Negligência e irregularidades da mineradora Samarco, controlada pela Vale, causam a maior tragédia ambiental do País. O rastro da destruição permanecerá por anos e outros casos deverão ocorrer se o ritmo da exploração aumentar sem a fiscalização
Fabíola Perez (fabiola.perez@istoe.com.br)
A tragédia que tingiu de lama cinco comunidades do município de Mariana, em Minas Gerais, tornou-se em poucos dias o maior desastre ambiental da história do País. A enxurrada de barro, formada a partir do rompimento das barragens de Fundão e Santarém, na quinta-feira 5 de novembro, varreu a vegetação, contaminou o curso do rio Doce, matou peixes, arrancou de suas casas a população de Bento Rodrigues e causou estragos ao longo dos 500 quilômetros por onde passou. Estima-se que mais de 2 mil pessoas sejam afetadas pela tragédia. Pelo menos 600 moradores dos distritos devastados pelo mar de rejeitos ficaram desabrigados. No Espírito Santo, o governo pediu apoio do Exército para ajudar os cerca de 280 mil habitantes que terão o abastecimento de água suspenso pela alta concentração de lama no rio. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou uma multa para a mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, de R$ 250 milhões. Especialistas calculam, no entanto, que o valor para tentar reverter os estragos deva chegar a R$ 1 bilhão. “A tragédia deixou danos humanos e ambientais irreversíveis”, diz Ricardo Motta, professor e coordenador do laboratório de Gestão Ambiental e Reservatórios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tão urgente quanto assistir aos desabrigados é apurar como esse desastre de proporções incalculáveis poderia ter sido evitado, encontrar meios para evitar novos casos e punir exemplarmente os culpados.
DESTRUIÇÃO
O mar de rejeitos percorreu cerca de 500 km, devastou a fauna
e a flora e afetou populações de dois estados
A tragédia ocorrida em Minas não foi um acidente. Foi fruto do descaso com que tanto empresas privadas como o poder público tratam de questões como essas. Seja na mineração ou em outras atividades de potencial agressão ao meio ambiente, empresas e autoridades brasileiras insistem em não aprender com os desastres que poderiam ser evitados (veja no quadro da página 48). “Se nada mudar será um verdadeiro faroeste”, afirma Motta.
O Ministério Público de Minas Gerais, que abriu um inquérito para apurar os motivos do rompimento das estruturas, declarou que a mineradora subdimensionou o impacto da catástrofe. “Quando cobrada de um plano de ação emergencial, a empresa apresentou apenas formulações genéricas e os executivos afirmaram que os rejeitos não ultrapassariam o município de Bento Rodrigues”, diz Mauro Ellovitch, promotor de Justiça. Moradores e movimentos locais relatam que sequer uma sirene para anunciar o problema foi acionada. O resultado dessa má gestão foram famílias inteiras socorridas pelo Corpo de Bombeiros, animais lutando para não serem soterrados e um rastro imenso de destruição. A tragédia joga luz sobre um dos maiores problemas da atividade minerária no País: a falta de fiscalização. Segundo o Ministério de Minas e Energia, nos últimos quatro anos, cada barragem passível de fiscalização no Brasil recebeu, em média, uma visita de agentes do governo federal. Para cada fiscal federal, existem 124 empreendimentos.
Outro fato alarmante é que a possibilidade de ruptura estava prevista desde outubro de 2013. Segundo documento realizado pelo Instituto Prístino, formado por professores da UFMG, diversos aspectos técnicos da barragem foram colocados sob alerta. Ainda assim, a empresa continuou a explorar minério de ferro na região. O documento condenou, por exemplo, a existência de uma pilha estéril, espécie de acumulado de restos de rocha, muito próxima da barragem. A pilha poderia desabar e gerar um grande impacto sobre o complexo. O laudo técnico, porém, foi ignorado. O Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam) licenciou a obra transformando os riscos em condicionantes a serem cumpridas.
Em julho deste ano, a Samarco iniciou um processo de elevação da estrutura. “Já existiam riscos de a barragem se romper. A empresa atuou com irresponsabilidade ao não fazer as mudanças solicitadas desde aquela época”, afirmou Luiz Paulo Guimarães de Siqueira, membro da coordenação estadual do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Além disso, a produção de minério da Samarco cresceu 37% no último ano, o que faz aumentar também o volume de rejeito armazenado na barragem. Em muitos casos, explica o professor de hidráulica, saneamento e recursos hídricos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Jefferson Nascimento de Oliveira, ocorre uma mudança em relação ao projeto original, que obteve licença dos órgãos públicos para ser construído. “Aumenta-se a capacidade da barragem em função do aumento da produção. É preciso investigar se isso ocorreu.” O Ministério Público apura se a estrutura foi mal construída ou se houve problemas de manutenção. “Uma barragem dessa magnitude não pode romper, não é normal. Elas são construídas para resistir a abalos e intempéries”, afirmou Ellovitch.
De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a mineradora foi negligente tanto em relação à manutenção das estruturas que se romperam quanto no apoio às famílias atingidas pelo mar de rejeitos. “Eles perderam todas as fontes de renda, deixaram tudo para trás e relatam que a empresa está dificultando o acesso à informação”, afirmou Pablo Andrade Dias, coordenador estadual do MAB. Em 2014, a Samarco obteve um lucro de R$ 2,8 bilhões. A Vale, somente de abril a junho deste ano, teve um lucro de R$ 5,14 bilhões, e a BHP, US$ 6,42 até junho. “Mesmo com todo o ganho, a mineradora trabalha com aparelhos danificados, ferramentas inadequadas e sem uma política de segurança”, afirma Valério Vieira, diretor do Sindicato Metabase dos Inconfidentes.
Passados os primeiros dias da ruptura das estruturas, a mineradora chegou a divulgar que a lama tóxica não apresentava riscos de contaminação para a população. Embora a concentração de minério de ferro seja baixa, Ricardo Motta, da UFMG, afirma que o índice de óleos e graxas presente nos 62 milhões de metros cúbicos depositados no rio Doce contamina os peixes, depositando altas concentrações de óleo em seus músculos, que, por sua vez, representam riscos quando consumidos. “Será necessário elaborar um programa de monitoramento toxicológico da fauna pelos próximos dois ou três anos”, diz. Na quinta-feira, 12, a presidente Dilma Rousseff sobrevoou a região mineira e os municípios do Espírito Santo afetados. Além da multa do Ibama aplicada à mineradora, a presidente afirmou que o poder público também deve agir. Outra preocupação de técnicos e ambientalistas é que a tragédia em Mariana ganhe um novo capítulo. O funcionamento da barragem de Germano, a maior localizada no mesmo complexo, também está sob a mira do Ministério Público. Uma semana após a tragédia, a Samarco avaliou que a estrutura de Germano precisa de um reforço estrutural. A mina está com a licença de operações vencidas desde 27 de julho de 2013. A barragem de Santarém também está com a licença vencida desde maio de 2013. A mineradora, porém, havia apresentado os pedidos das licenças antes dos vencimentos. O agravante é que, de acordo com o MAM, entre 2003 e 2013, a mineração cresceu 500%. A atividade é um dos carros-chefe da economia mineira.
Houve, no entanto, uma piora na fiscalização. Hoje, a mineração é considerada uma espécie de “caixa preta” no estado. Em Minas, para cada um dos quatro fiscais de barragem do Estado existem 184 estruturas a serem monitoradas. Em 2014, apenas 34% das 735 barragens mineiras foram fiscalizadas. “A mineração é a principal atividade econômica do estado, exatamente por isso é preciso tornar o sistema mais transparente”, diz Motta, da UFMG. “As companhias fazem muito lobby e algumas prefeituras são cooptadas, é uma relação muito desigual.” O promotor Ellovitch também afirma que um dos gargalos da atividade é a falta de fiscalização. “O poder executivo municipal e até o estadual priorizam esforços para viabilizar a mineração a qualquer custo, as equipes sofrem pressões para liberar as atividades”, diz. A punição às empresas também é um problema. “O poder público não é eficiente na execução das multas. O Brasil tem um passivo bilionário de multas ambientais não executadas.” As multas aplicadas à mineradora Herculano pelo o rompimento de uma barragem em Itabirito (MG) nunca foram cumpridas.
Mesmo após diversas denúncias de irregularidades na construção e na ampliação das barragens de rejeito está em pauta no Legislativo desde 2013 o Projeto de Lei 5807/13, do deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), que define um novo marco regulatório para o setor de mineração no País. O projeto tem sido criticado por eliminar as proteções ambientais do texto anterior, de 1967. “Esse código vai trazer uma agenda de retrocesso e violar a soberania das comunidades de decidir se querem ou não a exploração dessas empresas”, diz Siqueira, do MAM. Além disso, está para ser votado em Minas Gerais o Projeto de Lei 2.946/2015, de autoria do governador Fernando Pimentel (PT), que reduz o tempo para a concessão da licença ambiental. Alterações que criam um ambiente jurídico ainda mais inseguro e propício para danos ambientais e conflitos sociais. Ao que tudo indica, tragédias como a ocorrida em Mariana encontrarão um terreno fértil para se repetir.
Fotos: Daniel Marenco/Ag. O Globo, Daniel Marenco/Ag. O Globo, Douglas Magno,CARLOS COSTA, REUTERS/Rogerio Santana/Handout
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