terça-feira, 7 de julho de 2015

Te Contei, não ? - A correspondência secreta de Mário de Andrade

A revelação da carta em que o escritor fala de sua homossexualidade possibilita um debate mais franco sobre sua vida e sua obra

MARCELO BORTOLOTI
26/06/2015 

O poeta Manuel Bandeira morreu em 1968 sem ter definido com quem ficaria seu arquivo pessoal. As cartas que recebeu de outros escritores, os manuscritos e os rascunhos de poemas permaneceram no apartamento de sua companheira, Maria de Lourdes, onde o poeta passou os últimos anos de vida. Uma década depois esses documentos ainda estavam ali, amontoados em cima de um sofá. Foi o bibliófilo Plínio Doyle, então diretor do arquivo literário da Fundação Casa de Rui Barbosa, quem conseguiu convencer a viúva a transferi-los gratuitamente para a instituição. Naquele momento, muita coisa já havia se perdido. Da imensa correspondência que teve com Mário de Andrade, só restavam 15 cartas. Toda a correspondência com Carlos Drummond de Andrade havia desaparecido, e até hoje seu paradeiro é desconhecido. O conjunto levado para a Fundação, no entanto, era ainda extremamente valioso, com 1.400 itens, que estariam disponíveis aos pesquisadores no princípio de 1980. Antes disso, ao catalogar o material, Plínio Doyle e uma comissão de técnicos entenderam que alguns documentos não poderiam ser abertos, porque traziam um conteúdo sensível ou muito íntimo. Entre esses havia uma carta escrita por Mário de Andrade em 1928, falando abertamente de sua homossexualidade. O tema era espinhoso porque, embora houvesse muitas referências indiretas sobre o comportamento sexual do escritor, a família do autor e alguns pesquisadores preferiam esconder o assunto.


O próprio Manuel Bandeira, que publicou parte dessa carta em 1958, suprimiu o trecho mais delicado. Plínio mandou lacrar o documento, que só poderia ser aberto em 1995, meio século depois da morte de Mário. Outros documentos lhe pareceram ainda mais perigosos. Três cartas do escritor Ribeiro Couto, uma do pintor Cícero Dias e quatro poemas eróticos de Bandeira deveriam ficar fechados por 35 anos, e abertos só em 2015. Em 1995, técnicos da Fundação decidiram que a carta de Mário ainda não poderia ser aberta. Não há registro na casa sobre quem tomou essa decisão, e qual foi a justificativa. No começo deste ano, quando as outras cartas e os poemas deveriam ser abertos, a instituição informou que eles só poderiam ser acessados com autorização expressa dos herdeiros.



Nesse momento teve início uma briga jurídica para liberar o material. Em fevereiro, ÉPOCA entrou com um pedido por meio da Lei de Acesso à Informação, por se tratar de uma instituição pública ligada ao governo federal. A solicitação foi negada em duas instâncias. ÉPOCA recorreu, então, à Controladoria-Geral da União, que determinou que a documentação deveria ser aberta. A Fundação acatou a decisão, menos para a carta de Mário de Andrade. Neste caso, pediu reconsideração da sentença, alegando que o acesso ao documento traria “danos irreparáveis” à imagem da instituição. Também anexou um parecer do sobrinho de Mário, Carlos Augusto Camargo, pedindo que a carta permanecesse lacrada porque tratava de questões íntimas do escritor. A CGU negou o recurso. Segundo entendimento da Controladoria, informações pessoais não podem ser protegidas quando são necessárias à compreensão de fatos históricos de maior relevância.



A euforia em torno da carta está diretamente relacionada com o esforço por abafar o tema. “Se você coloca uma pedra sobre um assunto, certamente vai causar barulho ao removê-la”, diz Silviano Santiago, um dos principais críticos literários do país. Para ele, entender e discutir a sexualidade de Mário não é apenas relevante. Ajuda a atualizar, sob uma ótica contemporânea, a leitura de sua obra e sua presença intelectual na cultura brasileira.

Na carta, Mário expõe de maneira inédita e explícita as perseguições que sofreu por sua fama de homossexual – e não desmente o fato. Ele critica o interesse sobre o assunto. “Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade?”, questiona. Mário lamenta os boatos, mas reconhece que eles partem de uma “verdade inicial”. E relata a pressão diária de que é vítima: “Me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão)”.

Mário nunca teve namorada e vivia com a mãe em São Paulo. Na juventude, teve experiências com prostitutas e chegou a contrair uma doença venérea. Em sua obra aparecem paixões platônicas por figuras femininas, como a filha de Olívia Guedes Penteado, Carolina da Silva Telles, tema da série de poemas Tempos de Maria. Mas também aparece o tema homoerótico, como no conto “Frederico Paciência”, que trata de dois jovens colegiais experimentando os limites da amizade e da paixão. Há também quem veja referências homoeróticas no poema “Acalanto do seringueiro”. “Ele era bissexual”, diz o jornalista Jason Tércio, que está escrevendo uma biografia de Mário.



Sua fama de gay foi explorada negativamente desde a década de 1920. Oswald de Andrade escreveu em 1929, na Revista de Antropofagia, um artigo depreciativo com o título “Miss Macunaíma”. A escritora Rachel de Queiroz, em sua autobiografia, diz que Mário era vítima de preconceito por ser mulato e homossexual e acrescenta que “as duas coisas eram verdadeiras”. Moacir Werneck Castro, que conviveu com o escritor no final dos anos 1930, escreveu em 1989: “Na raiz do drama existencial de Mário de Andrade jaz a angústia da sexualidade reprimida e transformada em difusa pansexualidade, que tudo permeia”. O próprio Mário admitiu essa “espécie de pansexualismo” em carta a Oneida Alvarenga, na qual se refere a sua “assombrosa, quase absurda, (...) ‘monstruosa’, sensualidade”.

No Brasil provinciano da primeira metade do século XX vivia-se num ambiente homofóbico, refletido até na poe­sia de Manuel Bandeira. Num de seus poemas que estavam lacrados, Bandeira se refere ao poeta e crítico literário piauiense Mário Faustino, sobre quem também pesava a fama de homossexual: Mário Faustino, és de veras./E se és, Faustino, veado,/Bem poderás ser chamado/Pelos a quem dás ou deras/Ou darás, Faustino amado,/Mário veado de veras!. Uma versão alternativa do poema foi publicada em coletânea organizada pelo pesquisador Alexei Bueno.

Este não foi um preconceito localizado no tempo. O escritor Pedro Nava, da geração posterior à de Mário de Andrade, se matou em 1984 depois que um garoto de programa ameaçou espalhar que ele era bissexual. Na época, a grande preocupação da família e dos amigos de Nava foi esconder a causa do suicídio. Da mesma forma, família e seguidores de Mário preferiram manter sua imagem de intelectual casto a expor o homem de “assombrosa sexualidade”.


Por causa dessa tensão, a revelação da carta causa muito mais impacto que as outras correspondências que, em 1980, Plínio Doyle considerou que deveriam ser lacradas por 35 anos. As três cartas de Ribeiro Couto falam basicamente dos conflitos do escritor com sua mulher, Menina, e hoje parecem irrelevantes. A carta de Cícero Dias, sem data, trata de forma pouco abonadora o pintor Emiliano Di Cavalcanti. Um trecho da mensagem, escrita provavelmente às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando os dois pintores viviam na França, diz: “Agora aqui em Paris é que eu conheci este Di Cavalcanti. Tudo o que você me disse sobre ele é verdadeiro, o homem não tem caráter. Fugiu miseravelmente”.

Os poemas proibidos de Manuel Bandeira, alguns deles impublicáveis, são interessantes para conhecer melhor as tensões e inimizades que havia entre os grupos intelectuais daquele período (eles estão disponíveis em epoca.com.br). A abertura desses documentos vai permitir uma discussão mais ampla sobre os limites de instituições públicas em segurar documentos privados que podem ter interesse histórico. Mas sobretudo liberta Mário de Andrade da sombra de um tema que sempre foi considerado tabu – e poderá ser tratado de forma aberta no ano em que ele é o grande homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, no início de julho. 

Revista Época 

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