalhados pelo chão. Por fim, revela que pensa em escrever um livro com crônicas e memórias. O título? Talvez “Quase 70”:
— Seria uma condensação dessa vida tão eclética. Eu vivi, chorei, me apaixonei. Minha vida é tão divertida!
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/lygia-marina-de-moraes-dona-dos-olhos-que-metiam-medo-em-tom-jobim-15021745#ixzz3PVClMfrW
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