quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Te contei, não ???!!!! - A culpabilidade de Capitu



Capitu teria traído Bentinho com seu amigo Escobar, em Dom Casmurro? Anailde responde como ficaria essa acusação se ela fosse a julgamento, segundo nossa jurisdição.

Por Anailde da Silva Ribeiro

Culpabilidade é um termo jurídico derivado do termo culpa, isto é, ele refere-se diretamente à possibilidade de considerar alguém culpado, e é um dos pressupostos na teoria do crime junto com fato típico e ilicitude.

A culpa em seu sentido amplo abrange o dolo e a culpa. O primeiro refere-se à intenção de agir, quando o sujeito quer praticar o crime, enquanto a culpa no sentido estrito é a não intenção, sendo didaticamente subdivida em negligência, imprudência e imperícia.

Ao tratarmos da capacidade de condenar alguém por seu ato ou omissão, a Constituição declara, no artigo 50 LVII, que “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Devido à colocação do princípio da inocência na nossa Carta Magna, ele é considerado cláusula pétrea e portanto não pode ser modificado com o fim de diminuir sua abrangência, logo, seria inconstitucional condenar Capitu sem antes analisar os fatos, e é indispensável, como em todo processo, o juiz, o autor e o réu.

Apesar de Bentinho ser advogado, em Dom Casmurro ele se transforma em juiz e promotor, impossibilitando a defesa da ré, nos deixando à mercê de um único ponto de vista, método usado por Machado de Assis para dar à obra a aura de ambiguidade eterna.

NO CINEMA

A personagem Capitu foi vivida no cinema por uma das mais belas e icônicas atrizes brasileiras, Isabella Cerqueira (1938-2011), ou apenas Isabella, como ela se denominava em 1968, na época em que o filme foi lançado. Com roteiro de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, o filme dirigido por Paulo Cesar Seraceni é um dos marcos do Cinema Novo e levou no título o nome de Capitu. Assista a um trecho do filme neste link: http://www.youtube.com/watch?v=tHoVjRnkaGw

Em primeiro lugar, trata-se de uma obra com focalização autodiegética, pois o narrador é o próprio protagonista e desse modo nos revela o enredo sob a visão de quem viveu e sofreu o que é narrado. Esse tipo de focalização geralmente acontece com uma distância temporal entre os acontecimentos e a narração, exatamente como na obra analisada, já que Bento resolveu contar sua história para “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” (p. 02), como ele afirma.

De acordo com sua natureza autodiegética, a focalização não poderia ser interna ou onisciente; Bentinho, apesar de pressupor bastante e no fim concluir que houve a traição, nunca poderá saber o que realmente aconteceu nem ler os pensamentos dos envolvidos. Então, restritos à sentença de um ciumento patológico, tendemos a acreditar na culpabilidade da moça.

Pois bem, o artigo 240 do Código Penal foi revogado em 2005, portanto, caso fôssemos julgá-la atualmente, baseados nesse ato ilícito, Capitolina seria absolvida fundamentada no inciso XXXIX do artigo 50 da Constituição Federal, que afirma não haver crime sem anterior que o defina, nem pena sem prévia imposição legal.

Apesar disso, o bacharel em Direito poderia alegar falsidade ideológica, guiando-se pelo caput do artigo 299: “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.

Na verdade, desde o início da narração, recebemos informações nos alertando sobre a não total verossimilhança da realidade. Bentinho era um menino criado com o objetivo de tornar-se padre, extremamente criativo, capaz de imaginar uma conversa com o imperador, o qual intercederia junto a sua mãe para que não o mandasse seguir a vida eclesiástica. Outro ponto é o ciúme doentio do homem, o qual pode ser ilustrado pelo caso do rapaz no cavalo que olha para a moça, chegando ao seu auge no momento em que fica enciumado pela tristeza da esposa no enterro do seu melhor amigo, o qual havia integrado como se fosse da família.

É justificável que em um momento de constrangimento, a garota se sairia melhor da situação vexatória que o rapaz.

Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também.” (p. 150)

Ademais, sua situação de filho único paparicado pelos parentes não lhe permite entender a maturidade precoce da amada, mesmo sendo mais nova. O caso que Dom Casmurro toma para mostrar que “a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos (p. 177)” serve para expor o que os estudiosos, como Içami Tiba, asseguram há certo tempo: “Os garotos demoram dois anos, em média, para alcançar o desenvolvimento das meninas da mesma idade. Eles também amadurecem mais tarde que elas.” (Veja on-line) Sendo assim, é justificável que, em um momento de constrangimento, a garota se sairia melhor da situação vexatória que o rapaz.

Os famosos olhos de ressaca e cigana oblíqua e dissimulada, não passam de artifício para tirar a atenção do leitor menos atento dos sinais capazes de, senão acabar, reduzir drasticamente a credibilidade de sua sentença de marido traído. Capitu, em nenhum momento, foi pega em flagrante, o caso mais próximo de traição se deu por parte de Bentinho:

“Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimidativos, diziam outra cousa...” (p.144)

SAIBA +

AGUIAR E SILVA, Victor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1984.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em:
www.fuvest.br/download/livros/casmurro.pdf.
Acesso em 21 de jan. 2011.
BÍBLIA CATÓLICA. Eclesiástico. Disponível em:
www.bibliacatolica.
com.br/01;28/9.php.
Acesso em 21 de jan. 2011.
TELES, Ney Moura. Direito Penal I: Parte Geral. Disponível em: www.neymourateles
.com.br/livros.php
Acesso em 21 de jan. 2011.
VADE MECUM. Código Penal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
VADE MECUM. Constituição da República Federativa do Brasil. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
ZAKABI, Rosana. Existe outra diferença. In: VEJA ON-LINE. Disponível em: veja.abril.com.br/090604/p_072.html
Acesso em 21 de jan, 2011.

Além disso, a semelhança notada entre o filho do casal e seu homônimo não pode ser prova incontestável, visto a semelhança entre Capitu e a mãe de sua amiga Sancha, a qual não havia nenhum parentesco, apenas se tratava “dessas semelhanças assim esquisitas” da vida, como bem interpretou Gurgel. Quanto à semelhança de trejeitos, o próprio Bentinho justifica: “Eu só lhe descubro um defeitozinho, gosta de imitar os outros” (p. 138).

Finalmente, os mais crédulos da traição podem apontar as visitas de Escobar na ausência de Dom Casmurro como testemunho irrefutável do adultério, o que é contestado com uma citação usada pelo próprio bacharel: “Não tenhas ciúme da mulher que repousa no teu seio, para que ela não empregue contra ti a malícia que lhe houveres ensinado.” (Eclesiástico 9:1).

Dentre a relatividade das proposições expostas pelo narrador, caso se tratasse de uma lide verídica, o defensor alegaria o princípio do in dúbio pro reo, devido à falta de certeza da culpabilidade da mulher, deste modo, não podendo provar que Escobar é filho de seu melhor amigo, Bentinho não pode afirmar que Capitu inseriu declaração falsa em documento público, quando designou Bento como pai.

Outrossim, Capitolina poderia processá-lo por calúnia e difamação, artigos 138 e 139, Código Penal, respectivamente, visto que o advogado lhe atribui fato considerado crime e por meio de suas desconfianças agiu de modo que maculou sua reputação, até mesmo mandando-a para outro continente, numa época em que prevalecia o machismo, podendo ser vista como mulher da vida, e, finalmente, abandonando afetivamente seu filho, o qual só tornou a ver quando este o procurou, já rapaz.

Sendo assim, por mais que Bentinho tente durante seu relato persuadir seus leitores da traição de Capitu, não há fundamentação probatória suficientemente convincente para imputar-lhe a conduta do artigo 299, Código Penal, porque, preferindo conviver com as dúvidas, o homem nunca investigou realmente a paternidade de Ezequiel ou a relação entre sua esposa e seu melhor amigo, ademais, no momento em que confronta Capitu com “que não é meu filho” (p. 166), não é capaz de argumentar claramente tal convicção, negando-se a continuar a retórica e ouvindo pacatamente aquela que amara:


“Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes! (...) Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.” (p. 166)

Por fim, para os mais crédulos, a reação sossegada do bacharel confirma sua certeza do adultério e a resolução de que nada mais poderia ser feito, enquanto a atuação de Capitu relembra em muito seu comportamento de menina quando foram encontrados por D. Fortunata logo após o primeiro beijo, todavia, se há quem credite dissimulação à mulher, a dúvida de Bentinho não pode ser tida como irrelevante.

“Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. (...) Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela.” (p. 166)

Dito isto e defronte a personalidade perturbada — capaz de no momento em que pensava o suicídio procurar apoio no ato de Catão e justificar-se por meio de Otelo – e doentiamente ciumenta de Dom Casmurro, não há por que considerar Capitolina culpada de coisa alguma.


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