Romântico e libertário
in Jornal do Brasil, 07/03/97
Castro Alves transpôs a escravidão para
a poesia, mas foram as mulheres que
o inspiraram nos poemas de euforia
Nele a palavra passou de subjetiva a objetiva. "A gente vê a paisagem e sente o momento, o gosto da fruta, a umidade do rio", como disse Mário de Andrade, que o acusou no entanto de encompridador, de não saber absolutamente pautar o tamanho das poesias, de ser todo instinto e bravura, todo verbo e sentimento. No capítulo das críticas, Antônio de Alcântara Machado foi mais longe, ao falar das "imagens disparatadas, imprecações heróico-asnáticas, tiradas patético-pernósticas". Antonio Candido observou que muitos de seus poemas denotam incontinência verbal tão brasileira: "Ao seu tempo, mais que agora, o orador exprimia o gosto ambiente." Mas, mesmo reconhecendo que a poesia de Castro Alves envelheceu em sua discurseira retumbante, destaca o efeito do discernimento lírico da natureza e do sentimento. Em meio àquela eloqüência comicial se destacam tiradas e achados extraordinários como em "Antevisão dos mortos": "Os mortos saltam, poeirentos, lívidos, / Da lua pálida ao fatal clarão."
O fato é que, num curto período de oito anos, de 1863 a 1871, quando morreu, o poeta precoce que, já no Adeus meu canto, aos 17 anos, sentia em si o "borbulhar do gênio", sintetizou, na solidão dos gênios, a própria existência aparentemente malograda ("O gênio é como Ahasverus... solitário./ (...) Mas quando a terra diz: Ele não morre, / Responde o desgraçado: Eu não vivi!"). Produziu obra informe, dispersa, cujos fragmentos reuniu apressadamente em Espumas flutuantes, antes da chegada da noite. O seu lirismo se impregnou do pressentimento da morte prematura e a precariedade da vida presa por um fio.
Viveu a meninice numa casa em que, oito anos antes de seu nascimento, uma rapariga chamada Júlia Fetal fora assassinada pelo noivo que alucinado de ciúme mandara fundir, para o crime, uma bala de ouro. A casa tresandava a romance, amor, desvario. Aos 15 anos ele mais parecia velho misantropo, bastante afetado do peito, sofrendo muito.
Amor e morte eram as obsessões dos românticos. Castro Alves teve agitada vida sentimental, e amou impetuosamente duas mulheres, a atriz portuguesa Eugênia Câmara, com quem conviveu durante algum tempo, e, platonicamente, a cantora italiana Agnese Trinci Murri, na Bahia, um ano antes de morrer. Eugênia Câmara, no seu dizer, tinha a "beleza de uma Vênus grega" e o "gênio de Safo, ardente, mística". Era a inspiração, a Dama Negra, a mulher por quem largou os estudos e para quem escreveu o drama Gonzaga ou a revolução de Minas. Quando ela o deixou, e partiu com outro, Castro Alves, desorientado, numa caçada em São Paulo, feriu-se no pé, com um tiro casual, de que resultou longa enfermidade, várias cirurgias e finalmente a amputação. No Rio, onde lhe foi cortado o pé, a frio, sem cloroformização, declarou ao cirurgião: "Corte-o, corte-o, doutor. Ficarei com menos matéria que o resto da humanidade." O depauperamento das forças levou-o à tuberculose pulmonar e à morte, na Bahia.
Nasceu e viveu, portanto, em período de agitações políticas. Tinha três anos, em 1850, quando se aprovou a lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico de escravos africanos. Em 1869, um decreto proibiu venda de escravos sob pregão, em hasta pública. Dois meses antes de seu desaparecimento, decretou-se a lei do ventre-livre. Ainda não era a extinção da escravatura, pela qual se bateu com destemor, mas golpe decisivo. A Guerra do Paraguai (1864-1870) encerrou cruentamente a década. Abolição e republicanismo eram as campanhas que estavam no ar, ora se ajudando, ora divergindo.
Neste clima, ele incorporou em definitivo o negro à literatura, dando-lhe, além do brado de revolta, atmosfera de dignidade lírica. O fim da Guerra do Paraguai encheu os corações de esperança de uma era de paz e prosperidade nacional. O próprio coração dos poetas passava da crispação à distensão.
A grande paixão por Eugênia Câmara abrasou-o de alto a baixo, reorganizou-lhe a personalidade, inspirou alguns dos seus mais belos poemas de euforia, desespero, saudade ("A estrofe entreabre a pétala mimosa / Perfumada da essência de sua alma"). Submeteu a natureza, em suas visões, a um antropomorfismo sensual, que o induziu a surpreender a mulher em todas as coisas do universo. ("Amar-te é melhor do que ser Deus"). Mário de Andrade considerava "Hebréia", "Boa-noite", "O adeus de Teresa", "O tonel das danaides" e "Os anjos da meia-noite" provas decisivas de mudança profunda na concepção temática do amor na poesia do Brasil.
Sexualizou a natureza ("Assim bebeu-te a vida, a mocidade e a crença / Não boca de mulher... mas de fatal serpente"), injetou o erótico no descritivo ("Eu vejo sobre a seda do corpete / Teus lúbricos cabelos"), em contraste com o realismo semi-romântico das composições propriamente amorosas ("Sonho-te às vezes virgem... seminua..."). Natureza e mulher trocam-se formas: "Não há tormentas quando estás em calma. / Para mim só há raios em teus olhos, / Procelas em tua alma."
Ao teatro dedicou fervor maior do que à poesia. O teatro era para ele o altar, o "vedado paraíso", que levava ao país do sonho. Gonzaga ou a revolução de Minas, sua única peça, reúne os ideais libertários - independência e abolição da escravatura - ao amor por Eugênia Câmara, que a protagonizou no palco. O romantismo, como disse Jamil Almansur Haddad a propósito de Gonzaga, "por força de suas raízes no Terceiro Estado, amou o povo, a língua do povo, as tradições do povo, todas as suas realidades, e o teatro mais do que o livro representava o ideal de um contato vital e permanente com as massas, num tempo em que se acreditava que as massas, e não as elites, eram o fundamento de toda a glória". Beaumarchais dissera-o sinteticamente: "O teatro é uma tribuna." Um dos personagens de Gonzaga, Padre Carlos, coloca a conjuração mineira sob o manto da Revolução francesa, porque "ambas são filhas de Deus".
O sentimento carnal da liberdade está presente em tudo o que Castro Alves tocou. Ele que ergueu o vôo "sobre as asas gentis da fantasia" e garantia que "a praça é do povo / Como o céu é do condor", é ainda hoje o cantor por excelência do negro escravo e, por extensão, dos oprimidos. O tempo caminha ao seu lado e de sua mensagem. É como disse Sousândrade: "Saímos de uma noite, entramos noutra, / Nós somos um só dia, e nós contamos / Nossos minutos pelas nossas dores."
* Léo Schlafman é redator do JORNAL DO BRASIL
Nenhum comentário:
Postar um comentário