Em geral, a doutrinação religiosa está por trás de atos violentos
1.
“Vai procurar uma rola, Malafaia!”
O jornalista Ricardo Boechat cunhou a frase lapidar dias atrás, ao rebater em programa de rádio provocações do pastor evangélico Silas Malafaia. Analisando-a em perspectiva, a expressão pode ser considerada uma versão brasileira, ou tropical, do “Je suis Charlie”, o slogan mundial daqueles que se opõem à intolerância e beligerância religiosa.
2.
Imediatamente após proferida, a frase virou sensação na internet. O que brilha na expressão de Boechat — além do bom humor, embora tenha sido pronunciada com gravidade e alguma irritação — é justamente seu caráter dúbio, ao mesmo tempo chulo e profundo. Ao sugerir que o pastor fosse procurar uma rola (um dos mais simpáticos apelidos do pênis, que evoca a semelhança entre o mesmo e a ave gorjeante), o jornalista toca num ponto nevrálgico do discurso homofóbico: o desejo reprimido. Estudos afirmam que homofobia pode revelar homossexualidade recalcada. O que, segundo a sabedoria popular dos gays libertários de Ipanema, se traduz por: “Dentro de todo pitbull vive uma Lassie”.
3.
“Vai procurar uma rola” não foi, obviamente, uma expressão inventada por Ricardo Boechat. A frase existe há tempos e é bastante machista e homofóbica em essência. Homens usam-na para agredir-se mutuamente, e a sugestão tem a intenção de humilhar aquele que se ofende por ter a heterossexualidade questionada. Eis o interessante paradoxo de Boechat: ao usar uma expressão vulgar de porta de botequim, o jornalista consegue cutucar com agudeza o tenebroso discurso de religiosos que querem impor à sociedade seus ritos e códigos morais.
4.
A escritora Rosiska Darcy dissertou com brilho há dias aqui no GLOBO: “O divisor de águas não é, portanto, entre quem tem fé e quem não tem. É entre intolerantes e libertários. É entre a imposição e a escolha, o único e o múltiplo, o fechamento e a abertura, o arco-íris da diversidade e o obscurantismo monocromo”.
5.
O fato que gerou a polêmica entre Malafaia e Boechat foi a agressão à menina Kailane Campos, de 11 anos, apedrejada e ofendida por um grupo de homens na Vila da Penha por vestir roupas rituais do candomblé. Aos gritos de “Macumbeira!”, “Diabo!” e “Jesus está voltando!”, o bando a condenava ao inferno. Que tipo de perversidade leva um imbecil a apedrejar uma menina de 11 anos por vestir roupa branca? Provavelmente a mesma que inspira um talibã a disparar contra uma menina de 14 por querer estudar. Em geral a doutrinação religiosa está por trás de atos assim, materializada na mais nociva de suas ramificações, o fundamentalismo, a interpretação literal dos textos ditos “sagrados”.
6.
O laicismo, que preserva a tolerância religiosa, é garantido no Brasil pela constituição e pelo código penal. Mas se somos um estado laico, precisamos rejeitar com rigor a influência da Igreja na esfera pública, já que assuntos religiosos só devem pertencer à esfera privada de cada indivíduo e o estado tem que permanecer imparcial nas questões religiosas. Causam-me arrepios as tentativas de se impor oficialmente o ensino religioso nas escolas públicas. Qual o verdadeiro interesse na medida que não a doutrinação pura e simples? Se a história das religiões tem importância didática, ela está circunscrita ao âmbito da história geral, e sempre pela ótica científica do historiador e não pela visão comprometida do pregador.
7.
Intolerância e beligerância não se limitam a religiosos radicais. Um sentimento generalizado de violência e paranoia paira sobre nossas ruas como um eclipse. Outra dia vi na TV uma cena chocante. Dois menores brigavam numa rua da Zona Sul quando policiais civis que passavam pelo local os renderam. A cena mostra o momento em que os dois garotos, deitados na calçada sob a mira das armas dos policiais, são agredidos por passantes. Primeiro ouvimos uma mulher por trás da câmera dizer “Mata! Mata!” Pela voz imagino uma senhora de meia-idade, provavelmente uma respeitável dona de casa a caminho das compras. Surge um homem, aparentemente um inofensivo pedestre, e desfere um pontapé nas costas de um dos garotos. Os meninos não tinham cometido nenhum crime, apenas brigavam. Os agressores parecem querer vingar na figura dos dois inocentes — negros e moradores de favela — todo o ódio e preconceito acumulados.
8.
Urge que intolerantes e preconceituosos iniciem imediatamente sua busca à rola. E, de preferência, que a encontrem logo.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/santa-rola-16666984#ixzz3gO8c6Onx
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