sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Te contei, não? - Tretas e rixas do povo - Memórias de um sargento de milicias mostra costumes alegres dos brasileiros e tambem suas condutas deploráveis


Tretas e rixas do povo

'Memórias de um sargento de milícias' mostra costumes alegres dos brasileiros e também suas condutas deploráveis

 Edu Teruki Otsuka 28/11/2011 

Memórias de um sargento de milícias é uma obra em que sempre se reconheceu a presença de traços característicos da vida brasileira. O romance de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) ainda é capaz de surpreender, 150 anos depois de publicado. Durante muito tempo, o livro foi considerado um registro de costumes risonhos do povo, devido ao colorido das cenas e à vivacidade dos personagens. Mas, hoje, o que chama a atenção são os aspectos deploráveis do comportamento rixento e vingativo dos mesmos personagens. Apesar de Memórias destacar a sociabilidade expansiva e alegre da camada popular, não são menos significativos os impulsos agressivos que acompanham a feição brincalhona dos relacionamentos. Ao contrário do que se poderia imaginar, o fundo de rivalidades e conflitos não destoa do tom engraçado da narração. A história que se conta em Memórias é apresentada com simplicidade e leveza, ou seja, sem a ornamentação retórica e o viés moralista predominantes na literatura da época. Ambientado no Rio de Janeiro do período joanino (1808-1821), mas narrado a partir de um ponto de vista de meados do século XIX, o romance traça um paralelo entre o “tempo do rei” e o tempo do autor e de seus primeiros leitores. Apesar da aparente singeleza, a representação humorística dos costumes e condutas do passado não era inocente, pois continha um comentário implícito sobre o Brasil dos anos 1850, que vivia um surto modernizador, com a entrada maciça de mercadorias estrangeiras e a disseminação das ideias burguesas. Em artigo jornalístico intitulado “O riso” (13/08/1854), Manuel Antônio observa que “o ridículo daquilo que nos arranca uma gargalhada reverte um pouco sobre nós mesmos.” No centro da trama estão dois Leonardos, pai e filho, que experimentam agruras e satisfações próprias de uma sociedade na qual as normas parecem estar sempre aquém ou além da realidade: Leonardo Pataca, o pai, mascate português que emigra para o Brasil, onde passa a ganhar a vida como meirinho (fiscal da Justiça); e Leonardo, o filho, menino peralta que obtém um lugar ao sol e se torna sargento de milícias. Manuel Antônio de Almeida descrever uma classe média que fica entre a dependência de um poderoso e a necessidade de reconhecimento. Entre o lícito e o ilícito A vida atribulada do filho até certo ponto espelha a do pai, embora não a repita de maneira idêntica. Ambos vivem deslizando entre o lícito e o ilícito, entre a lei e a transgressão, sendo lançados de um polo a outro num vaivém incessante. Ao mesmo tempo, a narração acompanha os personagens e oscila na avaliação moral de seus atos, de modo que as referências se embaralham e as fronteiras entre o “certo” e o “errado” se diluem. Na história, os personagens da camada popular frequentemente enfrentam a vigilância repressiva do major Vidigal, chefe de polícia truculento que procura impor a ordem numa sociedade fissurada pela ineficácia das normas. O resultado é que regras e irregularidades se mostram equivalentes e íntimas umas das outras. Depois de ser o menino traquinas sustentado pelo padrinho barbeiro, ajudante de sacristão, empregado da despensa da Casa Real, Leonardo é preso por vadiagem e incorporado à guarda como soldado, sob as ordens de Vidigal. Ele também se entrega às relações amorosas com Vidinha, moça do povo que encanta o protagonista, e, no campo das famílias respeitáveis, com Luisinha, herdeira rica, o primeiro amor do herói. No final, o protagonista acaba por desposá-la, num reencontro triunfante que completa o destino ascendente de Leonardo, agora acomodado em posição social vantajosa. Se Leonardo consegue ascender socialmente, passando de zé-ninguém a herdeiro de fortunas e sargento de milícias, isso ocorre simplesmente como decorrência dos vários arranjos e trocas de favores que pautam as condutas e as relações dos pobres com os poderosos, e não como resultado do esforço do protagonista. Essas relações são mostradas como resultado da organização social particular do Brasil. O narrador observa: “Já naquele tempo (e dizem que é defeito nosso), o empenho, o compadresco eram uma mola real de todo o movimento social”. Junto com a trajetória enviesada do protagonista, o romance apresenta episódios que compõem breve painel da cidade do Rio de Janeiro do início do século XIX. O livro deixa de fora os escravos, que aparecem apenas no pano de fundo, e os proprietários, representados somente na figura de D. Maria, única personagem abastada com papel desenvolvido na história. Sem ser exaustivo no mapeamento da sociedade, o romance centra o foco na camada intermediária: a pequena burguesia, o povo miúdo e os desclassificados. Por isso mesmo, apreende e incorpora o sentido profundo de certos comportamentos predominantes na vida brasileira. Discussões, confusões e implicâncias É certo que os personagens encarnam tipos sociais representativos da época – como o chefe de polícia, o meirinho, o barbeiro, a beata e os ciganos –, mas é nas relações entre elas que se pode discernir o que o romance tem de original na representação literária do Brasil. Mais do que os tipos fixos, interessa observar a dinâmica dos relacionamentos, pois é na movimentação dos personagens que se revela de que modo o romance imagina profundamente a sociedade brasileira. Os personagens estão constantemente criando confusão, discutindo e implicando uns com os outros. Essa disposição briguenta se aquieta momentaneamente quando se alcança o triunfo numa disputa. Bisbilhotices, maledicências, intrigas, achincalhes, zombarias e humilhações, levando a revides e desforras, fazem parte da conduta geral dos personagens. Todos parecem empenhados em sempre levar vantagem sobre os outros, estabelecendo relações de rivalidades e rixas. Como consequência do sistema escravista, que moldava a vida social no Brasil oitocentista, a camada intermediária focalizada nas Memórias encontrava-se em situação peculiar. Sem dispor de poder efetivo nem de meios para sobreviver de maneira independente, muitas vezes as pessoas de condição modesta careciam da proteção de algum poderoso. Nas relações com as figuras de poder, estabeleciam alianças ou tentavam se beneficiar, mas permaneciam sempre em posição subalterna. A elas faltavam quaisquer possibilidades de alcançar alguma espécie de reconhecimento social por meio de suas atividades, ao mesmo tempo em que sempre pairava a ameaça da humilhação no confronto com a autoridade. Era somente nas disputas com seus próprios pares que o pobre podia obter um sucedâneo do reconhecimento social ao rebaixar seu rival, recolhendo o apoio dos demais. A superioridade assim obtida é quase sempre momentânea e ilusória, mas nem por isso a satisfação do triunfo na rixa é menos real. No mundo das Memórias, as superioridades sociais, reais ou ilusórias, servem para a autoafirmação das pessoas por meio da humilhação dos outros. Por isso, predomina a hostilidade entre aqueles que se encontram em posição social equivalente. É esse conjunto problemático de relações que compõe o espetáculo do romance, em parte simpático às malandragens, mas nem sempre aderindo ao que narra; em parte aparando as arestas da truculência, mas sem ocultá-la. A atualidade do romance está exatamente nesses traços intrincados da vida brasileira. Embora o Rio joanino esteja muito distante no tempo, é como se os problemas mostrados nas Memórias ainda ecoassem nos pequenos conflitos sociais que fervilham no presente.

 Edu Teruki Otsuka é professor de Teoria Literária e Literatura da Universidade de São Paulo e autor de Era no tempo do rei: atualidade das Memórias de um sargento de milícias (Ateliê Editorial, no prelo). 

 Saiba Mais CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”, in: O discurso e a cidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, pp. 17-46. SCHWARZ, Roberto. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’”, in: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 129-155. Internet: Memórias de um sargento de milíciasestá disponível em Domínio Público. www.dominiopublico.gov.br

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