segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Te contei, não ???!!!! - História Sumária do Racismo no Brasil




Publicado por LUTA PELA EDUCAÇÃO em 21 dezembro 2010 
Mário Maestri

1. Constituição e Racionalização da Escravidão Clássica
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A desqualificação dos oprimidos é recurso histórico, consciente e inconsciente, dos opressores para racionalizar e consolidar a exploração. Nas formas de produção pré-capitalistas, essa desqualificação centrou-se fortemente na natureza dos explorados. No clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, Frederico Engels assinalou a dominação da mulher pelo homem, no contexto da primitiva divisão sexual do trabalho, como a primeira forma geral de exploração. "[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino." A opressão da mulher ensejou e apoiou-se tradicionalmente na defesa de sua inferioridade, fortemente ancorada na sua diversidade fisiológica em relação ao homem. O magnífico Aristóteles apontava como exemplo da inferioridade feminina o fato de que a mulher teria menos dentes que os homens!
Base da produção na Grécia homérica, a escravidão patriarcal surgiu quando o produtor superou sistematicamente suas necessidades de subsistência, produzindo sistematicamente excedente capaz de ser apropriado pelo explorador. A orientação da produção para o consumo do núcleo familiar da pequena propriedade grega, de uns cinco ou pouco mais hectares [oikos], pôs relativamente travas à exploração do homem e da mulher escravizados. Não havia sentido em produzir acima do consumido pelos proprietários, familiares, dependentes e cativos. No escravismo patriarcal, o proprietário, sua família e dependentes trabalhavam comumente ao lado do cativo, em proximidade que apenas minimizava o caráter despótico daquela relação social de produção.
Com a consolidação da propriedade privada sobre a terra e seus frutos e a expansão do mercado, a escravidão patriarcal desenvolveu-se e superou-se qualitativamente. Ainda que fossem numerosas as pequenas propriedades escravistas de subsistência, nos dois séculos finais da República e nos dois primeiros do Império, dominou social e economicamente a pequena propriedade escravista pequeno-mercantil especializada. Orientada essencialmente para o mercado, a villa tinha em torno de uns dez a trezentos hectares e trabalhava com algumas poucas dezenas de cativos. A dimensão reativamente restrita e o caráter dos seus produtos, que exigiam comumente trabalho intensivo, especializado e sazonal, impediram tendencialmente a degradação das condições do trabalho conhecida séculos mais tarde na escravidão colonial americana. Era monótona e dura a existência do produtor escravizado nessas propriedades..
Por variadas razões, fracassou a evolução da produção pequeno-mercantil em escravismo mercantil, ou seja, em grandes propriedades trabalhadas por dezenas e centenas de cativos, voltada essencialmente para o mercado, tentada em diversas regiões, com destaque para as propriedades triticultoras da Sicília. Sob a forte pressão dos produtores escravizados, abriram-se as portas à longa transição ao colonato e, a seguir, à produção feudal. Nesta última, o produtor não era mais, como anteriormente, propriedade plena do explorador. Sob a obrigação de pagamento de rendas delimitadas, ele passou a controlar sua família e seus instrumentos de trabalho e a gerir relativamente a gleba à qual era adstrito. Essa importante evolução histórica não o emancipou imediatamente da servidão pessoal parcial [servidão da gleba]. A escravidão plena, menos produtiva e mais custosa, manteve-se como relação de dominação subordinada na Europa, em alguns casos, até o século 18.
A violência foi sempre a principal forma de submissão do trabalhador na escravidão patriarcal e pequeno mercantil. Os cativos e cativas tidos como relapsos e desobedientes eram forte e exemplarmente castigados. Os atos de rebelião contra os proprietários e seus familiares e os feitores eram punidos com a tortura e a morte. Não raro, os cativos rebeldes eram queimados vivos. No Império, quando a escravaria urbana dos romanos mais ricos podia superar os cem membros, o receio dos proprietários à resistência do cativo chegou ao paroxismo. Lei romana dos primeiros anos de nossa era determinou que, se um proprietário escravista [pater famílias] ou seu familiar fossem assassinados, todo cativo que, encontrando-se a uma distância em que pudesse ouvir seu pedido de ajuda, não o socorresse, seria torturado e executado. Nos tempos de Nero, Padânio Secondo, prefeito de Roma, foi justiçado por cativo que lhe pagara e não recebera a manumissão. Todos seus quatrocentos cativos, de ambos os sexos e das mais variadas idades, foram executados, apesar da agitação que a terrível medida causou entre a plebe romana formada em boa parte por libertos.
A escravidão apoiou-se também na submissão ideológica dos cativos. Entre os múltiplos mecanismos utilizados, destacava-se o convencimento do cativo – de dos escravizadores − da natureza diversa e inferior do subordinado, proposta que racionalizava e consolidava a ditadura dos escravizadores sobre os escravizados.
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2. A Racionalização da Exploração Escravista na Antiguidade
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Na Grécia homérica, a escravidão era vista inicialmente como decorrência dos azares da sorte – guerra, captura, dívida, etc. A visão platônica expressava já uma época em que a escravidão tornara-se instituição importante. Para Platão, a servidão de um indivíduo ou de um povo devia-se à incapacidade de se autogovernar, por falta de discernimento intelectual, cultural ou moral, qualidades exclusivas ao mundo, cultura e homem helênicos. Porém, para ele, era a lei que determinava quem era escravo e senhor. Entretanto, sua teoria da superioridade da alma sobre o corpo consubstanciava já a visão da submissão necessária do súdito ao soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador.
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A visão aristotélica da escravidão nasceu em sociedade solidamente escravista. Para Aristóteles, era inaceitável que um homem fosse submetido e mantido na escravidão apenas pela força, sancionada pela lei. O que apontava igualmente ao cativo a força, como forma de emancipação possível. Aristóteles superou a tese platônica, ao defender raiz natural e, portanto, genético-racial à servidão. Para ele, a reunião de diversas famílias formava o burgo e a associação de diversos burgos, a cidade, ou seja, a sociedade política. Um processo determinado pela natureza que compelia "os homens a se associarem" na procura do "fim das coisas", a felicidade de todos.
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Para Aristóteles, a família "completa", unidade de base da sociedade, forma-se por homens livres e escravizados. Para ele, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, pois o melhor "instrumento" era o que serve para "apenas" um "mister", e não para muitos. Essa visão expressava uma consciência, ainda que limitada e alienada, do avanço da produção social através da divisão e especialização do trabalho e de seus instrumentos. Assim, na consecução de fins comuns, seres de essência diversa complementavam-se, cada qual realizando a função para que fora criado pela natureza, na consecução do bem comum. Os mais elevados comandavam os menos perfeitos. "A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar."
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A natureza determinava que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo.
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"[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens." "Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo."
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Fundando o direito da servidão na inferioridade natural e não na força, Aristóteles consolidava ideologicamente a ordem escravista grega, impugnando a escravização do heleno, por um lado, e a validade-direito do bárbaro de emancipar-se pela força, por outro. Propunha que oprimidos e opressores se associariam na consecução de objetivos comum, pois, sendo a opressão algo própria da ordem natural, não haveria civilização à margem da mesma. Foi sempre estratégia recorrente dos opressores defender não apenas a justiça mas também a bondade social de opressão.
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Aristóteles foi mais longe, ao propor que a especialização natural, ou seja, a inferioridade e superioridade, se expressasse na própria constituição dos seres. A inferioridade dos "animais domésticos", que serviam com a "força física" ao dono nas suas "necessidades quotidianas", como o boi, o asno, etc., registrava-se nos seus corpos de brutos, especializados para tais funções. O mesmo ocorria entre os homens, pois a "natureza" pareceria "querer dotar de características diferentes os corpos dos homens livres e dos escravos." "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem". Os homens incapazes de outra função que as relacionadas à "força física" eram "destinados à escravidão".
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A proposta de registro material da superioridade ou da inferioridade naturais dos homens constituía elemento central na racionalização aristotélica da exploração escravista, retomada plenamente no mundo romano, e, mais tarde, na Idade Média e Moderna. A força desta proposta encontrava-se no registro, indiscutível, nos corpos, da inferioridade da alma. O que tornava materialmente visível a comprovação de hierarquização social natural, com homens superiores, destinados a mandar e serem servidos, e homens inferiores, destinados a obedecer e a servir. Porém, tal proposta materializou-se em forma limitada no mundo grego, por falta de condições objetivas nas quais pudessem se apoiar as fantasmagorias dos escravizadores.
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Mesmo no mundo grego tardio, os cativos provinham sobretudo das províncias e regiões periféricas do mundo helênico. Portanto, havia forte identidade étnica entre os grupos étnicos dos amos e o dos cativos. O que dificultou a tentativa permanente de apontar traços somáticos que expressassem as naturezas diferenciais, superiores e inferior, dos escravizadores e dos escravizados. Ainda que condições de vida diversas tendam a diferenciar fisicamente, em forma relativa, explorados e exploradores, mesmo de mesma origem étnica.
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Inicialmente, a escravidão romana apoiou-se na escravização de povos itálicos, de forte semelhança étnico-somática, o que impedia a plena realização do princípio aristotélico da expressão física da inferioridade natural do cativo. Com a extensão da escravidão, foram feitorizados infinidade de povos da bacia do Mediterrâneo e da Europa Ocidental, Central e Oriental. A diversidade étnico-linguística dessa população escravizada dificultou, também, o procurado registro fenótipo da pretensa natureza humana inferior do escravizado. No Império, a retórica aristotélica foi igualmente debilitada pela expansão da cidadania e da classe dos grandes escravistas para além do núcleo étnico romano.
A sociedade romana enfatizou a cultura e a língua como elementos diferenciadores, ainda que os múltiplos traços fenótipos dos cativos fossem apontados como registro de inferioridade. É de geral conhecimento a descrição de escravista romano, com propriedade na Magna Grécia – um italiano meridional, nos dias de hoje –, dos traços semi-bestializados de seu cativo germânico. Ou seja, um alemão atual. Sequer renascimento ibérico da escravidão, com a Reconquista, produziu identificação cabal e duradoura entre etnia e escravidão. Tal fenômeno materializou-se plenamente quando do renascimento do escravismo, nas Américas, dando origem à desqualificação essencial do africano subsaariano, base das visões racistas antinegro contemporâneas.
3. A Escravidão de Mouros e Pretos em Portugal
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As práticas e concepções escravistas foram introduzidas na Península Ibérica pelas legiões romanas vitoriosas e, mais tarde, mantidas pelos dominadores visigodos como forma de dominação subordinada. Em 711, os muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar, mantendo-se na Ibéria até a perda definitiva de Granada, em 1492. A luta à morte entre cristãos e muçulmanos pela península enfatizaria fortemente a escravidão. Inicialmente, os conquistadores cristãos passavam no fio da espada as populações muçulmanas derrotadas. Logo, apenas os guerreiros eram eliminados, reduzindo-se à escravidão os restantes. As necessidades da exploração das terras conquistadas, em boa parte despovoadas pela guerra, ensejaram que razias fossem lançadas sobre os territórios muçulmanos para capturar trabalhadores a serem explorados nas cidades e campos. Difundiu-se também a captura e venda de muçulmanos assaltados no Mediterrâneo e nas costas da África do Norte. Os muçulmanos procediam do mesmo modo com os cristãos.
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A Reconquista teria melhorado a sorte dos servos pessoais originais, metamorfoseados em servos da gleba e a seguir em colonos livres. Decaiu igualmente a importância dos antigos cativos e fortaleceu-se a dos cativos islamitas. A retórica justificadora da feitorização do muçulmano rompeu radicalmente com a racionalização aristotélica da escravidão. A escravidão do muçulmano não se devia mais a uma pretensa inferioridade natural. A excelência da civilização islâmica mediterrânica e a forte identidade étnica, sobretudo entre o muçulmano ibérico e o moçárabe, ou seja, cristão arabizado pela vida na Ibéria islâmica, impediam propostas de inferioridade natural do cativo muçulmano. Agora, a escravidão era justificada pela adesão a uma crença que ofendia gravemente o verdadeiro deus, nos céus, e devia, portanto, ser castigada, na terra. Era a guerra justa contra o inimigo da fé divina, determinada pelo Estado e pela Igreja, que justificava a escravidão, em proveito dos homens pios, é claro. No fundamental, o mesmo critério apoiava a escravidão de cristãos pelos muçulmanos. Entretanto, no mundo ibérico, cativos cristãos seguiam sendo escravizados por senhores cristãos, ainda que em número decrescente.
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No mundo romano, o trabalhador escravizado era denominado sobretudo de servus. A dissolução e a metamorfose das relações escravistas foram tão lentas e imperceptíveis que o produtor direto emergiu no mundo feudal sendo tratado do mesmo modo que os antigos cativos nas línguas européias– servus, servo, serf, etc. No século 10, quando da retomada relativa do escravismo na Europa Ocidental, foi necessário uma nova designação para o trabalhador escravizado. As guerras de Otão I [912-973], o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia, nos Bálcãs. Com o passar dos anos, o termo escravo perdeu o sentido étnico-nacional, ou seja, originário da Esclavônia, para descrever o homem escravizado. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio.
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Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro, pois os muçulmanos que invadiram e colonizaram a península Ibérica provinham da Mauritânia [Saara Ocidental]. Logo, em Portugal, o muçulmano feitorizado era designado de "mouro", não importando de onde viesse, na bacia do Mediterrâneo. Em 1444, começaram a chegar a Portugal as primeiras partidas de negro-africanos, capturados quando do avanço marítimo lusitano ao longo do litoral atlântico da África. Por longas décadas, mouros e negro-africanos trabalhariam como cativos, lado a lado, em Portugal, nas cidades e nos campos. O neologismo português mourejar designaria o trabalho duro como cativo mouro ou, mais tarde, como cativo negro.
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Em Portugal, a palavra negro era usada para designar o homem de pele mais escura, livre e escravizado. Como o negro-africano era ainda mais escuro, foi designado diferencialmente de "preto". Daí, ser chamado de "mouro preto", sem ser proveniente da Mauritânia e muçulmano. Em inícios do século 16, quando a escravidão do negro-africano se sobrepunha já claramente à feitorização do muçulmano, o uso da palavra escravo difundiu-se em Portugal, já sem qualquer referência à religião e à origem nacional. Então, tínhamos "escravo mouro", "escravo negro", "escravo preto", "escravo branco". Em Portugal, com a forte dominância da escravidão do negro-africano, "preto" tornou-se sinônimo de cativo e de escravo. Nesse novo contexto, a visão aristotélica da escravidão, como consequência de pretensa inferioridade natural, foi retomada e enfatizada como jamais, como a principal justificativa daquela instituição. A pele branca seria sinal de excelência, a negra, de inferioridade. Nascia o racismo anti-negro.



Aqui e Agora
Domingo, 28 Novembro 2010 02:00

Mário Maestri

4. A Racionalização da Escravidão Negro-Africana

Com a defesa da justiça, inevitabilidade, interesse social, etc. da opressão, almeja-se consolidar a sociedade de classes, obtendo-se assim mais fácil submissão dos subordinados.

A operação procura também superar contradições entre concepções gerais das classes dominantes que se oponham à violência social instituída – racionalismo, universalismo, humanismo, etc. A unidade e identidade da espécie humana são realidades objetivas registradas fortemente nas práticas sociais, com destaque para o ato produtivo. As teses justificativas são em geral engendradas pelas classes dominadoras, no contexto do esforço permanente de reprodução das relações sociais em que se apóiam, e selecionadas e refinadas por seus intelectuais orgânicos – clérigos, artistas, intelectuais, etc. Com a consolidação da América escravista, a intelectualidade portuguesa e, a seguir, européia, desenvolveu refinadas racionalizações da escravidão negro-africana.

Nos primeiros tempos, as justificativas da escravidão negra apoiaram comumente a escravidão negra na Bíblia. Segundo a Gênesis, ao sair da arca, Noé tinha três filhos – Sam, Cam e Jafet. Ao criar a vinha e o vinho, Noé embriagou-se e "despiu-se completamente dentro de sua tenda". Cam teria comentado a nudez do pai com os irmãos ou feito coisa pior. Ao recuperar-se do porre primordial, Noé amaldiçoou Canaã, pelo pecado do seu pai Cam, determinando que fosse "escravo" dos tios. Um registro claro da visão e então da responsabilidade da família e do clã pelos atos de um de seus membros. Entretanto, a Bíblia não ligava os descendentes de Canaã aos negro-africanos.

Explicara-se a escravização dos muçulmanos pela rejeição ímpia do cristianismo. Entretanto, o negro-africano desconhecia totalmente a palavra divina, jamais anunciada nessas paragens do mundo. Não podia ser acusado de desprezar a verdadeira fé. Isso não foi um grande empecilho. Com a bênção explícita de Roma, a escravização do africano livre foi compreendida como indenização necessária dos gastos dos cristãos para levar a fé verdadeira a esses territórios exóticos. Os ideólogos da época lembravam que era carga pequena a "sujeição" do corpo, na breve existência terrena, pois o negro-africano ganharia a possibilidade da eterna "soltura", na infindável vida eterna. Um ótimo negócio, portanto, para o escravizado!

A escravidão seria igualmente o pagamento pelos gastos com o "resgate" do negro-africano destinado ao sacrifício ou à escravidão na África. O cativo viveria em melhores condições nas Américas, servindo ao cristão, do que na África, ao serviço de um bárbaro. As boas condições de vida na escravidão colonial e a existência de escravidão na África são teses dos escravistas defendidas por historiadores atuais, em apologias da sociedade de classes do passado. A escravização do africano em "guerra justa" foi argumento de uso decrescente quando o tráfico transformou-se em atividade comercial de grande vulto e deixou necessariamente de depender de razias européias na costa.

Já no século 16, essas explicações eram questionadas pelos raros intelectuais, como Domingo de Soto, Martín de Ledesma e Fernão de Oliveira, para assinalarmos aos ativos em Portugal. Em geral, eles foram duramente punidos por se porem, direta ou indiretamente, ao lado dos trabalhadores escravizados, em um mundo fortemente coerido pelo tráfico negreiro e pela exploração escravista. Entretanto, a grande justificativa da escravidão do negro-africano foi a tese aristotélica de sua pretensa inferioridade natural. Ele seria um ser bruto, de razão limitada, incapaz de viver por si só em sociedade. Devia, portanto, também em seu proveito, submeter-se à autoridade de um amo.

O teólogo católico italiano Aegidius Romanus (c.1247-1316) definira as características do homem semibestial, destinado naturalmente à escravidão, segundo Aristóteles. Sua essência inferior expressava-se sobretudo na incapacidade de distinguir-se claramente dos animais "pela alimentação, pelo vestuário, pela fala e pelos meios de defesa". O fato de não possuir leis e governo claramente instituídos era igualmente prova de limitação de um homem e uma comunidade. Para essa visão essencialista e a-histórica, tais características assinalariam uma razão humana limitada.

Em Crónica da Guiné, de meados do século 15, Gomes Eanes de Zurara apontou os sinais de bestialidade do negro-africano do litoral da África. Ele não se alimentava com comidas complexas e mais nobres, como o pão e o vinho; desconhecia as vestimentas, andando nu; tinha linguagem, armas, moradias, instrumentos, etc. rústicos. O cronista real português lembra que a nudez identificava a "bestialidade", pois os homens com razão plena seguiam a "natureza", "cobrindo aquelas partes". Sobretudo, os negro-africanos não conheciam autoridade superior, ou seja, rei ou senhor, não formavam sociedade complexa, e, mais grave ainda, viviam em "ociosidade bestial".

Zurara lembrava que, em Portugal, o negro-africano aprenderia o português, superando os falares bárbaros; cobriria suas vergonhas, vestindo-se, ainda que minimamente; não passaria fome, comendo pão e bebendo vinho, alimentos civilizados; trocaria seu tugúrio por casas de homens; se submeteria a governo legítimo e não viveria à margem da lei, como os animais. Principalmente, ele se dedicaria a um trabalho produtivo sistemático, sob a autoridade [e o proveito, é lógico] de um senhor. A colaboração entre escravizador europeu branco, nascido para mandar, e o escravizado africano negro, surgido para o trabalho, realizaria desígnio imposto pela natureza, constituindo-se sociedade harmônica e feliz. Mutatis mutandis, tese retomada atualmente pela historiografia da escravidão, através da proposta de convergência de interesses, através da negociação e transição entre escravizados e escravizados.

As visões de mundo dos exploradores determinam que selecionem, enfatizem, organizem etc. os fenômenos perceptíveis segundo suas necessidades sociais. A visão européia do negro-africano inferior constituiu-se a partir de apreciação preconceituosa e de classe das sociedades negro-africanas aldeãs do litoral do Continente Negro, de grande simplicidade. Mais tarde, os europeus tiveram notícias ou estabeleceram contatos com o que restava dos magníficos reinos e impérios do interior da África – Ghana, Mali, Songaí, etc. Então, simplesmente, neutralizaram o impacto dessas descobertas, sobre a proposta da insuficiência racional do negro-africano, definindo aquelas construções sociais como reprodução abastardadas, no interior do continente, das civilizações da orla mediterrânica da África.

5. O Negro da Terra e o Negro da África

A escravidão americana não se deveu à incapacidade dos europeus de trabalharem fisicamente nas Américas, necessitando portanto de um ser apto ao trabalho rústico, como propuseram explicações racistas, tais como as abraçadas por Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala. Também não é pertinente a tese do recurso à mão de obra servil africana devido à insuficiência de braços na Europa. A França contava com multidões de indigentes sem ocupação e lançou igualmente mão ao trabalho escravizado em suas colônias açucareiras.

A poderosa refundação do escravismo no alvorecer dos tempos modernos deveu-se à impossibilidade dos exploradores de submeter o europeu à dura exploração da empresa colonial. Com a abundância de terras, ao homem livre pobre era preferível – e possível – viver economia de subsistência, do que ir trabalhar na plantagem ou na mineração por pouco mais do que um prato de farinha. Como já dito, para que haja exploração, quando a terra é livre, o trabalho deve ser necessariamente escravizado. Apenas com a plena apropriação da terra o trabalho pode ser libertado da coerção física.

A escravidão americana, produto de exigência econômicas, não foi uma mera refundação americana do escravismo da Antiguidade. Em seu trabalho clássico O escravismo colonial, Jacob Gorender lembrava que o escravismo americano foi superação qualitativa da escravidão antiga. Quando da descoberta das Américas, estavam dadas plenamente as condições gerais necessárias para que a produção escravista superasse o nível pequeno-mercantil que conhecera, quando da agonia do Império romano, assumindo o caráter de grande exploração dirigida para o mercado.

Os avanços na navegação permitiam que grandes quantidades de homens e de mercadorias fossem transportadas através do Atlântico com relativa segurança. Os avanços técnicos na produção forneceram o maquinário complexo exigido, por exemplo, pelos engenhos açucareiros, para organizar grandes plantéis de produtores feitorizados. Havia igualmente suficiente acumulação mercantil de capitais para financiar a empresa colonial. E, sobretudo, a expansão da economia européia criara mercado em contínua expansão tendencial, capaz de absorver incessantemente valorizados produtos coloniais, em geral incapazes de serem produzidos na Europa.

Havia igualmente mão-de-obra abundante capaz de sustentar a produção escravista americana; Quando da chegada dos europeus ao Caribe, em outubro de 1492, havia já meio século que negro-africanos haviam começado a ser capturados nas costas mediterrâneas da África e transportados para Portugal, para serem vendidos como cativos, substituindo crescentemente o muçulmano escravizado – mouro. Entretanto, nos primeiros tempos, não foi o negro-africano que labutou até a morte no Novo Mundo, para encher os bolsos dos comerciantes, proprietários fundiários e aristocratas europeus.

A exploração colonial das Américas inaugurou-se com a submissão brutal dos povos nativos, o que ensejou um decréscimo populacional abismal, mesmo de regiões densamente habitadas. Essa hecatombe demográfica foi explicada apologeticamente por amplos setores da historiografia contemporânea como devido a causas epidemiológicas. O tráfico de trabalhadores negro-africanos começou a ser desviado para as Américas em forma substancial apenas quando a população autóctone dizimada mostrou-se incapaz de sustentar economia apoiada na exploração despótica do trabalho forçado.

A divisão da costa brasílica em colônias, entregues a donatários, objetivava uma procura sistemática das magníficas minas que se acreditava possuir essas regiões, ao igual que as possessões andinas de Espanha. Muito logo, porém, conveio-se que o ouro dessas regiões não era dourado, mas branco. A grande e única diferença era que não seria arrancado das entranhas da terra, mas cultivado, colhido, beneficiado, tudo com o esforço do trabalhador escravizado, duramente expropriado dos frutos de seu trabalho. Por décadas, como nas colônias espanholas, também na faixa litorânea brasílica, o produtor feitorizado foi o nativo americano. E, como, nesse então, a palavra negro já assumira em Portugal o sentido de trabalhador escravizado, o americano feitorizado foi chamado de negro da terra..

São construções ideológicas as explicações da substituição da escravidão do americano pelo cativeiro do negro-africano como resultado da fragilidade física, da resistência indômita ou da incapacidade congênita ao trabalho sistemático do nativo brasílico; Essas teses racistas foram também abraçadas por Gilberto Freyre em Casa grande & senzala, obra nos últimos tempos objeto de enorme movimento de legitimação acadêmica. Após serem exterminadas as reservas de braços da faixa litorânea, os colonos portugueses iniciaram as chamadas descidas de populações nativas que haviam se homiziado nas terras do interior, até sua igual exaustão relativa.

Apenas quando o braço americano mostrou-se já definitivamente incapaz de saciar a fome pantagruélica de trabalhadores e trabalhadoras, o tráfico internacional começou a desembarcar, ao longo do litoral, trabalhadores africanos escravizados destinados a labutarem comumente até a morte em um mundo que se chamou de Novo. Uma substituição que se deu, essencialmente, nas colônias da costa vinculadas ao comércio colonial e, portanto, capazes de pagarem pelos caros cativos negros. Nas colônias mais pobres, seguiu a feitorização do nativo americano, em forma apenas disfarçadas, mesmo após sua definitiva proibição.

6. A Produção Africana de Cativos Coloniais

Em mais de três séculos e meio, o tráfico transatlântico arrancou do continente negro talvez quinze milhões de homens e mulheres, em geral muito jovens, no maior deslocamento forçado e permanente de trabalhadores conhecido pela humanidade. Esse processo multitudinário foi possível apenas devido sobretudo à importante população africana disponível, posta à disposição do tráfico por importantes instituições africanas. A cor da pele não teve qualquer interferência inicial nesse processo, de sentido essencialmente social e econômico. O racismo anti-negro foi conseqüência e jamais causa do tráfico e da escravidão americana.

No século 15, por razões sanitárias, econômicas, de comunicação, etc., era o interior – e não as costas – as regiões mais densamente habitadas da África Negra. Nesse então, em forma geral, as sociedades negro-africanas praticavam múltiplas formas de organização familiar-aldeã [modo de produção aldeão-doméstico, segmentar, de linhagem, etc.], sobre as quais se levantavam pequenos, médios e grandes Estados. Em raras regiões esboçava-se apenas a propriedade privada da terra. Bem comunal, a terra era possuída e explorada pela comunidade aldeã, que a disponibilizava para todos os seus membros plenos.

As aldeias africanas constituíam-se a partir de múltiplas famílias ampliadas, formadas pelo patriarca, suas esposas, filhos, noras, netos, agregados. A família celular e a divisão sexual do trabalho desempenhavam função de base nessa organização social. Era mais comum que a mulher se dedicasse à agricultura enquanto o homem praticava a caça, a pesca, a grande coleta, a guerra, etc. O homem rico possuía diversas esposas e muitos filhos; os jovens esforçavam-se para conseguir uma esposa e fundar uma família.

Nas aldeias, um patriarca exercia o poder político, pouco se diferenciando dos outros membros da comunidade. Nas federações de diversas aldeias – cheferias –, o mando era monopólio de membro de famílias aristocráticas, que se apartava crescentemente da produção, segundo seu maior ou menor poder. Pequenos, médios e grandes Estados praticavam a tributação do comércio, do direito de circulação, das comunidades aldeãs, etc. Os suseranos africanos, pertencentes a famílias singulares, apoiavam seus poderes na tributação da comunidade familiar-aldeã, do comércio e da mineração, sobretudo.

O núcleo familiar-aldeão possuía acesso pleno à terra e orientava sua produção para a subsistência. Em geral, todas as famílias produziam os mesmo produtos. Realidade que limitada fortemente as trocas inter-familiares e inter-comunitárias. O comércio local, regional e internacional intercambiava sobretudo a produção dos setores especializados, ou seja, de produtos não produzidos localmente pela economia aldeã – caça, pesca, peixe, sal, cola, etc.

O casamento delimitava as obrigações dos esposos, desequilibradas em favor dos homens. Mesmo não constituindo sociedade classista, a organização familiar-aldeã praticava a exploração das esposas, dos filhos, dos agregados em favor dos patriarcas, dos homens e dos esposos. As trocas matrimoniais davam-se entre as famílias e aldeias, preferindo-se as esposas de comunidades distantes, mais flexíveis às exigências dos consortes e de seus parentes, pois não podiam se apoiar em seus familiares.

Não havia espaço social para membros não vinculados a uma comunidade aldeã. Órfãos, prisioneiros, refugiados, etc. eram inseridos em uma família ampliada, em situação de subordinação, como filhos do patriarca, a quem deviam obrigações, das quais não se livraram sequer relativamente ao se casarem. Seus filhos seguiam sendo filhos do patriarca e não dos pais biológicos. A distância da região natal de um agregado dificultava uma fuga e aumentava seu valor.

A comunidade aldeã não conhecia a prisão, praticando como penas as multas, a morte, a perda da liberdade, etc. Aldeões e aldeãs condenados por feitiçaria, adultério, mortes, dívidas, etc., perdiam a liberdade e eram introduzidos em importante sistema de trocas que tendia a afastá-los, como as esposas, de suas regiões natais, para serem incorporados a famílias ampliadas como agregados. Esse movimento tendia a aumentar a produtividade da força do trabalho, ao radicalizar o grau de exploração dos indivíduos objetos desse processo. Esse movimento abria caminho da sociedade africana em direção à sociedade de classes.

Essa situação de dependência não pode ser identificada à escravidão. Os deveres do agregado para com o patriarca eram delimitados consuetudinariamente. O cativo incorporado a uma família ampliada como agregado podia casar, ter filhos, nos limites assinalados. Sua servidão – relativamente branda – extinguia-se na terceira ou quarta geração, ao diluir o estranhamento comunitário dos descendentes dos seus descendentes, permanecendo apenas uma origem genealógica desabonadora, já que não entranhada profundamente no passado comunitário local.

Com a organização do tráfico atlântico, importante parte da multitudinária circulação de esposas e, sobretudo, de cativos, foi desviada do interior para as feitorias européias da costa, para serem enviada às Américas, para conhecer o inferno da escravidão colonial. A produção de cativos, através de razias, de assaltos, da aplicação patológica da Justiça, etc., por africanos, envolveu enormes regiões da África Negra, que perdeu para as Américas multidões de seus mais jovens e saudáveis filhos. Nas costas africanas surgiram poderosos Estados africanos destinados à captura e exportação de cativos, que se locupletaram da expatriação de milhões de cativos para as Américas – Daomé, Oió, Benin, etc.

7. Feitorias, Castelos e Negociantes Africanos

No início da expansão marítima, nas costas atlânticas do Saara, os lusitanos desembarcavam seus cavalos e atacavam acampamentos de nômades berberes para obterem alguns cativos. Ao avançarem ao longo da costa, abandonaram esses métodos rústicos de aprisionamento. As populações saarianas afastavam-se do litoral, dificultando a captura de cativos e o comércio. Já na África Negra, as populações tornaram-se mais abundantes e belicosas. Os portugueses levavam comumente mais pancadas do que distribuíam.

Desde meados do século 15, os lusitanos estabeleceram o forte de Arguim, ao norte do rio Senegal, transformando a Alta Guiné no maior centro de captação de cativos, agora comprados às comunidades africanas da costa, que os traziam de regiões próximas e distantes do interior. O padrão mercantil lusitano de obtenção de cativos foi imitado pelas demais nações européias. Até o fim do tráfico transatlântico, em 1867-8, os europeus simplesmente compraram cativos de senhores e negociantes africanos, nas feitorias, presídios e castelos do litoral. Navios fundeados ao largo das praias embarcavam igualmente cativos. O tráfico foi sempre uma questão econômica e de classe, e jamais fenômeno étnico exclusivamente europeu.

As feitorias mais pobres eram dirigidas pelo feitor, europeu ou mestiço, secundado por um escrivão europeu e ajudantes africanos. As rústicas instalações eram cercadas por um muro de troncos, por uma cerca de espinho, por uma simples vala, que as protegiam de ataques e dificultavam a fuga dos prisioneiros. No portão principal, permanecia um velho canhão voltado para o interior do cercado. Uma torre de madeira controlava o mar e as vizinhanças. As cabanas do feitor, dos ajudantes e dos comerciantes eram de adobe, chão batido e cobertas de palha.

O barracão dos prisioneiros era uma simples cobertura, sem paredes, cercado por uma segunda paliçada, onde os cativos permaneciam atados a uma corrente, presa a dois pilares. As mulheres e as crianças circulavam no interior do cercado dos barracões. Era dura a vida espiritual e material do cativo à espera do embarque. A mortalidade era elevada. Na costa, os alimentos eram escassos e caros. Os cativos passavam fome ou comiam mal. À espera dos tumbeiros, trabalhavam em roças de subsistência. Eram também obrigados a se exercitar e a se banhar, em grupo, no mar, onde lavavam os olhos e a boca, com a água salgada, para prevenir as oftalmias e o escorbuto.

As feitorias simplificavam e rentabilizavam o tráfico, aproximando os comerciantes africanos e os tumbeiros. Comerciantes africanos chegavam do interior, sozinhos ou em caravanas, trazendo arroz, cera, marfim, ouro, peles, pimenta, penas de animais, óleo de palma etc. e sobretudo cativos. Os feitores deviam ter os barracões repletos de prisioneiros quando da chegada dos tumbeiros que, em geral, abasteciam-nos com as mercadorias exigidas pelos africanos - álcool, algemas, armas, espelho, ferramentas, fumo, grilhões, ouro, pólvora, tecidos, barras de ferro etc. Os tumbeiros demoravam-se nas inseguras e insalubres praias apenas o tempo de desembarcar as mercadorias e embarcar a carga humana. Não raro, esperavam de quatro a cinco meses para que cativos chegassem do interior e fossem negociados nas feitorias.

A construção de uma feitoria exigia capitais reduzidos e podia ser transferida facilmente, quando os cativos escasseavam ou encareciam. Os castelos eram construções poderosas e caras permanentes mantidas pelas Coroas européias e por companhias monopolistas. Tinham altas muralhas, torres, pátios internos, vastos armazéns, potente artilharia, guarnição européia e africana. Elas serviam também como apoio à navegação nesses remotos mares. Era ilusório o poderio dos castelos, situados a milhares de quilômetros da Europa. Sua segurança dependia dos senhores africanos da região, que exigiam taxas e tributos para simplesmente não impedir que as caravanas chegassem do interior. Apenas as praias da Costa de Marfim tiveram 23 castelos e fortes em funcionamento.

Desde fins do século 15, em Angola e Moçambique, os lusitanos iniciaram pioneira e isolada penetração dos sertões africanos. Para garantir a chegada de cativos e mercadorias na costa, fundaram pequenos presídios ao longo do curso de rios como o Kuanza e o Zambeze. Essas pequenas feitorias militarizadas tributavam e comerciavam com as populações do interior para obterem cativos e mercadorias. Senhores africanos resistiram a essa penetração portuguesa, para não perderem o controle do tráfico. A célebre rainha Nzinga Mbundi resistiu tenazmente ao domínio lusitano das rotas do tráfico do interior angolano. Quando os portugueses reconheceram-na como intermediária no comércio maldito, converteu-se ao cristianismo e adotou o nome português de Ana de Souza. Paradoxalmente, essa escravista africana tem sido objeto de homenagens no Brasil, mesmo por organizações negras – filmes, contos, etc.

É enorme ingenuidade se surpreender, indignar ou negar o fato de que, na África, o comércio de cativo dependeu essencialmente de senhores e de comerciantes negros ou africanos, que se mantiveram indiferentes à sorte de indivíduos tidos como seus patrícios. Não havia e não podia haver solidariedade geral, nacional, continental e sobretudo racial entre os africanos. Em verdade, as categorias africano ou negro eram exteriores às práticas do continente. Elas não descreviam relações sociais objetivas daquele contexto.

Na África da era do tráfico, as populações do continente organizavam-se segundo os múltiplos recortes familiares, aldeãs, comunitárias, no contexto de hierarquizações sociais que se fortaleceram e se perverteram fortemente, nas regiões envolvidas pelo comércio negreiro. O aristocrata e o comerciante africano não se identificavam minimamente com um aldeão reduzido à situação de cativo, mesmo quando tinham vínculos comunitários e étnicos próximos. A maior parte das populações direta ou indiretamente envolvida pelo tráfico jamais vira um branco, antes de chegar eventualmente ao litoral. Não existe base real para as atuais propostas de identidades e culturas africanas supra-sociais.

8. A Escravidão, Raça e Classe

O Brasil foi a nação americana mais acabadamente escravista. Foi uma das primeiras a conhecer a instituição e a última a aboli-la. Importou mais do que qualquer outra trabalhadores escravizados que produziram uma enorme variedade de produtos. Não houve região economicamente ativa de seu território que desconhecesse o trabalho feitorizado. A ordem escravista determinou profundamente a economia, a sociedade e a vida política nacional. A independência unitária brasileira nasceu de pacto das classes dominantes pela manutenção da escravidão. A longevidade da monarquia deveu-se à defesa intransigente da ordem negreira. Quando a escravidão ruiu, em 1888, a monarquia desmoronou, em 1889, como construção já sem fundamentos.

Dos 9 a 15 milhões de africanos que chegaram com vida na América, de três a cinco desembarcaram nas costas do atual Brasil. Eles eram em geral muito jovens e sobretudo homens. A alta taxa de masculinidade não se deveu à preferência dos compradores americanos, mas à prática dos vendedores africanos de reterem as mulheres como esposas, o que impediu uma hecatombe demográfica ainda maior. Os cativos praticando línguas, costumes e crenças diversas, ainda que regiões da África foram berços privilegiados do tráfico. Negreiros e escravistas procuravam jamais realizar viagens ou formar escravarias homogêneas, o que facilitava movimentos de resistência.

Não era a raça, a cor ou a origem que determinou a vinda e a exploração do africano nas Américas. Era a capacidade de trabalhar que sustentou e financiou a captura, o transporte, a chegada, a distribuição e a submissão dos cativos no Novo Mundo. O cativo era escravizado, essencialmente, por ser trabalhador, e jamais por ser africano. No Brasil, estreitamente vigiado, o africano, denominado de cativo ou negro novo ou boçal, sem saber falar a língua da terra e as práticas produtivas, era responsabilizado pelas tarefas mais pesadas e mais duras. Ao aprender rudimentos da língua e se enfronhar na produção, passava a ser denominado de ladino. O trabalhador escravizado nascido no Brasil era conhecido como crioulo.

As condições de existência do cativo variavam relativamente segundo sua inserção na estrutura produtiva. Eram em geral relativamente diversas as condições de trabalho e de vida do cativo labutando na moenda, no eito açucareiro, na mineração aurífera, no transporte de mercadorias, na economia pastoril, nos trabalhos domésticos, etc. Todas elas eram, entretanto, apenas mais ou menos duras e penosas. Os privilegiados por situações funcionais especiais – feitores, administradores, capatazes, pajens, mucamas, etc. – constituíam uma muito pequena minoria.

Devido à grande rusticidade da economia colonial americana, a produção escravista exigia forte exploração do produtor direto, para extração de quantidade de sobre-trabalho capaz de manter a rentabilidade da produção. Portanto, não havia o escravista bom ou mau, por além das eventuais variações de comportamento devido a idiossincrasias pessoais. Para não falhar na sua empresa mercantil, e falir vergonhosamente, o escravizador feitorizava necessariamente o cativo em forma muito dura. Em verdade, não havia bases matérias gerais para o escravizador bom.

Dominante no Brasil do início da colonização à praticamente até Abolição, o modo de produção escravista colonial dividia e opunha fundamentalmente a sociedade em duas grandes classes, a dos escravizadores e a dos escravizados. As próprias representações ideológicas paridas pelo escravismo, que ensejaram a desqualificação da pela negra e das práticas africanas, submetiam-se fortemente àquela determinação básica. Havia igualmente diversos outros modos e formas de produção não escravistas subordinados.

A manumissão foi instituição da Antiguidade retomada pela escravidão americana, que contemplou um número pequeno de cativos, com destaque para os urbanos, do sexo feminino, crioulos e já idosos. Ela contribuiu sobretudo para consolidar a ordem escravista, cooptando os segmentos mais dinâmicos dos escravizados. Nada impedia que um liberto, um crioulo ou um africano ou seus descendentes se transformasse em escravizador através da aquisição e exploração de trabalhadores escravizados. Foi igualmente importante a prole de portugueses com africanas, não raro, legitimada.

Na Colônia e no Império, a população com alguma afro-ascendência – livre, liberta, escravizada – era muito mais importante do que a atual. Ainda que os escravizadores fossem prioritariamente de origem européia, era longe de ser desprezível o número de proprietários de cativos afro-descendentes. Era também normal capatazes, feitores, capitães-do-mato, soldados de primeira linha negros e mulatos. Mesmo no contexto dos prejuízos e privilégios nascidos da cor impostos pela ordem escravista, a existência de africanos e afro-descendentes escravistas, livres, libertos e escravizados impedia identidade entre os oprimidos apoiada na cor.

9. Uma Classe Pateticamente Só

As classes escravistas portuguesas, luso-brasileiras e brasileiras mantiveram a escravidão do início da colonização, em 1530, até sua agonia, em 1888. Dos 510 anos de história brasileira, 380 deram-se sob a dominância do escravismo. São pouco discutidas as razões da enorme longevidade e solidez da ordem escravista brasileira, apesar das duras condições existência dos cativos. No Brasil, por graves limites objetivos e subjetivos, os trabalhadores escravizados jamais organizaram movimentos gerais contra a escravidão. As rebeliões mais organizadas limitaram-se a, no máximo, alguns municípios.

Os cativos enfrentaram em condições fortemente negativas seus algozes sociais. Enquanto os escravistas conheceram sempre centralização política e forte unidade cultural e lingüística, a população africana escravizada praticava línguas e culturas diversas e encontrava-se fortemente atomizada em milhares de unidades produtivas, nas colônias e províncias semi-independentes. Eram impossíveis por razões geográficas e econômicas contatos horizontais amplos entre a população servil. Os escravizadores incentivavam a animosidade entre os cativos nascidos na África e no Brasil. A diversidade cultural foi minimizado apenas com a ladinização e crioulização das escravarias, sobretudo após o fim do tráfico, em 1850.

Era também muito baixa a idade média dos africanos e africanas desembarcados nas costas do Brasil – não raro eram pouco mais, pouco menos do que adolescentes. São ideológicas as visões gentis sobre uma sociedade escravista onde os cativos alimentavam-se regiamente, trabalhavam pouco, jamais eram castigados, ao estilo do trabalho Ser escravo no Brasil, da historiadora Kátia de Queirós Mattoso. Apesar dessas visões românticas e gentis da sociedade escravista, era muito baixo o nível cultural da população escravizada, sobretudo devido às longas, duras e rústicas jornadas de trabalho.

As gerações de cativos morriam e estropiavam-se precocemente, sendo incessantemente substituídos por cativos novos, chegados da África, pouco preparados para uma resistência à opressão fortemente reprimida. A contínua renovação dos trabalhadores escravizados dificultava a formação de tradição de luta e de consciência anti-escravista. Por razões diversas, o escravismo colonial jamais conheceu elite de cativos empregados em tarefas complexas e de nível cultural mais desenvolvido, como na Antiguidade. Na segunda metade do século 19, talvez apenas um em cada mil cativos soubesse escrever e ler, mesmo rusticamente.

Duas enormes barreiras dificultavam a luta servil. O escravismo dominava a sociedade e a produção no Brasil colonial e imperial, tecendo rede de consenso e de interesses sociais que extravasava fortemente os círculos dos grandes, médios e pequenos escravizadores. Os próprios cativos mais preparados e em melhores posições relativas sonhavam com a muito difícil mas não irreal possibilidade de alcançar a alforria e transformar-se em escravizadores. O liberto dificilmente fraternizava com o cativo. A cor da pele não unia horizontalmente os trabalhadores escravizados com os afro-descendentes libertos e livres, pobre e ricos.

Jamais se gestou no seio da sociedade escravista brasileira forma de produção alternativa, superior à escravidão, criando setores sociais e alternativa geral à ordem negreira, como ocorreu nos USA, sobretudo fora da fronteira dos grandes estados escravistas. Para que ela surgisse, a escravidão teve que ser abatida. Os trabalhadores escravizados rebelavam-se em forma isolada ou em pequenos, médios e grandes grupos, no geral, não contra a escravidão como instituição, mas contra suas escravizações, sobretudo através da fuga, dos quilombos, das insurreições. No início do século 19, cativos baianos conspiraram para sublevar-se, libertar-se, matar os brancos e escravizar os mulatos.

No Brasil, fora raras exceções, todos os grupos sociais livres, não importando a cor de suas peles, dependiam direta ou indiretamente do esforço do trabalhador escravizado. Por séculos, os cativos Brasil lutaram no Brasil pateticamente sós, sem contarem com algum apoio entre as classes livres ricas, pobres e miseráveis, fossem elas brancas, pardas, mulatas e negras. Uma realidade que mudaria apenas com o advento do movimento abolicionista.




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