sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Te Contei, não ? - Carioca, um rio órfão



RIO — Na entrada do Largo do Boticário, no Cosme Velho, uma placa informa: “No Rio Carioca, banhavam-se os índios Tamoyo, que cultuavam a sua magia, pois suas águas, segundo as crenças, davam beleza às mulheres e virilidade aos homens”. Mas, centenas de anos depois, o que se vê ali perto é um líquido com forte cheiro de esgoto correndo. Com 7,1 quilômetros de extensão — sendo mais de quatro quilômetros escondidos embaixo do asfalto de três bairros da Zona Sul —, o rio que traz o nome do povo da cidade e se confunde com a sua própria história também é um retrato de seus contrastes: nasce límpido, no Parque Nacional da Tijuca, e vai ganhando ares de valão à medida que se aproxima das construções. E o que mais impressiona: o poder público não parece interessado nele. Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e Cedae, do estado, e Secretaria municipal de Meio Ambiente e Fundação Rio Águas, da prefeitura, jogam um para o outro a responsabilidade sobre o monitoramento da qualidade do Carioca.


— Não é um espanto que ninguém se responsabilize. As condições hídricas dos nossos rios e praias são a expressão da falta de política de preservação ambiental que temos. E o Carioca, por suas características — é um rio pequeno, de simples identificação de ligações clandestinas de esgoto —, seria um dos mais fáceis de ser revitalizado. Talvez o caminho seja o seu tombamento, para que efetivamente alguma autoridade tome conta — comenta o engenheiro sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Alexandre Pessoa Dias, autor de uma tese a respeito do rio.
O jogo de empurra se confirmou quando, há pouco mais de uma semana, O GLOBO entrou em contato com os órgãos para perguntar sobre o monitoramento do Carioca. A Secretaria municipal de Meio Ambiente se esquivou: “Não temos aqui nenhuma ação neste sentido”. O caminho então poderia ser a Fundação Rio Águas, também da prefeitura, cujo logotipo está estampado numa placa no Largo do Boticário. Mas não deu certo: “A fundação informa que não realiza monitoramento de qualidade da água e que o esgoto da região é de competência da Cedae”. Por sua vez, a Cedae informou: “Quanto ao lançamento de esgoto clandestino e lixo, sugerimos consultar o Inea, que faz este monitoramento”. E o Inea concluiu: “No caso do Rio Carioca, o monitoramento é da prefeitura”.
Enquanto ninguém se responsabiliza, o quadro que se vê é pouco animador. Uma equipe do GLOBO percorreu o curso do rio, acompanhada de dois antigos conhecedores do trajeto: o engenheiro de operação civil Antonio Carlos Cardoso Guedes, morador de Santa Teresa, e o presidente da Associação de Moradores da comunidade dos Guararapes, Eduardo Duca. Mesmo antes de começar a se perceber o lançamento de esgoto, o descaso já é visível. Na Rua Almirante Alexandrino, a Caixa da Mãe D’Água e o Reservatório do Carioca, respectivamente de 1744 e 1865, marcos na distribuição de água na cidade, estão abandonados, com gradis enferrujados e pichações. A Cedae não deu prazo, mas afirmou estar no planejamento da empresa a restauração de ambos, descartando, porém, que eles voltem a operar.
Num período de forte seca, mesmo na área do Parque Nacional da Tijuca é difícil ver um grande volume de água no Carioca. Apesar de se valer da área preservada, nem ali o rio está longe de polêmica. Nas últimas semanas, moradores de comunidades próximas quebraram uma estrutura montada dentro do parque, na beira do trajeto do trem que sobe ao Cristo Redentor, alegando que dezenas de milhares de litros seriam desviados do curso natural de descida para caixas d’água instaladas para manter o abastecimento da zona turística do Corcovado. O chefe do parque, Ernesto Viveiros de Castro, disse que o objetivo era aumentar a capacidade dos reservatórios, mas que o projeto está suspenso, aguardando uma posição da Cedae sobre a possibilidade de captação em sua rede. A Cedae, por sua vez, informou não ter relação com a iniciativa.
No caminho do rio, o presidente da Associação dos Guararapes se entristeceu ao ver o esgoto correndo em sua comunidade. E a cena é realmente estarrecedora. Além do cheiro forte, foi possível ver ratos circulando no meio do lixo e do entulho. Duca se queixa da Cedae, pelos problemas nas tubulações de esgoto:
— Queríamos fazer um mutirão de recolhimento de lixo, mas, com esse esgoto, não temos nem como entrar.
A Cedae informou que haverá “obras de renovação e assentamento de redes, a cargo da prefeitura", e que “assumirá a operação e manutenção destas redes”.
SOCIEDADE CIVIL SE UNE PELO RIO
Da Ladeira dos Guararapes, o rio ainda segue visível no Largo do Boticário, mas com a aparência de um depósito de esgoto. Depois, ele entra por baixo do asfalto de ruas como Cosme Velho, das Laranjeiras e Conde de Baependi, até desaguar na Praia do Flamengo. A Estação de Tratamento de Esgoto está em funcionamento, mesmo assim, há um odor forte no deque próximo ao Porcão Rio’s. No fim do ano passado, o Carioca ficou em foco após um estudo da Fiocruz ter constatado que nele estaria a origem de uma superbactéria, presente na Praia do Flamengo.
— O rio precisaria de toda uma modernização e reestruturação sanitária. Por que não podemos ter um dia um chafariz com água limpa, saindo aqui na Praia do Flamengo? — questiona Guedes, apaixonado pelo Carioca e por sua história.
No aniversário de 450 anos do Rio, a esperança pode estar em um grupo da sociedade civil que começa a se reunir para salvar o Carioca. Nele, estão Antonio Carlos, Duca do Guararapes e o engenheiro da Fiocruz Alexandre Dias.
— Seria um grande presente para a cidade, num ano emblemático, que salvássemos o Carioca. Vamos começar as reuniões mês que vem, e queremos produzir um projeto técnico que seja viável — adianta a jornalista e escritora Silvana Gontijo, que está à frente do projeto ‘‘O rio do Rio’’, que reúne moradores de bairros e comunidades da região.
CIDADE TERIA SIDO CRIADA EM SUA FOZ
O Rio Carioca é tão importante para a história da cidade que muitos afirmam ter sido em sua foz, no local onde é hoje o Aterro do Flamengo, que aconteceu a fundação do Rio de Janeiro, há 450 anos. O historiador Nireu Cavalcanti conta que, em 1532, foi construída ali a primeira casa portuguesa na Baía de Guanabara, pela expedição de Pero Lopes de Souza, a chamada Casa de Pedra. A origem do nome “carioca” tem várias versões, mas a mais aceita é a que o rio era a morada do peixe acari, e, na língua dos índios, casa é oca: daí, o rio “acarioca”.
Devido à qualidade de sua água, o rio foi o principal local de abastecimento para os navios desde o século XVI. Como a cidade acabou crescendo no entorno do Morro do Castelo, surgiu no século XVII a ideia da construção de um aqueduto, que foi concluído mais de cem anos depois. Em 1723, foi inaugurado o primeiro chafariz definitivo da cidade, no Largo da Carioca. Do projeto do aqueduto também fazem parte os Arcos da Lapa, usados posteriormente no trajeto do bondinho de Santa Teresa.


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