sexta-feira, 10 de julho de 2015

Crônicas do Dia - A maioria da bomba atômica

Durante 24 horas, apenas 24 horas, houve lucidez na Câmara dos Deputados. Urna pequena ilha de razão aflorou num mar de destemperos e desaforos. Foi como se o impossível entrasse em cena e, durante 24 horas, não mais que 24 horas, o bom-senso pudesse vencer a truculência.


Era a noite de terça-feira passada, já entrando pela madrugada de quarta, quando a emenda constitucional caprichosamente engatilhada para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos de idade sofreu uma derrota que ninguém esperava. A bancada reducionista estava a ponto de bala, tinha arregimentado seu batalhão de 303 deputados, todos valentes, todos enfezados, mas isso não bastou. Ficaram faltando cinco votos, cinco míseros votos, para que o plenário aprovasse a medida. A bancada reducionista perdeu.

Naquela madrugada, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o intrépido presidente da Casa, impiedoso exterminador das pretensões da bancada governista, até das mais humildes e mais submissas, sofreu seu pior revés. Não, não podia ser verdade. De repente, parecia que a razão poderia triunfar.

Foi então que, na noite seguinte, as coisas voltaram ao seu normal - e seu normal é a mais completa anormalidade. Por volta da meia-noite, no início da madrugada de quinta-feira, os 303 votos da madrugada anterior se desdobraram em 323, desferindo seu golpe fatal. A razão submergiu outra vez, pisoteada, incompreendida. A desordem natural das coisas foi restabelecida.

E agora? Agora não vem a sombra. Não que os adolescentes passarão a lotar as prisões a partir desta segunda-feira. A emenda constitucional terá de enfrentar outras votações, a coisa ainda demora, mas o primeiro passo está dado e nada parece capaz de deter o galope que vem por aí. Os nobres deputados reducionistas marcham unidos. Não ligam para os estudos, numerosos e sólidos, que projetam um colapso no sistema penitenciário. Não os incomoda se a escola do crime que se apossou de todas as cadeias aumentará sua capacidade de formar, treinar, arregimentar e comandar criminosos cada vez mais jovens, colocando-os nas ruas cada vez mais cedo. Não os sensibilizam as demonstrações exaustivas de que o encarceramento dos adolescentes, em lugar de reduzir a criminalidade, tem chances substanciais de impulsioná-la.

Se a segurança pública corre o risco de explodir feito bomba atômica, eles não querem nem saber. Eles são a maioria. Exultantes, crispados e desafiadores, cantam sua vitória de curto prazo e de pavio curto. São soldados da demagogia temerária. São cavaleiros do ódio. Com eles e por eles, a Câmara dos Deputados surtou. O Poder Legislativo enlouqueceu, refém desse Nero de muitas cabeças, um Nero coletivo, um Nero reencarnado na compacta multidão parlamentar que quer pôr fogo nas prisões, no governo e no país.

Não, não é uma questão de opinião que está em pauta. Não estamos assistindo a um duelo entre dois pontos de vista opostos: de um lado, os que acham que um adolescente deve ir para a cadeia como se tivesse mais de 18 anos; de outro, os que acreditam que o adolescente deve ser recolhido para ser corrigido e recuperado, mas não deve sofrer a mesma condenação que um adulto. Não é isso. O enfrentamento que estamos vendo é de outra ordem: de um lado estão as forças que querem posar de justiceiras a qualquer custo, que fazem qualquer negócio para desgastar a presidente da República; do outro, está o pouco que nos resta de razão.

Não vale dizer que a sociedade brasileira é a favor da redução da maioridade penal. Posta assim, a questão está malposta. Os brasileiros ouvidos nas ruas pelos institutos de pesquisa não são especialistas em matéria de execução penal. Eles expressam seu inconformismo com a impunidade generalizada, não aceitam que um assassino escape à Justiça, tenha ele 19 ou 17 anos, e foram convencidos de que a redução da maioridade penal resolverá o caos. Foram enganados.

A indignação é justa, mas a conclusão é ilógica. Não que a solução do problema dependa de números mágicos: 16,15 ou 21.0 número poderia ser qualquer um. Países diferentes adotam idades diferentes para definir a maioridade penal. Com números distintos, sociedades distintas alcançaram bons padrões de justiça e de controle da criminalidade. Mas, no Brasil de hoje, a redução burocrática e insensível da maioridade não apenas pode não resolver coisa nenhuma, como - é bom repetir - pode produzir o efeito inverso ao prometido pela bancada reducionista.

Bons parlamentares não obedecem, mas interpretam as pesquisas e a elas dão respostas racionais. Bons parlamentares são raros. A lucidez se apaga na Câmara dos Deputados. 

Eugênio Bucci

Revista Época 

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