quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

"Gosto de roçar a minha Língua na Língua de Luiz de Camões ..." Uma proposta de reflexão sobre o emprego da palavra "porque"


Por que aqui? Por que lá?

Uma proposta de reflexão sobre o emprego da palavra 'porque'

Por Prof. Leo Ricino

Que usuário de nossa língua não para na hora de escrever uma das múltiplas formas do "porque"?! Antigamente, aqui no Brasil, se ensinava que em perguntas era separado, "por que", e em resposta era junto, "porque". Mas, infelizmente, a coisa não é tão simplória assim. Vamos ver como empregamos aqui e como é empregado em Portugal e possivelmente, por extensão, nos outros seis países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP: Angola, Cabo Verde, Guiné- Bissau, Moçambique, Timor Leste e São Tomé e Príncipe.

Para tanto, como sempre fazemos nos artigos que publicamos aqui, vamos nos socorrer das opiniões dos vários pensadores da nossa língua, através do uso de manuais portugueses e brasileiros. Comecemos com os portugueses.

Aliás, acabo de receber três manuais portugueses: Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa - Falar e escrever sem erros, de Elsa Rodrigues dos Santos e D'Silvas Filho , da Editora A Esfera dos Livros, 2011; Saber Escrever Saber Falar, de Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão, da Editora Dom Quixote, 5ª ed., 2005, e, das mesmas autoras, Saber usar a nova ortografia, da Editora Objectiva, 2011, porém só o primeiro enfoca o assunto deste artigo.

Partindo da dúvida "Quando é que se emprega cada uma das seguintes formas: porque, por que e porquê?", os autores D'Silvas e Elsa começam dizendo que se usa "porque" quando for "conjunção causal ou final ou advérbio interrogativo (em orações interrogativas diretas ou indiretas)". E apresentam os seguintes exemplos:

1) "Porque te demoras tanto a arranjar-te?"
2) "Porque não vais ao cinema connosco?"
3) "Diz-me porque não me vieste visitar."
4) "Eis porque estou tão cansada."

Nas duas primeiras frases, interrogativas diretas, e nas duas seguintes, que os autores tacham de interrogativas indiretas (a maioria dos nossos autores também tacham assim), eles dizem que o "porque" é advérbio interrogativo e como tal deve ser grafado dessa forma, junto. Em final de frase, com o "porque" oxítono, esses autores também dizem que é advérbio interrogativo e apresentam os seguintes exemplos:

5) "Estás zangado porquê?"
6) "Diz-me porquê."

Em todos esses seis exemplos portugueses, no Brasil usaríamos a forma separada, seguindo já um tradicional ensinamento de que, se após a expressão analisada se puder colocar implícita ou explicitamente as palavras "razão" ou "motivo", o "porque" deve ser separado.

Em seguida, os autores apresentam um caso em que o "porque" deve ser usado separadamente, afirmando que o primeiro elemento (por) é preposição e o segundo (que), pronome interrogativo:

"Por que esperas?"

Pessoalmente, acho sutil a diferença (se é que há diferença!) entre, digamos, o primeiro e o segundo exemplos que deram, "Porque te demoras tanto a arranjar-te?" e "Porque não vais ao cinema connosco?", com este último caso, "Por que esperas?", por mais que os autores tentem explicar que esta última frase "É uma oração interrogativa direta equivalente a 'por que coisa esperas?'. É diferente de "porque esperas?", pois, na primeira frase há um objeto "coisa, facto, acontecimento" e não implica causa, em "porque esperas" não há objeto; a frase implica causa". Só não falaram que a segunda frase, "porque esperas?", também é uma interrogativa direta.

A provável sutil diferença é que eles querem que "Por que esperas?" seja entendido por nós como se fosse "Pelo que esperas?" ou "Por qual acontecimento esperas?". Como a língua é democrática, cada um pode dizer do jeito que quiser dentro do padrão da norma culta. Eu preferiria dizer dessas formas, pensando no leitor e garantindo a ele a clareza da pergunta. Aliás, Antenor Nascentes e José Oiticica sempre ensinaram: uma frase deve ser entendida como ela está e não aquilo que imaginamos (ou querem que imaginemos) que ela quer dizer.

Eles apresentam outros exemplos em que a expressão em análise é conjunção e aí não há divergência conosco. Os outros dois manuais recebidos, como eu disse antes, não tratam do emprego do "porque", porém Vasco Botelho do Amaral, autor português, no seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, 1938, Editora Educação Nacional, Porto, também demonstra estranheza com esse emprego separado:

"Há quem prefira escrever também 'por que' no começo de frases interrogativas directas: 'Por que fizeste isso?' Alegam que depois da locução se subentende razão, motivo: 'Por que (motivo) fizeste isso?' Note-se que alguns autores assim praticaram. E não deixaremos de referir a-propósito que representa brasileirismo a atracção de por que ao sujeito, em interrogações como: 'Por que você está doente?' Entenda: 'Por que está você doente?' Escrever-se-á porque, se a palavra for conjunção causal ou final." (P. 183/184)

Advérbio interrogativo de causa" ou "da causa"?

O problema, para mim, é aceitar qualquer palavra como interrogativa. Os próprios pronomes interrogativos me parecem mais lógicos como indefinidos. Silveira Bueno, na ótima Gramática Normativa da Língua Portuguesa, Saraiva Editores, São Paulo, 7ª ed., 1968, diz:


"Nota - Advérbios interrogativos
- A Nomenclatura Gramatical
Brasileira achou de denominar
advérbios interrogativos: de lugar
- onde?; de tempo - quando?; de
modo - como?; de causa - por que?
Registramos aqui a inovação, porém
não a aceitamos. Não há palavra,
seja lá qual for, interrogativa. É a
frase que é interrogativa." (p. 148)
(grifo nosso)

Portanto, em relação aos advérbios interrogativos, minha posição é algo apenas para reflexão com os colegas professores. Aceitoos como adjuntos adverbiais interrogativos do lugar, do tempo, do modo e da causa e não "de lugar", "de tempo", "de modo" e "de causa", como apregoa a NGB.

Esclarecendo melhor. Nas duas primeiras frases dos exemplos do manual português:
1) "Porque te demoras tanto a arranjar-te?"
2) "Porque não vais ao cinema connosco?",

eu não encaro o "porque" como advérbio interrogativo de causa, como em "Morreu de inanição" ou "Caiu de velhice", em que "de inanição" e "de velhice" são realmente a causa de "Morreu" e de "Caiu".

Em "Porque te demoras tanto a arranjar-te?", com o "porque" junto ou separado, eu prefiro ver nesse "Porque" uma interrogação que quer saber a causa da demora e não que esse "porquê" seja a causa de "demoras", como nos exemplos que dei em que "de inanição" e "de velhice" são a causa de "Morreu" e "Caiu". Ou seja, a interrogação, no caso, quer esclarecer qual é a causa mas não é a própria causa. Se a resposta fosse, por exemplo, "Eu me demoro porque preciso maquiar-me cinco vezes", aí sim teríamos a causa de "demoras": "porque preciso maquiar-me cinco vezes".

Portanto, aceito que esse "porque" é advérbio interrogativo, mas não de causa e sim da causa. Há uma diferença muito nítida aí! Em outras palavras, os "advérbios de" expressam a circunstância exata: um advérbio de tempo expressa tempo (Cheguei cedo hoje.), um advérbio de lugar expressa lugar (Fui ao Mercado Municipal.), um advérbio de causa expressa a causa ( Não vim trabalhar hoje por falta de condução).

Ora, também na pergunta "Porque não vais ao cinema connosco?", esse "Porque" não expressa de fato a circunstância de causa mas sim uma interrrogação para se saber qual é a causa. Por isso, entendo que é "advérbio interrogativo da causa"" e não "de causa". A mesma coisa em relação aos demais advérbios interrogativos: advérbio interrogativo do lugar, do tempo e do modo.

E os "porques" das frases analisadas são tão interrogativos da causa, da razão, do motivo que nos dois exemplos poderíamos colocar uma dessas palavras, mantendo o sentido exato das orações e, já abrasileirando, assim elas ficariam:

"Porque razão te demoras tanto a arranjar-te" e "Por que motivo não vais ao cinema conosco?"

Aliás, com esse emprego, penso que se resolveria o problema colocado acima por Silveira Bueno: aí teríamos uma frase interrogativa e dentro dela o advérbio interrogativo da circunstância e não a própria circunstância. Essa locução adverbial da causa, agora representada por "Por que razão" ou "Por que motivo", é composta pela preposição "Por", pelo pronome interrogativo "que" e pelos substantivos "razão" e "motivo". Prefiro essa forma, com os substantivos grafados ou ocultos.

NOVOS EXEMPLOS PORTUGUESES

E para que tenhamos mais exemplos portugueses e constatemos que é difícil estabelecer um critério de emprego, vejamos como o excelente escritor luso Miguel Sousa Tavares, no ótimo Equador, indispensável para se ter uma noção do modus operandi do domínio português em suas possessões africanas, especialmente São Tomé e Príncipe, Ed. Nova Fronteira, 13a ed., 2003, empregou os "porques":

1) "Não basta apregoar ao mundo que se tem um império - concluía ele - é também necessário explicar por que se merece tê-lo e conservá-lo". (p.15)

2) "- Seguramente que não. Não é pra mim e não vejo porque haveria de ser para si."(p. 20)

3) "- Nem eu sei bem para quê nem porquê. Talvez para retomar uma conversa inacabada, numa noite de luar." (p.30)

4) "- Porquê inviável? " (p. 62)

5) "...se aflorasse o assunto da posição de privilégio que conquistara junto da mulher que, vá lá saber porquê, metade dos homens de Lisboa aspirava poder conhecer mais intimamente. " (p.69)

6) "Mas, para onde, Luís? E porquê ?"(p. 90)

7) "De caminho, o general perguntava aos ingleses por que não iam eles antes fiscalizar os navios franceses que, em total liberdade, se..."(p. 115)

8) "- Então, porque não partem? Por que desembarcam todos os anos dois ou três mil e não regressam senão uma ou duas dúzias a Angola? - Porque não querem!" (p.176)

9) "De quem sabia ainda ao que viera, porquê e para quê."(p. 209)

E há muitos e muitos outros porém por esses já é possível ter-se a ideia de que o emprego do "porque" acaba sendo uma preocupação maior dos professores de português do que dos escritores e demais usuários da língua propriamente ditos. Em todos os exemplos, mas todos mesmo, caberia a palavra "razão" após o "porque", porém ora o autor usa separado, ora junto. Fica difícil estabelecer qual o critério empregado. E também, mais em Portugal do que aqui, usa-se uma forma interrogativa enfática. Vejamos exemplos:

a) "- Óptimo, então. Mas diga-me lá, por curiosidade, por que é que o meu primo acha que você pode ser uma companhia não muito recomendável?" (p. 20)
b) "Por que é que o João não aparece para me salvar desta trapalhada?" (p. 21)
c) "- Por que é que você nunca se casou?" (p. 22)
d) "O que é que é estranho: que eu nunca me tenha apaixonado ou que nunca tenha casado, mesmo não estando apaixonado?" (p. 22)

No Brasil também usamos expressões semelhantes, como na frase típica da linguagem informal do cotidiano "Por que que você fez isso?!"

Os gramáticos brasileiros também chamam algumas vezes esse "porque" de advérbio interrogativo de causa. Vamos ver alguns dos seus exemplos:

Rocha Lima, na Gramática Normativa da Língua Portuguesa, José Olympio Editora, 42ª ed., RJ, 2002, p. 335, falando sobre pronomes interrogativos, afirma que "Há interrogativos adverbiais" e dá alguns exemplos, dentre eles "Porque está tão triste?". Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, Ed. Nova Fronteira, 5ª impressão, 2001, p. 543, também falam em advérbios interrogativos de causa, mas seus exemplos trazem o "porquê" separado: "Por que não vieste à festa?" e "Não sei por que não vieste à festa". Vittório Bergo, no indispensável Pequeno Dicionário Brasileiro de Gramática Portuguesa, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1960, p. 3, diz que "Existem advérbios usados particularmente como interrogativos" e dentre eles dá o de causa: "Porque te mortificas com isto?" E faz, entre parênteses logo após esse exemplo, a seguinte observação: "Neste caso autores há que escrevem separadamente por que, considerando o que pronome; e como tal o consigna o Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras".

Esse Pequeno Vocabulário é o pai do atual VOLP Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, também publicado pela ABL.

Domingos Paschoal Cegalla diz taxativo na sua Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, Cia. Editora Nacional, SP, 1984, 25ª ed., p. 222, numa observação após falar dos advérbios interrogativos: "Seria mais acertado grafar o advérbio interrogativo por que numa só palavra: Porque fez isso? Perguntaram porque me atrasei.". Porém, no seu indispensável Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira, SP, 2002, p. 322, no verbete próprio, sem qualquer menção a se grafar o "porque" junto, diz no item c): "é possível subentender uma das palavras motivo, causa, razão, sendo então por que advérbio interrogativo: Por que raspou o cabelo? / Por que abatem as árvores?"

O problema é que no item b) do mesmo verbete Cegalla diz praticamente a mesma coisa, só que classifica o "porque" de outra maneira: "b) equivale a por qual, por quais, sendo o que pronome indefinido: Quis saber por que motivo raspei o cabelo". O que será que faz no "por que" desse último exemplo o "que" ser pronome indefinido e não nos dois anteriores? A ausência do substantivo "razão", "motivo"? Talvez!

CONCLUSÃO

De tudo que ficou dito, mas não necessariamente claro e sem esgotar o assunto, é claro, penso que o melhor é adotar o critério largamente difundido no Brasil: se após o "porque" se puder colocar, mentalmente ou de forma escrita, a palavra "razão", esse "porque" deve ser separado. Não se conseguiu, é junto e pronto.

Assim, em todas as frases abaixo, como se pode ver, é possível colocar a palavra razão, seja a frase interrogativa ou a simples expressão de uma dúvida do locutor, o que provoca que o "porque" seja separado:

1) Por que (razão) você faltou à aula ontem?
2) Nem sei por que (razão) faltei à aula ontem.
3) Fiz desse jeito e não sei por quê! (razão)
4) Por que (razão) demorou tanto a chegar aqui hoje?

Como se pôde reparar, neste artigo nem me preocupei com o emprego do substantivo "porquê", sinônimo de causa, motivo. Também não vimos o emprego do "porque" quando conjunção, já que seu uso é muito natural e espontâneo, não oferecendo dificuldade para o usuário da língua.
Os gramáticos brasileiros também chamam algumas vezes esse "porque" de advérbio interrogativo de causa


Talvez um caso complicado do emprego do "porque" junto mas em frase interrogativa direta seja quando a pergunta é feita já sugerindo a própria resposta, que deve ser algo como um "sim", um "não", um "é possível", um "talvez", etc., em frases como "Ele faltou hoje porque não havia condução?" ou "A empreiteira ganhou a licitação porque deu propina?". Em ambos os casos, a resposta já é sugerida na pergunta, e não há possibilidade de se colocar a palavra "razão" após o "porque". Logo, seguindo a regra geral, deve ser escrito numa palavra só.

Saiba +

Optamos por listar as edições encontradas mais facilmente nas grandes livrarias, ainda que não fossem exatamente as citadas pelo professor Leo Ricino em seu texto.

Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa
Autor: Domingos Paschoal Cegalla
Editora: Lexicon
Páginas: 429

Novíssima Gramática da Língua Portuguesa
Autor: Domingos Paschoal Cegalla
Editora: IBEP Nacional
Páginas: 696

Nova Gramática do Português Contemporâneo
Autores: Celso Cunha e Lindley Cintra
Editora: Lexikon
Páginas: 800

Gramática Normativa da Língua Portuguesa
Autor: Rocha Lima
Editora: José Olympio
Páginas: 658


Revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa
Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa- Falar e escrever sem erros
Autores: Elsa Rodrigues dos Santos e D'Silvas Filho
Editora: A Esfera dos Livros
Páginas: 336

Prof. Leo Rícino é mestre em Comunicação e Letras e professor da Fecap - Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, instrutor da Universidade Corporativa Ernst & Young. Ministra também cursos no Sindicato dos Professores de São Paulo. Conhecimento Prático


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