Devemos louvar diariamente as livrarias que estão atuantes e de pé
Em uma cidade cujas livrarias fecham ou anunciam o seu fim, devemos louvar diariamente aquelas que estão atuantes e de pé. Isso porque, ao longo de sua História, a vocação carioca para a rua fez delas espaços fundamentais de encontro, sociabilidade e fruição estética da vida. Foi no Centro da cidade que ficaram famosas as estantes de locais como Garnier, São José, José Olympio e outras mais contemporâneas, como Da Vinci, Berinjela ou a primeira das Travessas. Hoje, se há uma livraria que merece entrar nessa longa linhagem de espaços no Centro é a gloriosa Folha Seca.
Encravada nas pedras da Rua do Ouvidor, a Folha Seca é comandada por Rodrigo Ferrari. Há dez anos, ele conduz com persistência um empreendimento que hoje parece improvável: vender apenas livros voltados quase exclusivamente para o que se produz na cidade. Claro que, entre os seus muitos títulos, encontra-se de tudo. Mas o sumo, a marca indelével é justamente o investimento em uma bibliografia única sobre o Rio de Janeiro, suas ruas, sua História, seu futebol, sua música, sua cultura popular, suas múltiplas religiosidades, seus personagens e seus encontros. Dentro do pequeno espaço da livraria, desaceleramos nossas pressas.
Outro ponto importante para ratificar o que muitos já disseram, isto é, a importância da Folha Seca no atual cenário da cultura carioca, é lembrar que Rodrigo, quase sempre, está ali, no balcão, pronto para qualquer prosa sobre os títulos, sem afetação de especialista e sem cansaços de falastrão. Caso existissem máquinas do tempo, Rodrigo seria certamente um membro da Sociedade Petalógica ou de outros grupos cujas conversas sobre e entre livros eram tão importantes quanto lê-los. Em uma passagem de “Teoria do medalhão”, famoso conto de Machado de Assis, o pai, ao projetar para o seu filho o ofício do protagonismo desimportante, afirma que as livrarias são lugares em que se dissipa “toda a poeira da solidão”. Rodrigo Ferrari e sua Folha Seca nos inserem nesse tempo-espaço povoado de histórias e afetos.
Mas o trabalho de Rodrigo não cessa na venda dos excelentes livros e na invenção de um ambiente único para seus fregueses. A livraria tornou-se também uma editora fundamental, cujos títulos ampliam em muito nossa capacidade de entender a história da mui leal e heroica. São títulos que nos remetem a épocas e personagens quase inéditos nos debates contemporâneos e nas efemérides dos 450 anos. Entre vários, destaco rapidamente três livros: “O baú do animal – Alexandre Gonçalves Pinto e o choro”, do pesquisador e grande músico de choro Pedro Aragão, “A questão Cavalieri — Música e sociedade no Império e na República (1846-1914)” e “Henrique Alves de Mesquita — Da pérola mais luminosa à poeira do esquecimento” —, ambos do historiador e músico Antonio J. Augusto. Os três volumes são mergulhos de altíssima qualidade em personagens e eventos que quase nenhum carioca conhece.
No primeiro, Pedro Aragão nos relembra o incrível trabalho do cultuado Animal, músico que, durante as três primeiras décadas da República, foi carteiro (além de presidente do rancho carnavalesco Pragas do Egito!) e pesquisador tenaz da história musical da cidade. No clássico livro de 1936 intitulado somente “Choro”, lemos o relato de um insider no universo dos músicos populares do seu tempo. Ele nos mostra que o ritmo se espalhava de Bonsucesso ao Catete, da Gávea ao Engenho Velho, de Jacarepaguá ao Jardim Botânico, através de personagens como Mariquinhas Duas Covas, Frutuoso, Manduca do Catumbi e Juca Mãozinha. O livro de Pedro é obrigatório para os que conhecem — e principalmente para os que não conhecem — essa obra genial.
Já os outros dois trabalhos de Antonio J. Augusto são preciosos. No primeiro, a história de Carlos Severiano Cavalier Darbilly, pianista e compositor carioca, membro do Conservatório de Música do Império e que, em determinado momento da carreira, é afastado do seu cargo por escaramuças políticas e por usar elementos da cultura popular da cidade em suas obras eruditas — principalmente um gênero que foi totalmente esquecido: músicas para os shows de mágica, grande sucesso do período entre a população. O segundo livro é dedicado a Henrique Alves de Mesquita, outro músico erudito de imenso sucesso no Império. Negro e de origem pobre, é o primeiro brasileiro enviado ao Conservatório de Paris, ainda em 1857. Mas, assim como Cavalier Darbilly, suas ousadias estéticas (como compor a primeira opereta com elementos de jongo) o fazem sucumbir ao descaso histórico e à rejeição oficial em vida.
É claro que os três livros citados merecem, por si só, uma coluna para cada. Além dos temas instigantes, são plenos de informações sobre a vida cultural carioca entre 1840 e 1940. Período em que a cidade misturada e popular se inventa até hoje entre tradições e transgressões. E, se depender do trabalho da Folha Seca, assim continuará se inventando em seu futuro. Ao menos naquela pequena loja da Rua do Ouvidor.
CORREÇÃO: A coluna foi alterada no dia 24 de junho, em sua versão on-line, para corrigir a informação de que Rodrigo Ferrari mantinha até hoje a sociedade com Daniela Duarte. Na realidade, a sociedade foi desfeita.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/folha-seca-16533283#ixzz3fhwb7K4k
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