A literatura está virtualmente ausente do Enem. Para os técnicos do MEC, o gato dos quadrinhos é mais relevante culturalmente do que Graciliano Ramos ou Castro Alves. Desde a sua primeira edição, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), prova que avalia a qualidade das escolas secundárias e hoje substitui o vestibular em muitas universidades, reconheceu apenas duas vezes a existência de um romancista brasileiro do século XIX chamado José de Alencar. Na edição de 2009, o nome do escritor constou em uma das alternativas erradas para uma pergunta sobre regionalismo. Antes disso, em 2004, o autor de O Guarani foi lembrado em uma questão de biologia – sobre tuberculose, doença que causou sua morte, em 1877. O Enem nunca fez uma pergunta específica sobre a vida ou a obra do maior prosador do romantismo brasileiro. Jamais pediu aos alunos que interpretassem um texto seu. Outros nomes de primeira linha das letras em língua portuguesa fazem companhia a José de Alencar no clube dos esquecidos. Para ficar em poucos exemplos, temos o pregador jesuíta Antônio Vieira, o poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga e Euclides da Cunha, autor do monumental Os Sertões. Os avaliados pelo Enem, em compensação, com frequência são chamados a interpretar as histórias em quadrinhos de Jim Davis, criador do gato Garfield, ou de Dik Browne, pai do viking Hagar. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento extensivo de todas as provas, desde o primeiro Enem – incluindo a prova que vazou e teve de ser invalidada, em 2009 –, para avaliar o peso que a literatura tem no exame. As conclusões são desalentadoras.
A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos – o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia –, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem. Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII, por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave, não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) – órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova – consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim, isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje – a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23 –, sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009, somam 1233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS, versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários também são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifurcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.
No cômputo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar – por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e até anódinas. Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.
Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares, da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora. No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.
Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias, às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante é que o Enem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de entrada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um país ainda mais iletrado.
Desprezo pelo passado
O Enem põe um peso desproporcional sobre a literatura produzida a partir do modernismo, desvalorizando a história e a tradição. Das questões a respeito de literatura no exame, apenas 17% versam sobre obras anteriores a 1920. Autores fundamentais para a história e para o desenvolvimento da língua portuguesa, como o padre Antônio Vieira, José de Alencar e Euclides da Cunha, não tiveram nenhum texto citado na prova desde o seu início, em 1998.
Jerônimo Teixeira
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