A literatura está virtualmente ausente do Enem. Para os técnicos do MEC, o gato dos quadrinhos é mais relevante culturalmente do que Graciliano Ramos
26/10/2011 16:02
Texto Jerônimo Teixeira
As histórias em quadrinhos são o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia
Desde a sua primeira edição, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), prova que avalia a qualidade das escolas secundárias e hoje substitui o vestibular em muitas universidades, reconheceu apenas duas vezes a existência de um romancista brasileiro do século XIX chamado José de Alencar.
Na edição de 2009, o nome do escritor constou em uma das alternativas erradas para uma pergunta sobre regionalismo. Antes disso, em 2004, o autor de O Guarani foi lembrado em uma questão de biologia - sobre tuberculose, doença que causou sua morte, em 1877. O Enem nunca fez uma pergunta específica sobre a vida ou a obra do maior prosador do romantismo brasileiro. Jamais pediu aos alunos que interpretassem um texto seu. Outros nomes de primeira linha das letras em língua portuguesa fazem companhia a José de Alencar no clube dos esquecidos. Para ficar em poucos exemplos, temos o pregador jesuíta Antônio Vieira, o poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga e Euclides da Cunha, autor do monumental Os Sertões. Os avaliados pelo Enem, em compensação, com frequência são chamados a interpretar as histórias em quadrinhos de Jim Davis, criador do gato Garfield, ou de Dik Browne, pai do viking Hagar. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento extensivo de todas as provas, desde o primeiro Enem - incluindo a prova que vazou e teve de ser invalidada, em 2009 -, para avaliar o peso que a literatura tem no exame. As conclusões são desalentadoras.
A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos - o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia (veja o quadro abaixo) -, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem. Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII, por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave, não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) - órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova - consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim, isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje - a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23 -, sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009, somam 1 233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS, versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários também são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifurcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.
No cômputo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar - por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e até anódinas. Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.
Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora. No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.
Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias, às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante é que oEnem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de entrada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um país ainda mais iletrado.
Nem precisa ler
O jovem que se submete ao Enem não precisa se preocupar com os livros. Um levantamento das questões de literatura de todas as provas do Enem, desde a primeira, em 1998, revela que o importante, mesmo, é saber interpretar uma história em quadrinhos.
Na lista de autores mais citados no Enem, os criadores de Mafalda, Hagar e Garfield têm um relevo desproporcional: estão à frente de romancistas como Graciliano Ramos e poetas como Castro Alves
Com 19 questões
Carlos Drummond de Andrade
Com 7 questões
Machado de Assis
Manuel Bandeira
Com 5 questões
Quadrinhos da Mafalda, de Quino
Mário de Andrade
Oswald de Andrade
Com 4 questões
Quadrinhos de Garfield, de Jim Davis
Ferreira Gullar
Rubem Braga
Quadrinhos de Frank e Ernest, de Bob Thaves
Quadrinhos de Hagar, de Dik Browne
Com 3 questões**
Graciliano Ramos
João Cabral de Melo Neto
Vinicius de Moraes
Monteiro Lobato
Chico Buarque
Com 2 questões**
Gonçalves Dias
Augusto dos Anjos
Laerte (quadrinhos)
Com 1 questão**
Luís de Camões
Castro Alves
Lima Barreto
Jorge Amado
Erico Verissimo
Guimarães Rosa
A poesia é o mais valorizado dos gêneros literários no Enem. E o romance aparece atrás das histórias em quadrinhos
GÊNERO LITERÁRIO - Poesia
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 58
GÊNERO LITERÁRIO - HQ
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 32
GÊNERO LITERÁRIO - Crítica
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 21
GÊNERO LITERÁRIO - Crônica
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 21
GÊNERO LITERÁRIO - Romance
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 20
GÊNERO LITERÁRIO - Canção
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 14
GÊNERO LITERÁRIO - Conto
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 5
GÊNERO LITERÁRIO - Drama
NÚMERO DE OCORRÊNCIAS - 1
TOTAL - 172*
*De 1998 a 2010, incluindo a prova vazada de 2009, houve 164 questões de literatura no Enem. O número nesta tabela é maior porque, em alguns casos, mais de um gênero literário foi tratado pela mesma questão
** Relação parcial
Fontes: Luís Augusto Fischer, Carla Vianna, Daniel Weller, Gabriela Luft, Guto Leite, Karina Lucena e Marcelo Frizon, da UFRGS
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