A pior coisa do Natal é a obrigação de ser feliz. Haja data complicada. À medida que os dias de dezembro são devorados pelo calendário, a pessoa se defronta com a questão inexorável: onde passar o Natal? Com quem? É mais cruel que o Carnaval. Sim, nos dias de Momo também impera a obrigação de exalar felicidade. Os precavidos entram numa escola de samba meses antes e desfilam na avenida. Em última análise, os solitários podem comprar ingresso para um baile, saltitar num bloco ou rasgar a fantasia num trio elétrico. Até mesmo se faz retiro espiritual. É socialmente aceitável. O Natal é bem mais exigente. Há de ter alguém para partilhar a data. Ou a pessoa sente que tem alguma coisa errada.
Pode parecer uma visão bem negativa do Natal. Admito que é. Já passei pelo trauma. Meu pior Natal foi aquele em que toda a minha família decidiu comemorar na casa de meu irmão Ney. Minha mãe ainda era viva. Eu morava numa chácara distante, de difícil acesso na época, a mais de 200 quilômetros da casa fraterna. No final da tarde do dia 24, quando provavelmente o peru já estava no forno e minha cunhada Bia, excelente cozinheira, tirava um pudim da forma, tomei banho, me arrumei e entrei no carro repleto de presentes. Dei a partida. E o traidor do carro não pegou. De jeito nenhum. Um vizinho até me ajudou a empurrá-lo ladeira abaixo, para ver se funcionava. Não teve jeito. Mecânico em final de tarde do dia 24 era impossível. Meu seguro não oferecia ajuda do tipo. Voltei para casa. Telefonei avisando que não ia. E fritei dois ovos para passar a noite de Natal. Teria me conformado se não fossem as luzes nas casas mais próximas. O som de risadas. Alegria. Meu espírito natalino foi para o ralo. Nunca tive tanta raiva da felicidade alheia. Confesso, desde então peguei certo trauma do Natal. Não sou o único. Tenho um amigo cuja família simplesmente não se importa com a data. É raro, mas existe. Na infância, poucas vezes ganhou presentes. Mesmo assim, das tias. Encontrou uma maneira especial de passar pela noite fatídica sem pensar em suicídio – cujo número costuma crescer na data. Arrumou trabalho como Papai Noel em ceias particulares. Famílias ricas costumam contratar atores para alegrar as crianças enquanto se esbaldam nos comes e bebes. De barriga falsa, barba e gorro, meu amigo circula de mansão em mansão. Passa a noite levando alegria aos pequeninos. Ou tentando.
– Em muitas casas, as crianças estão tristes. Entro, faço “ho ho ho” e ninguém dá a mínima.
Dezembro é o mês da síndrome natalina, aquela obrigação de exalar felicidade. Dá para se libertar dela?
A mídia pressiona: no Natal é preciso confraternizar com os seus. Não fazê-lo é uma derrota. A cultura ocidental reforça esse sentimento. Um dos mais famosos textos do britânico Charles Dickens, do século XIX, chama-se, não por acaso, “Conto de Natal”. É a história do avarento Scrooge, que, com a visita do fantasma de seu antigo sócio, Marley, confronta-se com a própria solidão. Mais trágica é a “Menina dos fósforos”, do dinamarquês Hans Christian Andersen, também do século XIX. Sozinha na noite fria, a garota vê as pessoas comemorar a data através das janelas. Morre, gélida, sonhando com um Natal onde possa ser feliz. Diante de tais patrimônios literários, que lemos ou a que assistimos em versões cinematográficas desde criança, quem se atreve a dizer que não se importa? Pode até fingir. Mas se importa, sim.
A competição para evitar rusgas familiares torna o trânsito da noite perigosíssimo. Mães, sogras, avós, tias, madrinhas exigem como prova de amor que filhos, noras, genros, netos, sobrinhos e afilhados façam pelo menos uma visitinha durante a ceia. O resultado são comboios vagando de endereço em endereço para entregar o presente, trinar amenidades e voar em direção ao próximo parente. Um cansaço. Pior é ir à festa da família alheia. Reforça o sentimento de exclusão. Passar sozinho é mico, já disse. E depois fica dificílimo explicar aos amigos que tudo está bem. Suportar os olhares de dó. Não ganhar coisa alguma depois da maciça campanha publicitária que nos faz relacionar presente com amor? Impossível.
Quem se separou, tem família distante, perdeu alguém ou nunca teve apavora-se em dezembro. É a síndrome natalina. Já quis me libertar dela. Não consegui. Lutar contra séculos de felicidade obrigatória? Não dá. Prefiro me organizar com antecedência. É o melhor. Para na noite em questão não cair na armadilha de fazer uma revisão da vida inteira e arrancar os cabelos ao som de “Jingle bells”.
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