sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Te contei, não ? - O que revela o mito do herói Steve Jobs - Roberto DaMatta


Todo herói cultural – como o Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado – morre muitas vezes. Steve Jobs, tal como Jefferson, Washington, Lincoln, Roosevelt, os Kennedys, Frank Capra e o Pato Donald, tem a mesma sorte. Hoje, portanto, vou enterrar Jobs mais uma vez. De perto, sabemos, nem os deuses escapam da contradição e, sobretudo, do narcisismo. Mas o bom e o mau enterro daqueles em quem a sociedade se projeta – positiva ou negativamente – revelam como uma sociedade lida com ela própria. No caso de Steve Jobs e tantos outros, a América revela uma surpreendente e invejável fé em si mesma e, assim, estampa com gosto as palmas e seu afeto. Entre nós, brasileiros, ocorre justo o oposto. Nesta terra dos compadrios e companheiros e dos que “já nascem feitos”, o sucesso é – como dizia Tom Jobim – como uma ofensa pessoal. É algo fora do sistema que já determina quem vai perder ou ganhar e, por isso, odeia o mérito e a igualdade competitiva. A biografia de Jobs – contraditória, aventureira e bilionária – exprime o modelo do êxito vigente na cultura americana. Eis a vida daquele que, marcado pela rejeição, retornou ao sistema como um de seus maiores e mais bem-sucedidos criadores. A consciência da marginalidade e da morte, rara numa cultura que cultiva o otimismo, o lado solar da vida e o final feliz, revelou-se dramaticamente quando, em 2005, Jobs pronunciou seu discurso-testamento como paraninfo da Universidade Stanford. No púlpito, solenemente confessou suas contradições, falou abertamente nos desafetos e, trágico como um Schopenhauer, afirmou que “a melhor invenção da vida é a morte”. Para arrematar, com a sabedoria que resulta dessa consciência da vida com a morte, Steve ensinou que o mais importante de tudo é amar o que se faz. O sucesso, como a magia, transformou sua vida em exemplo. A biografia de Jobs exprime o modelo do êxito da cultura americana. Aqui, o sucesso é uma ofensa No nome de sua empresa, a Apple, inverteu o emblema bíblico: em vez de a maçã mordida promover a expulsão do Jardim do Éden, com os iMacs e iPods, a maçã maldita tornou-se o símbolo de um encontro não previsto entre indivíduos e computadores. Engenhos que, até o advento da Apple, eram vistos como aparelhos demoníacos a serviço das grandes corporações. Máquinas que um dia venceriam perversamente a humanidade, como no filme 2001 – Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. Até que Jobs, o rejeitado e o egocêntrico obrigado a conviver com o anúncio de sua própria morte, revelou, como um profeta Jeremias, que tudo aquilo que é humano pode voltar a ser humano. Que a máquina pode mesmo estar a nosso serviço. Êxito significa saída. É uma porta que permite conjugar aquilo que nosso mundo tornou tão difícil. Fama e fortuna. Presente e futuro. Rotina e festa. Egoísmo e altruísmo. Sexo e amor. O dever como obrigação e como gosto. A parte, revelada no indivíduo cidadão com direito à felicidade, e o todo, concretizado na casa, na família e no país que impõem deveres. Numa sociedade em que a igualdade é um ideal e princípio ordenador, como a americana, o sucesso é a saída da mediocridade. É um modo de escapar do reinado do “homem comum”, cinzento como um personagem de Kafka, que, acomodado e dócil, vive medianamente e existe em meio a uma normalidade imposta pelo estilo de vida que resulta da soma de individualismo com a igualdade competitiva, conforme percebeu pioneiramente Alexis de Tocqueville no magistral Democracia na América. O sucesso é, talvez, o principal contraponto entre o comum (a maioria) e o extraordinário, material de que é feito a minoria. É a exceção em que poucos, conhecidos como VIPs – very important people –, celebrizam-se, como “bad guys” (bandidos) ou “good guys” (heróis). No caso de Steve Jobs, trata-se de uma transgressão positiva. Uma ultrapassagem exemplificada por ousadia, risco, determinação, confiança e originalidade. E, obviamente, muito narcisismo, ganância e onipotência. Tais são os ingredientes básicos do empreendedorismo e da meritocracia. No caso de Jobs, os próprios produtos vinham estampados com o “i”, a primeira pessoa do singular, mas escrita com minúscula, não com a maiúscula que reza a gramática do inglês. Esses “eus” que Jobs genialmente acoplou nos iMacs, iPods, iPads, iTouchs, iCloud. Não foi certamente por acaso que essa consciência aguda (e certamente sofrida) de um “eu” fosse a fonte de máquinas que fizeram mais uma revolução dentro do individualismo ocidental, permitindo uma interação em que é o dono que controla e possui um aparelho que segue seus desejos e intuições. O INDIVÍDUO Jobs no dia 1º de abril de 1989, 13 anos depois de fundar a Apple. Ele foi um transgressor com ousadia, determinação e originalidade (Foto: Ed Kashi/Corbis) Quando uma sociedade adota o sucesso como valor, o passado irreparável das sociedades aristocráticas, governadas por reis e papas garantidos por Deus e sangue azul, é substituído pela competição do presente. Nas democracias, como disse o próprio Jobs em seu famoso discurso, tudo é construído. O segredo é ligar os pontos soltos, como fazem os bons calígrafos. Pois o próprio sistema é feito de pontos (indivíduos) que se ordenam livremente num mercado. Todos os dias ele tem de ser reafirmado ou refeito. Toda democracia precisa de ajustes diários e vive em permanente metamorfose. Senão, como fazer com que um sistema fundado em “eus” possa virar um “nós”, um conjunto capaz de conter, sem coação indesejável ou injusta, os planos de todos? Abrimos a porta do sucesso quando trocamos o passado pelo futuro, como fez Jobs. Mas não se trata de um êxito grupal ou familiar, mas individual. Aqui – e esse ponto é muito importante para nós, brasileiros –, o sucesso não é da Apple, mas de quem a inventou. Assim como o “fordismo”, sinônimo de produção em massa e de acesso de todos a um carro, traduzia-se em Henry Ford. No Brasil, por contraste, o êxito ainda tem muito a ver com “estar por cima”, “se dar bem” e “se arrumar”. Ele implica subir ou descer. É a “escada”, o “pistolão” ou o “compadre” – e não a riqueza ou a inovação – que tornam possível a ascensão para o poder e para o dinheiro. A subida vem por meio da “mão amiga” – e a queda, quando ocorre, decorre de ausência – usemos a palavra da moda – de “blindagem”. Até hoje, oscilamos entre individualidades e relações reveladoras de grupos e partidos. Nosso centro não está nos “I” de Jobs, mas em algum “nós” que permite driblar a responsabilidade e assumir a existência como algo arriscado e, acima de tudo, dependente de nossa finitude. O “I” de Steve Jobs dissipou-se pela morte. Seus “i” vão ficar conosco por muito tempo.

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