quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Crônica do dia - Intervalo


O ano, para surpresa ou susto de muitos, acabou.Claro, ainda virão a comemoração do Natal e as festas de ano-novo (antigamente se dizia também“ano bom”;porque será que isto caiu em desuso?), mas a árvore da Lagoa já cintila e já há um cheiro de fim de ano no ar. O sorriso e o calor no peito trazidos pelo 13.º se irradiam entre as multidões que vão e vêm diante das vitrines, os táxis ficam um pouco mais difíceis,o gerente da padaria entrega sorridente seu calendário para os fregueses fiéis, com um Cristo louro, de olhos azuis revirados, ilustrando máximas judiciosas e conselhos pios.

O Universo não está dando muita pelota, mas nós criamos datas e dias da semana e lhes atribuímos poderes mágicos. O ano podia terminar, como em várias culturas e religiões,em qualquer outro dia. Mas aqui, para a maioria de nós, a Terra completa seu movimento anual em 31 de dezembro e encaramos essa passagem como algo significativo para nossas vidas, mesmo que não creiamos em astrologia. Ano-novo, vida nova, dizemos, quase sempre tomando a decisãode parar de fumar e limitaroconsumo de chope a quatro tulipas por sábado.Também achamos vagamente que a vida vai melhorar, que nossa atitude perante o mundo também vai melhorar,tudo vai ou devia melhorar no ano-novo. No Brasil, abriremos o intervalo anual entre réveillon e o carnaval– ou, mais realisticamente, a Semana Santa, quando, se espreguiçando, o gigante adormecido encarará o batente, em um ano mais feliz que o velho. Infelizmente, não dá para pôr muita fé nisso. A Europa está entrando no grande inverno de seu descontentamento, certamente bastante pior que o lembrado na peça de Shakespeare que cunhou a expressão.Por enquanto,aqui de longe, a gente nem imagina o que está se abatendo sobre países como Portugal, a Espanha e a Grécia. As finanças mundiais são uma gigantesca obra de ficção pervertida, com uma acumulação indecente de dinheiro virtual gerado pelo dinheiro, nas mãos de pouquíssimos, que jamais vão sair perdendo. A situação,criada com a decisiva colaboração de governos e burocracias incompetentes, levará amedidasespantosas,entre as quais cortes de 25% nos salários de funcionários públicos que ainda tiverem a sorte de permanecer empregados e a revogação de direitos adquiridos ao longo de gerações. Acho que nem um povo ovino, como nós, suportaria uma série de golpes tão atordoante.

No entanto, é o que deve acontecer, com certeza entre greves, manifestações, quebra-quebras, atentados e crises políticas.Na internet têm aparecido sugestões para a aplicação dos bilhões de euros que serão emprestados (a juros “saudáveis”) aos países mais aflitos. Dar-se-iam (estou chutando os números, de que não lembro,mas não faz diferença) € 15 milhões, por exemplo, a cada português.O dinheiro seria dividido como povo diretamente, solucionando de uma tacada os problemas do país. Mas claro que,assim que o cidadão tivesse seus 15 milhões,uma bica (cafezinho, lá em Lisboa) já iria custar, na primeira hora da nova “riqueza”, uns € 20 mil, fechando o dia a uns € 400 mil. E a última garrafa de um tinto modesto, na mercearia, seria arrematada por uns 15 milhões mesmo, depois de uma concorrência acirrada entre dois compradores. Isso porque esse dinheiro é o arroto d Mamon, não tem existência física, é uma virtualidade perversa,um jogo demoníaco de créditos e débitos, que volta e meia leva a crises como a da famosa bolha imobiliária americana e suas consequências (perguntem se há algum dos donos do finado Lehman Brothers passando fome) e agora à europeia. Não pode ser sacado, não é metal sonante (nem bem de consumo, como parecem pensar os que, aparentemente, acham que dinheiro pode ser comido), só tem existência virtual. Isto leva à necessidade de manutenção de um equilíbrio onde sempre a parte mais fraca é que paga a conta. O lucro não pode parar,porque o efeito sobre o restante da economia seria desastroso, um cairia atrás do outro.

Alguns dos elos da cadeia sucumbirão à volatilidadequelhes éprópria, vão para o espaço, mas nada de fundamental mudará. Bancos vão quebrar, financeiras vão falir, acionistas vão ter grandes perdas, muita gente (não os ricos) vai ficar na miséria,mas o esquema básico permanecerá, os mesmos continuarão mandando e continuará a haver dinheiro fictício à custa dos súditos. Ainda é cedo para previsões, nessa barafunda em que os acontecimentos se transformaram, até porque a Alemanha, ao contrário do que acham diversos, não quer e não vai sair perdendo nessa. Quem pensa assim,non conhece oAlemanhas,
está verrückt, maluco. Enquanto Portugal, Espanha, Grécia e outros se afundavam lentamente sem perceber, ou ameaçavam afundar, a Alemanha continuava com sua esplêndida economia. Como não existe almoço de graça, o almoço dela muitas vezes acarretou dietas restritas em seus parceiros.

O Brasil também faz parte do sistema e não deveremos ficar fora dessa, não vai escapar ninguém,nem os chineses. Mas torçamos para que o tranco nos seja leve. Por enquanto, em nosso futuro, sem otimismo ou pessimismo, só temos as certezas inelutáveis da existência, lembradas por um sábio Benjamin Franklin: death and taxes, morte e impostos. Dos impostos, melhor não falar, antes que criem um imposto para quem falar em imposto.A morte, esta prosseguirá sem grandes percalços, no descalabro da saúde pública, na facilidade com que se mata impunemente e na epidemia de dengue que, dizem autoridades com o ar casual de quem comenta que amanhã vai chover, se abaterá inevitavelmente sobre o Rio de Janeiro. Trata-se de uma doença grave, que mata, e se fala numa epidemia “inevitável” como se isso não fosse nada. Vai morrer gente,mas tudo bem, está previsto. Dá um pouco de medo do que vai acontecer depois do intervalo.

João Ubaldo Ribeiro 

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