domingo, 30 de setembro de 2012

Você conhece ? - Quando Maria Alucina


Completando 40 anos de carreira, Maria Alcina não para
Foto: Eliária Andrade / Agência O Globo

Dia desses, a cantora Maria Alcina, 63 anos, achou no YouTube dois vídeos seus no programa “Fantástico”, da TV Globo. No primeiro, de 1974, ela canta “Como vaes você?”, um sucesso antigo na voz de Carmen Miranda, trajada de colete vermelho, cinta-liga e um arranjo de penas negras na cabeça. No mesmo ano, foi censurada pelo regime militar por “comportamento inadequado e atentado ao pudor e à moral da família brasileira”, lembra ela. Suas músicas não podiam ser tocadas em lugar algum. No segundo vídeo, quatro anos depois, interpreta as marchinhas “Minha carta (de amor) a um suicida” e “Yes, nós temos banana” com o timbre de voz inconfundível e a exuberância que marcaram sua trajetória artística desde 1972, quando aquela menina magrela defendeu com uma dança desajeitada, um visual andrógino e uma presença de palco incrível a música “Fio Maravilha”, de Jorge Ben Jor (à época, apenas Jorge Ben), no Festival da Canção. A música ficou com a menção honrosa do júri popular, espécie de compensação para as canções que agradavam muito ao público e nem tanto aos jurados. Mas a performance catapultou Maria Alcina para o estrelato, transformando-a de musa alternativa a diva gay, imitada por um sem-número de transformistas pelo país. “Fio Maravilha” — rebatizada “Filho Maravilha” anos depois, por conta de uma briga por direitos com o ex-jogador do Flamengo homenageado — também está no YouTube, com mais de 32 mil exibições. Alcina, como chamam os amigos, olha divertida para a menina que era.
— Era uma garota tão à vontade e segura — diz, no salão de festas do edifício onde mora, no bairro de Higienópolis, na Zona Oeste de São Paulo, os cabelos cuidadosamente produzidos com gel purpurinado colorido e vestindo uma espécie de bata de estrasse vermelho com boás de penas de cores variadas. Mais Maria Alcina, impossível. — Não sei onde foi que eu perdi essa mulher. Porque ela ainda está em mim, né?
Está, sim, Alcina. E não apenas no modelo exuberante com que recebe a reportagem. Tanto que a versatilidade, a alegria e a disposição foram percebidas por um grupo de jovens diretores musicais, produtores, pesquisadores e compositores que, nos últimos anos, trataram de tirar a intérprete do anonimato e devolvê-la ao posto de diva alternativa da música popular brasileira. Está no forno o disco comemorativo dos 40 anos de carreira da cantora, com músicas escritas para ela especialmente por artistas como Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro, autor da faixa “Eu sou Alcina”. O lançamento será em novembro.
— Alcina não tem a exata noção de sua genialidade como artista — diz o produtor e pesquisador Thiago Marques Luiz, de quem partiu a ideia do disco comemorativo. — Será um CD à altura da versatilidade dela, com interpretações de músicas de compositores como João Bosco, Raul Seixas, Chico Anysio e Adoniran Barbosa, entre outros.
Show-tributo a Gonzagão foi visto por 90 mil
A cantora não faz shows em grandes teatros, o que passa a ideia de que está parada. Besteira. Sua agenda está cheia até março do ano que vem, quando termina a turnê do show “Cem anos do Rei do Baião”, homenagem a Luiz Gonzaga já vista por nove mil pessoas desde a sua estreia, em março passado. É um show popular, que vai virar CD e DVD até o fim do ano. No palco, a cantora interage com um público excitadíssimo. E explica, apesar da gritaria, que não dá para cantar antigos sucessos seus, como “Fio Maravilha”, “Kid Cavaquinho” ou “Prenda o Tadeu” porque, afinal, o show é em tributo a Gonzagão.
— Quando soube que 2012 marcava os 100 anos de Luiz Gonzaga, pensei logo num show-tributo estrelado pela Maria Alcina, uma das cantoras mais talentosas do país — diz o produtor musical Fran Carlo, criador do espetáculo.
O entusiasmo é compartilhado pelos artistas que trabalharam com ela. Jorge Ben Jor, autor de “Fio Maravilha” e “Camisa 10”, a considera pura vanguarda:
— Ela sempre esteve à frente do seu tempo e acabou sendo censurada e repudiada por seu comportamento exuberante, por seus atos no palco. Mas a verdade é que ela foi a Lady Gaga daquela época.
— É um Chaplin de saias, capaz de cantar o que for em termos de música popular — diz o cantor Edy Star, substituto de Alcina no show que fazia na boate carioca Number One, nos anos 1970, e parceiro em recente homenagem musical a Assis Valente.
O mesmo pensa o pesquisador Rodrigo Faour, que acaba de lançar, pela gravadora EMI, a série de CDs Super Divas, com 13 cantoras que marcaram a história das vozes femininas na MPB. Maria Alcina é uma delas.
— Poucas cantoras mantiveram a fúria, o vigor e o tesão que eram muito comuns nos intérpretes das décadas de 1970 e 80 — diz Faour. — Hoje é tudo pasteurizado e cool. Quando enviei os discos das Super Divas para ela, disse que tinha chorado porque nunca havia se sentido uma cantora.
Faour, pode-se dizer, foi um dos responsáveis pelo ressurgimento de Maria Alcina ao relançar, em 2002, com a Warner, seus dois primeiros discos. No ano seguinte, o músico e produtor Maurício Bussab, do grupo Bojo, escolheu Alcina como parceira em um projeto do Sesc que pretendia juntar uma cantora e uma banda de música eletrônica. Os shows alcançaram um sucesso tão grande que resultaram no CD “Agora”, cujas faixas são vendidas na rede até hoje. Músicas como “Eu dei”, “Sangue latino” e a própria “Fio Maravilha” ganham versões eletrônicas inusitadas.
— Um público mais jovem descobriu Alcina. Tanto que me entusiasmei a fazer um segundo disco, dessa vez somente dela, com bases eletrônicas — conta Bussab.
“Maria Alcina confete e serpentina” foi lançado em 2008 e, em 2009, ganhou dois troféus no Prêmio da Música Brasileira: melhor disco e cantora, na categoria canção popular.
Tapando o buraco de Leila Diniz
Maria Alcina era uma menina operária na cidade mineira de Cataguases, em 1969, quando se apresentou no Festival Audiovisual da cidade e impressionou o compositor carioca Antonio Adolfo, que a levou para o Rio.
— Aquela menina de voz grave, com aquela garra contagiante, impressionou todo mundo, do Nelson Motta ao Millôr Fernandes — conta o jornalista e escritor Ronaldo Werneck, que hospedou Alcina no Flamengo, no Rio, na casa de uma namorada.
A cantora passava os dias correndo atrás de shows para se apresentar. Em 1972, batia ponto no Teatro Casa Grande quando sua primeira oportunidade aconteceu. A atriz Leila Diniz, estrela da revista “Vem de ré que eu estou em primeira”, de Tarso de Castro e Luis Adelmo, machucou o pé, e o espetáculo teria que ser reformulado até que ela se recuperasse. Alcina foi convidada a se apresentar (cantando “Baby” e “Asa branca”), e aquilo deu tão certo que ela acabou na boate Number One, em Ipanema.
— O empresário me ouviu cantando e achou que era um transformista por causa da voz grave. Quando me viu, contratou na hora — diz ela, às gargalhadas.
Solano Ribeiro, produtor por trás dos festivais da canção, também a viu e convidou para se apresentar no 7º Festival Internacional da Canção. Ela escolheu “Fio Maravilha” e explodiu. Na próxima sexta-feira, o programa “Som Brasil” vai homenagear os festivais, e Maria Alcina estará lá, cantando mesma canção com o jovem músico Thiago Amud.
Maria Alcina entrou na década de 1980 desbundando geral, mas, a exemplo de outros cantores da mesma época, sumiu dos radares diante de um mercado ávido por novidades e cada vez mais cruel com carreiras artísticas administradas ao sabor dos acontecimentos. Para não sumir totalmente, Alcina passou longo período sendo jurada de programas de televisão, de J. Silvestre a Raul Gil, enquanto cantava onde lhe oferecessem trabalho, de circos a shows pelo interior. Por 20 anos, não gravou mais discos, até ressurgir aos poucos, mas em toda a sua exuberância, a partir dos anos 2000.
— Não me arrependo de nada. Altos e baixos fazem parte da vida. Pra ser sincera, em 40 anos de carreira, o que destaco nessa caminhada é o próprio caminho. Tudo valeu a pena — diz.

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