RIO — Nos últimos dias, a expressão desafiadora do rapper angolano Luaty Beirão tem sido reproduzida em cartazes, faixas e muros ao redor do mundo. Em greve de fome há 32 dias e preso com outros 14 jovens ativistas há quatro meses, em Luanda, ele se tornou a face mais visível de um movimento de contestação ao governo do presidente José Eduardo dos Santos, no poder desde 1979.
O clamor pela liberdade dos prisioneiros, acusados de tramar um golpe de Estado, mobilizou artistas e chama atenção para a repressão política em Angola no momento em que o país se prepara para celebrar seus 40 anos de independência, em novembro.
Antes restritos a Angola, os protestos já ecoam no mundo lusófono. Desde a semana passada, vigílias organizadas pela Anistia Internacional Portugal têm reunido centenas de pessoas — hoje haverá mais uma, em frente à embaixada de Angola em Lisboa. No Festival Literário Internacional de Óbidos (Fólio), que acontece até domingo na vila histórica portuguesa e tem como um dos curadores o escritor angolano José Eduardo Agualusa, debates e concertos se tornaram palco para manifestações sobre o país africano.
Além disso, uma petição pública pela intervenção do governo português no caso já conta com mais de 7 mil assinaturas, incluindo artistas e intelectuais como os cineastas Pedro Costa e Gus Van Sant, a atriz Maria de Medeiros e o filósofo Jacques Rancière. A presidente da Fundação José Saramago e viúva do autor português, Pilar del Río, enviou uma carta de protesto a José Eduardo dos Santos, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido que governa o país desde a independência, em 1975.
No Brasil, fora uma petição da Anistia Internacional e reações individuais de artistas e políticos, ainda não houve protestos, nem posição oficial do governo. O assunto estará presente em dois festivais literários com autores angolanos, em novembro. Entre os dias 4 e 8, o Fórum das Letras de Ouro Preto, que tem como tema a liberdade de expressão, receberá o poeta Lopito Feijoó. Nos dias 13 e 14, o Flinksampa, em São Paulo, terá Feijoó e mais quatro autores angolanos, entre eles Pepetela, um dos principais romancistas do país.
LIVRO SOBRE RESISTÊNCIA PACÍFICA PROVOCOU PRISÃO
Os ativistas foram presos em Luanda, em 20 de junho, quando discutiam o livro “Da ditadura à democracia” , do cientista político americano Gene Sharp, influente em movimentos de resistência não violenta em vários países, da Ucrânia ao Irã. Nesta semana, a editora portuguesa Tinta da China anunciou que lançará a primeira tradução do livro em Portugal — Sharp doou os direitos autorais à causa.
Para Agualusa, a acusação de que o grupo planejava um golpe de Estado é “absurda”. Colunista do GLOBO, ele dedicou seu texto desta semana à urgência da greve de fome de Luaty e falou sobre ele no Festival de Óbidos, no domingo, em debate com o moçambicano Mia Couto, que também já manifestou apoio aos prisioneiros.
— Conheço bem o Luaty e tenho enorme admiração por ele. Parece-me um homem bom, idealista, que desde há anos vem lutando pela democracia, pela justiça social, pela paz. Tem sofrido muito. Foi preso inúmeras vezes. Foi espancado. Nunca desistiu — diz Agualusa, para quem este é “o maior desafio já enfrentado pelo regime angolano desde o fim da guerra civil”, em 2002. — A prisão gerou uma ampla corrente de solidariedade, sobretudo entre os jovens criadores angolanos, e esta corrente não tem feito senão aumentar a cada dia.
A pressão, que aumentou em Angola com a falta de informações oficiais sobre o processo contra os ativistas, ganhou o mundo com a greve de fome de Luaty, internado em um hospital-prisão de Luanda. Depois de meses de silêncio das autoridades, nesta semana o julgamento foi marcado para 16 de novembro. Também perseguido e levado a julgamento (posteriormente suspenso) por denunciar a corrupção do governo no livro “Diamantes de sangue” (Tinta da China), o jornalista angolano Rafael Marques, que participará do Festival de Óbidos, diz que a prisão teve efeito contrário ao esperado pelo presidente: “chamou atenção em todo o mundo para a repressão política em Angola”.
— O governo quis atacar o elo mais fraco, mas acabou por atacar o mais forte, que é a juventude. Nunca a imagem do presidente Santos esteve tão fragilizada. Não teria havido essa mobilização se não fosse pelo empenho singular de Luaty, que continua a colocar sua vida em risco por uma causa que é de todos os angolanos — diz Marques, que defende a intervenção de Portugal e do Brasil no caso. — Seria importante que Dilma fizesse um pronunciamento em solidariedade ao povo angolano, não aos líderes que reprimem o povo.
POUCO INTERCÂMBIO ENTRE ANGOLA E BRASIL
A pouca repercussão da crise angolana no Brasil reflete a falta de intercâmbio cultural entre os dois países, apesar dos laços históricos entre eles. Ganhador do Prêmio Camões, Pepetela diz que “só o esforço das universidades tem contribuído para que alguma literatura africana faça seu estreito caminho” no país.
— A África só é conhecida no Brasil pelas desgraças. Teria de haver uma mudança nos meios de comunicação e mais esforço nas escolas para que as pessoas aprendam de uma vez que a África é um grande continente e não um país com capital na Nigéria — diz Pepetela, que esteve ao lado do MPLA na luta pela independência e classifica de “lamentável” a prisão dos ativistas e “preocupante” a greve de fome.
O julgamento dos ativistas será poucos dias após o aniversário de 40 anos da independência angolana, em 11 de novembro. Passado tanto tempo e tantos conflitos, porém, o país ainda enfrenta o desafio de se reconstruir, diz Lopito Feijoó:
— Para a sociedade, é difícil compreender como 15 jovens desarmados poderiam dar um golpe de Estado. É mais difícil construir do que destruir. Os campos minados ao longo de 40 anos não vão se desminar em dez. E o mais difícil é a “desminagem” da mente humana. Temos que sarar as feridas do passado.
O Globo