domingo, 6 de novembro de 2011

Olhares sobre Castro Alves IV


CASTRO ALVES

Poeta: 1847 – 1871


CRESCE, CRESCE, SEARA VERMELHA...
QUANDO TUDO ACONTECEU...

1847: A 14 de Março, na fazenda Cabaceiras, perto de Curralinho, Bahia, Brasil, nasce António Frederico de Castro Alves, filho de D. Clélia Brasília da Silva Castro e do Dr. António José Alves. – 1854: A família Alves vai morar em Salvador. – 1859: Morte de D. Clélia, mãe do poeta. – 1862: António Frederico de Castro Alves e o seu irmão José António vão estudar no Recife. – 1863: Castro Alves publica “A Canção do Africano”, os seus primeiros versos abolicionistas. Apaixona-se pela actriz portuguesa Eugénia Câmara. – 1864: Desequilíbrio mental e suicídio de José António. Castro Alves matricula-se no 1.º ano da Faculdade de Direito de Recife. Escreve o poema “O Tísico” (ao qual dará depois o título “Mocidade e Morte”). – 1865: Em Recife, na abertura do ano lectivo declama o poema “O Século”. Começa a elaborar os poemas de “Os Escravos”. – 1866: Morte do Dr. Alves, pai do poeta. Este matricula-se no 2.º ano de Direito. Com Rui Barbosa e outros colegas funda uma sociedade abolicionista. É um dos fundadores do jornal de ideias “A Luz”. No Teatro Santa Isabel declama o poema “Pedro Ivo”, grande sucesso. Torna-se amante da actriz Eugénia Câmara e entusiasma-se pela vida teatral. – 1867: Conclui o drama “Gonzaga”. Com Eugénia Câmara deixa Recife e instala-se na Bahia. Estreia de “Gonzaga” e consagração do poeta. Retira-se para a chácara da Boa Vista. – 1868: Viaja para o Rio de Janeiro. José de Alencar e Machado de Assis tomam contacto com a sua obra. Ainda com Eugénia Câmara viaja para São Paulo onde requer matrícula no 3º. Ano de Direito. Triunfo com a declamação de “O Navio Negreiro” em sessão magna. Sucesso de “Gonzaga” no Teatro de São José. Acidente de caça, tiro no calcanhar esquerdo. – 1869: Matricula-se no 4.º ano de Direito. A tísica progride, viaja para o Rio, hospeda-se na casa de um amigo. Amputação do pé esquerdo. Assiste ao desempenho de Eugénia Câmara, da qual se separara um ano antes. Torna à Bahia. – 1870: Pousa em Curralinho (hoje Castro Alves), sertão baiano, e depois na fazenda Sta. Isabel do Orobó (hoje Iteberaba). Regressa a Salvador da Bahia. Edição de “Espumas Flutuantes” – 1871: Apaixona-se pela cantora Agnese Trinci Murri. Agrava-se o seu estado de saúde. Morre a 6 de Julho.

DOIS CLANDESTINOS NA MÁQUINA DO TEMPO

A minha máquina do tempo às vezes derrapa e agita os paradoxos. Quando eu me preparo para descer na Bahia, em meados do século XIX, reparo que nas traseiras da cabina viajavam dois clandestinos. Um deles eu reconheço, já vi a sua fotografia, é o Tabarin, um Maestro italiano. De 1943 a 1948, no Conservatório de Santos, foi o professor de piano da minha mulher. Quando uma discípula começava a adocicar os nocturnos de Chopin, irritava-se, berrava, atirava pela janela as pautas da aluna... Quando eu parti (ou partirei?) o Maestro já tinha morrido. Portanto apanhou a máquina em andamento. Tal como eu fazia quando pulava para o estribo do eléctrico que passava (ou passará?) na rua da minha infância...
O outro eu não conheço mas tem, mais ou menos, a idade do Tabarin. Portanto, também ele apanhou a máquina em andamento. O Maestro dá-lhe o nome de Agripino e os dois conversam em italiano. Mas brasileiro será segundo, pois responde-me num português escorreito quando pergunto o que estão os dois a fazer ali:

- Queríamos ouvir Castro Alves declamando, por isso pegámos sua “carona”. Não leva a mal?

- Não, não levo a mal, bem entendo o vosso desejo, é justamente o meu.

Abro a porta da cabina. Acabo de arribar ao sertão baiano, bafo ardente. Antes de pôr o pé em terra, verifico: corre o ano de 1851.

A MUCAMA

 
Estou a poucas léguas de Curralinho, cidade que um dia virá a ser chamada Castro Alves. Mais precisamente: estou na comarca de Cachoeira, na freguesia de S. Pedro de Muritiba. Planura agreste, ventania a açoitar e ressecar moitas. À minha frente avisto a fazenda Cabaceiras, a senzala e a casa grande (que não é tão grande assim...). No alpendre, uma negra corpulenta embala um garotinho branco, irrequietos 4 anos. É a mucama Leopoldina ninando Secéu (assim lhe chamam os meninos da senzala e todos os familiares da casa grande, irmãos, pai e mãe). Secéu (que é o António Frederico de Castro Alves que eu demandava) escreverá mais tarde:

Junto ao fogo, uma africana,
Sentada, o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Uma tirana indolente,
Repassada de aflição,
E o menino ri contente...
Mas treme e grita gelado,
Se das palhas do telhado
Ruge o vento do sertão.

A meu lado, comenta o Maestro Tabarin:

- Senhores e escravos, que tristeza...

- Maestro, vai-me desculpar mas a realidade não é contraste a preto e branco, há que ter olhinhos para apanhar os meios tons. Matizes, Maestro, matizes...

Intervém o Agripino:

- Tabarin, o português tem razão.

Vira-se para mim:

- Não se irrite, o Maestro desconhece a realidade brasileira deste século. Não quero ser indelicado mas acho que o melhor é irmos nós dois por um lado, para eu poder explicar tudo, em italiano, ao Tabarin, e Você ir por outro. Para si a busca será fácil; embora com pronúncia diferente, fala a mesma língua deste povo e conhece seus usos e costumes porque já andou pelo sertão daqui a cento e poucos anos, sei disso. Andou ou andará? Mas que bruta confusão...

- São os paradoxos do tempo, Agripino, não se aborreça. Boa excursão e até logo!

Abalam.

Os meios tons! Assinalo a convivência pacífica entre brancos e pretos que vivem na fazenda Cabaceiras, quando o habitual é mandar açoitar costas e nádegas de escravos relapsos, ou respondões, e depois esfregar com sal os ferimentos. O que me intriga é saber de onde brotou esta súbita humanidade. Então reparo em D. Clélia, senhora de saúde frágil, mãe de Secéu. É filha de José António da Silva Castro, o major “Periquitão”, o herói baiano das guerras da independência do Brasil. Começo a entender: primeiro a independência e depois, por arrasto, a expansão da liberdade... Também reparo no Dr. António José Alves, pai de Secéu. Médico formado na Bahia, foi depois estagiar em hospitais franceses - quem pagou a conta foi o futuro sogro, já que ele era moço pobre -. Hoje o doutor zela pela saúde de todos os habitantes da fazenda, os da casa-grande, mas igualmente os da senzala. É um homem de ciência mas foi também (e continuará a ser, nada se apaga...) o estudante apaixonada que pegou em armas contra as milícias do Doutor Sabino, caudilho que mandava violar cemitérios a que chamava de profanos, só a Igreja é que deveria tomar conta dos funerais... Fanatismo bento, confissão, confusão...

Mais tarde, em Salvador, o Dr. Alves irá cobrar preços simbólicos pelas suas consultas a escravos doentes, coerência.

Ânsias de liberdade e progresso, tal como na Europa, já começam pois a sacudir o Brasil, não tarda muito a maré-cheia...

Entretanto, no alpendre da casa-grande, Leopoldina, a mucama, acalentando Secéu, vai lentamente cantando uma tirana indolente, repassada de aflição, e o menino ri contente...

O GINÁSIO BAIANO

As crianças crescem, precisam de Escola. Em 1852 vejo a família Alves mudar-se, primeiro para Muritiba, depois para S. Félix (na margem do rio Paraguaçu) e, finalmente, em 54, para Salvador, onde o doutor abre um pequeno hospital no piso inferior do seu palacete da Rua do Paço.
Foi com saudade que Secéu partiu da fazenda Cabaceiras. Ali perto, em Curralinho, conhecera Leonídia Fraga, uma menina da sua idade, namoro de crianças. Irá reencontrá-la mais tarde.
Cecéu e José António (o irmão mais velho) durante dois anos estudam no Colégio Sebrão. Depois o Dr. Alves matricula-os no Ginásio Baiano, fundado e dirigido por Abílio César Borges, o qual está a revolucionar a forma de ensino. Em vez de impingir o latinório do costume e zurzir os cábulas, trata mas é de premiar os alunos que mais se distinguem na interpretação de Virgílio, Horácio, Camões, Lamartine e Victor Hugo. Rui Barbosa (futuro líder republicano) e Castro Alves, para regozijo de colegas e professores, entram em frequentes despiques rimados. “Secéu” declama, veemência:

Se o índio, o negro africano,
E mesmo o perito Hispano
Tem sofrido servidão;
Ah! Não pode ser escravo
Quem nasceu no solo bravo
Da brasileira região!

O Ginásio Baiano é um viveiro de tribunos.

D. CLÉLIA

Em 1858 o Dr. Alves reconstrói o solar da chácara Boa Vista. Pretende que a sua esposa, exausta mãe de seis filhos, saúde frágil, ali repouse e ganhe forças. Em vão. D. Clélia falece em 1859.
Um desgosto e um problema: criar e educar seis filhos.
Três anos depois o Dr. Alves casa-se com viúva Maria Ramos Guimarães. Será ela o amparo das quatro crianças menores, um rapaz e três meninas, Guilherme, Elisa, Adelaide e Amélia.
No dia seguinte ao casamento do pai, os dois filhos mais velhos embarcam para o Recife. Ali irão preparar-se para a admissão à Faculdade de Direito. José António vai perturbado e ninguém consegue identificar os motivos da perturbação.


EU SEI QUE VOU MORRER

Castro Alves, o Cecéu, tem 15 anos e é dono do seu nariz, inteira liberdade, o pai está longe. Acha Recife uma cidade insípida. Escreve a um amigo na Bahia:

“Minha vida passo-a aqui numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando muito. O meu ‘cinismo’ passa a misantropia. Acho-me bastante afectado do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia mata-me. De vez em quando vou à Soledade."

É de curta duração a apatia de Secéu. O bairro da boémia, desamparo, Soledade, mas depois a Rua do Lima, no bairro de Sto. Amaro. Ali o poeta procura uma Idalina que o aconchega em sua cama...

São noivos – as mulheres murmuravam!
E os pássaros diziam: - São amantes!

Estroina, mau estudante, reprovação, falhado ingresso na Faculdade de Direito. Mas antes de ser “calouro”, já começa a ser notado como poeta, “A Destruição de Jerusalém”, o “Pesadelo”, “A Canção do Africano”, aplausos da mocidade inconformada.
Começa a frequentar o Teatro Santa Isabel. Fica fascinado por Eugénia Câmara, a Dama Negra, a actriz portuguesa que, de forma gaiata, domina o palco.

Recorda-te do pobre que em silêncio
De ti fez o seu anjo de poesia,
Que tresnoita cismando em tuas graças,
Que por ti, só por ti, é que vivia,
Que tremia ao roçar do teu vestido,
E que por ti de amor era perdido...

Mas, na ribalta, também a actriz Adelaide Amaral disputa o coração dos espectadores (jornalistas, escritores, artistas, estudantes muitos). Duas claques aguerridas, vaias, aplausos, pateadas, loas e cantigas de escárnio, bebedeiras no fim da noite. Na manhã seguinte, nos jornais, elogios e doestos, ora a uma, ora a outra. Tobias Barreto é o chefe da claque pró Adelaide. Castro Alves o da claque pró Eugénia. Esta é amante do actor Furtado Coelho, do qual tem uma filha pequena. O que não trava os avanços do Secéu, adolescente sedutor, porte esbelto, tez pálida, olhos grandes, cabeleira farta e negra, voz possante, sempre vestido de preto, elegância, nostalgia. Embora tenha 10 anos mais do que o poeta, a Dama Negra não se esquiva; do romance que desponta, adia apenas a florada.

1864: aos 17 anos Castro Alves é finalmente admitido na Faculdade de Direito

A 9 de Novembro sente uma forte dor no peito:

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.

Sou o cipreste que inda mesmo flórido
Sombra de morte no ramal encerra.
Vivo vagando sobre o chão da morte,
Morto entre vivos a vagar na terra.

Mas dirá depois: “Para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição; para chorar a humanidade – a poesia.”

POETA-CONDOR


Se o mal de peito lhe vai roubar tempo de vida, então há que vivê-lo intensamente... O poeta alarga a sua dor pequena às dores da humanidade. Ei-lo a declamar “O Século”:

O Século é grande... No espaço
Há um drama de treva e luz.
Como Cristo - a liberdade
Sangra no poste da cruz.
(...)

A escandalizar:

Quebre-se o ceptro do Papa,
Faça-se dele uma cruz.
A púrpura sirva ao povo
Pra cobrir os ombros nus.

E, com “Os Escravos”, a amedrontar até os abolicionistas moderados:

(...)
Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
Nós quebramos as nossas algemas
Pra pedir-te as esposas ou mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este - irmão da mulher que manchaste...
Oh, não tremas, senhor; são teus cães.
(...)
Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz,
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.
(...)

Tribuno, poeta-condor a adejar sobre a multidão em delírio, ovações, são as ânsias de liberdade a sacudir o Brasil.


PRESSA


Tem pressa, a sua vida está a esvair-se mas, vez por outra, é obrigado a parar. É quando em 1864 José António, o seu perturbado irmão, se suicida em Curralinho. É quando, em 1866, falece o Dr. Alves, o seu pai, e ele, então de férias na Bahia, a assistir ao passamento.
Mas reage, não tem tempo a perder. É vizinho das Amzalack, três irmãs judias. Manda-lhes um poema, elas que decidam qual a destinatária (talvez seja a Esther):

Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!...
Tu és, ó filha de Israel formosa...
Tu és, ó linda sedutora Hebreia...
Pálida rosa da infeliz Judéia
Sem ter o orvalho, que do céu deriva!

Retorna ao Recife, matricula-se no 2.º ano de Direito. Com Rui Barbosa e outros colegas funda uma sociedade abolicionista. No Teatro Santa Isabel declama o poema “Pedro Ivo”, exaltação do herói da revolta Praieira e do ideal republicano:

Cabelos esparsos ao sopro dos ventos,
Olhar desvairado, sinistro, fatal,
Diríeis estátua roçando nas nuvens,
Pra qual a montanha se fez pedestal.
(...)
República! Voo ousado
Do homem feito condor!
(...)

Consolidará a imagem:

A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor...

Participa na fundação do jornal de ideias “A Luz”.

Torna-se amante de Eugénia Câmara e convence-a a fugir com ele para,

(...) A todos sempre sorrindo,
Bem longe nos ocultar...
Como boémios errantes,
Alegres e delirantes
Por toda a parte a vagar.

Pressa, tem muita pressa. Escreve, em prosa, o drama “Gonzaga” ou “A Revolução de Minas”. Organiza manifestação contra o espancamento de um estudante republicano. Em Maio de 67 abandona, de vez, o Recife. Viaja, com Eugénia, para a Bahia. Mudam-se para a chácara Boa Vista. Um cão de guarda, já muito velho, vem lamber-lhe a mão. Memórias, melancolia...

A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros;
A urtiga silvestre enrola em nós impuros
Uma estátua caída, em cuja mão nevada
A aranha estende ao sol a teia delicada.

No Teatro São João, Eugénia desempenha o principal papel feminino do “Gonzaga”. Sucesso, consagração do autor em cena aberta, embora as senhoras da capital baiana torçam o nariz à ligação do poeta com uma “cómica de má vida”.
Mas na Bahia o ambiente é acanhado, a vida é lenta e ele tem pressa, tem muita pressa. Em Fevereiro de 68 Castro Alves e Eugénia partem para o Rio de Janeiro.


RIO DE JANEIRO

José de Alencar e Machado de Assis louvam a poesia de Castro Alves. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Na capital procura José de Alencar e o autor de “Iracema” deixa-se cativar pelo fluxo verbal do poeta. Apresenta-o a Machado de Assis. Dirá este:

- Achei uma vocação literária cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro.

Também em Lisboa, Eça de Queirós ao ler, para um amigo, o poema “Aves de Arribação”

(...) Às vez quando o sol nas matas virgens
A fogueira das tardes acendia... (...)

comentará:

- Aí está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos.

Ainda em Portugal, afirmará António Nobre:

- O maior poeta brasileiro.

Na redacção do Diário do Rio de Janeiro, Castro Alves lê, para outros homens de letras, o seu “Gonzaga”. Sucesso!
Mas a glória popular é quando, da varanda do mesmo jornal, na Rua do Ouvidor, centro da Capital, declama para a multidão as estrofes do “Pesadelo de Humaitá”, em que celebra o feito da esquadra brasileira na Guerra do Paraguai:

Fere estes ares, estandarte invicto!
Povo, abre o peito para nova vida!
Talvez agora o pavilhão da pátria
Açoite altivo Humaitá rendida.
Sim! pela campa dos soldados mortos,
Sim! pelo trono dos heróis, dos reis;
Sim! pelo berço dos futuros bravos,
O vil tirano há-de beijar-lhe os pés.



S. PAULO


Em Março de 68, Eugénia Câmara e Castro Alves viajam para São Paulo. Ali, na Faculdade do Largo de S. Francisco, o poeta pretende concluir o curso de Direito. Porém, mais do que o estudo, mobilizam-no os grandes ideais da Abolição e da República, também a agitação académica a fluir das arcadas da Faculdade. Em sessão magna, pela primeira vez declama o “Navio Negreiro”:

Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar,
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães;
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irónica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais.

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto, o capitão manda a manobra,
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”

E ri-se a orquestra irónica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais...
Qual num sonhos dantesco as sombras voam!
Gritos, ais, maldições, preces ressoam
E ri-se Satanás!...

Conclui o poeta:

Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteada dos heróis na lança,
Ante te tivessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!

Dirá Joaquim Nabuco: “Quem visse Castro Alves em um desses momentos em que se inebriava de aplausos, vestido de preto para dar à fisionomia um reflexo de tristeza, com a fronte contraída como se o pensamento a oprimisse, com os olhos que ele tinha profundos e luminosos fixos em um ponto do espaço, com os lábios ligeiramente contraídos de desdém ou descerrados por um sorriso de triunfo, reconheceria logo o homem que ele era: uma inteligência aberta às nobres ideias, um coração ferido que se procurava esquecer na vertigem da glória.”
Esquecer o quê? Talvez a tuberculose que vai minando os seus pulmões, talvez o arrefecimento do amor de Eugénia Câmara. A Dama Negra está a envelhecer e corre em busca da juventude, erotismo, aventuras várias. Ciúmes de Castro Alves, violência e mágoa, reconciliações, sensualidade:

É noite ainda! Brilha na cambraia
- desmanchado o roupão, a espádua nua -
O globo do teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balança a lua...

O par separa-se em Setembro de 68. Encontram-se, pela última vez, em Outubro, quando Eugénia sobe ao palco do Teatro São José para, mais uma vez, interpretar o principal papel feminino do “Gonzaga”.
Isolamento, melancolia, tabaco, nuvens de fumo, mal agravado.
Armado, o poeta passeia pelas várzeas do Brás, caçar é distracção. Ao saltar uma vala, tropeça, a espingarda dispara-se e o tiro acerta-lhe no calcanhar esquerdo. Dores, infecção, o pé terá de ser amputado. Mas a operação deverá ocorrer no Rio, pois o clima húmido de São Paulo agrava-lhe o mal do peito.


O DERRADEIRO ENCONTRO


"Não quero mais o teu amor", diz Castro Alves para Eugénia Câmara. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
O poeta é levado para a Capital em Maio de 69. Fica hospedado na casa do seu amigo Cornélio dos Santos.
Amputação do pé, porém a frio, o seu estado de fraqueza desaconselha o uso do clorofórmio. Galhofa é o escudo contra a dor:
- Corte-o, corte-o, doutor... Ficarei com menos matéria do que o resto da Humanidade.
Valem depois ao poeta os muitos amigos que o cercam durante a longa convalescença.
17 de Novembro de 69: Castro Alves enfia a perna esquerda num botim recheado de algodão, assim disfarça o defeito. Apoiado numa muleta, aí vai ele assistir a um espectáculo de Eugénia Câmara no Teatro Fénix Dramática. Os dois antigos amantes têm ainda uma troca de palavras. Dessa última conversa sobram versos, apenas:

Quis te odiar, não pude. – Quis na terra
Encontrar outro amor. – Foi-me impossível.
Então bem disse a Deus que no meu peito
Pôs o germe cruel de um mal terrível.

Sinto que vou morrer! Posso, portanto,
A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais o teu amor! Porém minh’alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua.

Uma semana depois embarca para a Bahia. Doente, e aleijado, o poeta retorna a casa.


A BAHIA - O SERTÃO

Castro Alves recorda a sua infância. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo?

Recebido efusivamente por Maria (a madrasta) por Augusto Álvares Guimarães (o cunhado e grande amigo), por Guilherme (o irmão), e por Elisa, Adelaide (esposa de Augusto) e Amélia, as três irmãs que o endeusam.
É curta a permanência de Castro Alves em Salvador. Apenas o tempo necessário para coligir os poemas para a edição de “Espumas Flutuantes”. Relembra São Paulo, onde alcançara a glória, nostalgia:

Tenho saudades das cidades vastas
Dos ínvios cerros, do ambiente azul...
Tenho saudades dos cerúleos mares,
Das belas filhas do país do sul.

Tenho saudades de meus dias idos
- Pét’las perdidas em fatal paul -
Pét’las que outrora desfolhámos juntos,
Morenas filhas do país do sul.

Depois abala para o sertão onde, segundo os médicos, o clima seco será mais favorável aos seus pulmões. Passará o tempo a escrever e a desenhar.
Em Curralinho, o comovido reencontro com a paisagem e a memória da infância:

Hora meiga da Tarde! Como é bela
Quando surges do azul da zona ardente!
Tu és do céu a pálida donzela
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela
Que te rola da espádua refulgente...
E, - prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos!...
(...)

E na fazenda de Sta. Isabel do Orobó, o reencontro com Leonídia Fraga, sua prometida de menino e hoje donzela airosa que por ele esperara sempre. Reacender a paixão primeira? Para quê, se a morte ronda? A si mesmo diz o poeta:

Talvez tenhas além servos e amantes,
Um palácio em lugar de uma choupana.
E aqui só tens uma guitarra e um beijo,
E o fogo ardente de ideal desejo
Nos seios virgens da infeliz serrana!

Leonídia, a “infeliz serrana”, ficará para sempre à sua espera. Acabará por enlouquecer.


AGNESE


Fizeram-lhe bem os ares do sertão, sente-se melhor e regressa a Salvador.
As “Espumas Flutuantes” são editadas, correm de mão em mão e o poeta é saudado e louvado em cada esquina.

Apaixona-se por Agnese Trinci Murri, alta, alva, bela viúva florentina, cantora lírica que se deixara ficar na Bahia para ensinar piano às meninas da alta roda. A italiana aceita, vagamente, a corte do poeta, mas não embarca em aventuras, quer manter o seu bom nome.

No camarote gélida e quieta
Por que imóvel assim cravas a vista?
És o sonho de neve de um poeta?
És a estátua de pedra de um artista?

Renascera contudo o optimismo e o poeta tornara ao teatro, longe já vai o tempo da Dama Negra... Ouve recitar a sua “Deusa Incruenta”, exaltação do papel educativo da Imprensa:

Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

E em Outubro de 70 é ele mesmo quem declama, no comício de apoio às vítimas francesas das tropas de Bismarck:

Já que o amor transmudou-se em ódio acerbo,
Que a eloquência é o canhão, a bala - o verbo,
O ideal – o horror!
E, nos fastos do século, os tiranos
Traçam co’a ferradura dos uhlanos
O ciclo do terror...
(...)
Filhos do Novo Mundo! Ergamos nós um grito
Que abafe dos canhões o horríssono rugir,
Em frente do oceano! Em frente do infinito
Em nome do progresso! Em nome do porvir!

É a sua última aparição em público. O estado de saúde agrava-se. Recolhe-se à casa da família. Em 71, na noite de 23 de Junho aproxima-se da varanda. O fumo das fogueiras de São João provoca-lhe um acesso de tosse que o deixa prostrado. Febre alta, hemoptises. Ordena a Adelaide que impeça a visita de Agnese. Não consente que a Diva derradeira contemple a sua ruína física. A 6 de Julho pede que o sentem junto a uma janela ensolarada. A contemplar o longe, morre às 3 e meia da tarde. 24 anos, vida breve, intensidade.

* * *

Quando me aproximo da máquina do tempo, os dois clandestinos já estão à minha espera para regressarem ao futuro. Sei que, durante a viagem, irão misteriosamente desaparecer como, na vinda, misteriosamente apareceram na cabina. Entusiasmo do Maestro Tabarin:

- Vigoroso e revolucionário Castro Alves! Um romântico sem açúcar... Tal e qual Chopin...

E o outro? Puxei pela memória e agora já sei quem é: Agripino Grieco, brasileiro, crítico de língua afiada. Sobre o que viu e ouviu tem, obviamente, uma opinião. Definitiva, como são todas as suas:

- Castro Alves não foi um homem, foi uma convulsão da natureza.

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Principais Obras de Castro Alves
Gonzaga ou A Revolução de Minas
Os Escravos
Hinos do Equador
A Cachoeira de Paulo Afonso
Espumas Flutuantes

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