domingo, 17 de julho de 2011

Nos Tempos da Literatura

IRACEMA - ANAGRAMA DE AMÉRICA

 IRACEMA: UMA HISTÓRIA DO
NOVO MUNDO

Com objetivos bem definidos, guiado por motivos muito claros e concretos, José de Alencar idealiza e escreve Iracema ( 1865 ). Esta não é uma obra isolada, fora de contexto ou nascida do sopro maravilhoso de alguma musa inspiradora. Faz parte de um grande projeto intelectual.
Naquele momento histórico, os intelectuais brasileiros, assim como muitos outros americanos, estavam procurando o rosto, a alma da nação. Os traços desse espírito coletivo e indefinido precisava ser delineado. Era necessário criar o espelho no qual os povos do Novo Mundo pudessem reconhecer-se.
Duas culturas estavam em evidente choque: a do colonizador e a do indígena. A História estava sendo escrita a cada instante, como resultado direto daquele confronto.
Na tentativa de esboçar esse sentimento, essa noção de pátria, os intelectuais descobriram uma realidade inegável: não existia um lastro cultural e, nas regiões onde o desenvolvimento indígena tinha sido significativo, aquilo que existia não era suficiente para definir o rosto da nova nação. Os brasileiros, os americanos em geral, deparavam-se com a dura verdade: eram mais europeus que indígenas.
O grande projeto de José de Alencar, dos indianistas em geral, era criar uma base cultural, um lago-espelho que refletisse a alma e o rosto do povo brasileiro. Assim, ele constrói uma obra que se transforma na melhor expressão da literatura indianista.
Em Iracema, existe uma mitificação da história, um toque épico, que populariza a obra, permitindo que o leitor se identifique com ela.
O autor, num claro esforço para fundamentar historicamente seu trabalho, movimenta-se em dois planos. Por um lado, temos uma narração linear, onde as personagens vivem, amam, lutam, sofrem e morrem, rodeados por um ambiente exuberante, mágico, natural, colorido como só na mãe pátria pode existir. Por outro, no rodapé, e não menos importante, o autor insere notas que fundamentam e justificam fatos, palavras, expressões. Está resgatando, criando, nessas notas, a linguagem de um povo. Não é um processo muito claro. Em alguns casos, como no nome Iracema, existe um pensamento europeu levado para a linguagem indígena e forçando a criação da nova palavra.
Essas notas cerceiam, em muitos momentos, a liberdade de leitura e interpretação. Podemos ignorá-las e partir para as peripécias, aventuras e desventuras das personagens ou aceitar o jogo do autor e intercalar a leitura das notas. Com certeza serão duas leituras completamente diferentes.
Interferindo no prólogo, durante a narração e depois do texto, José de Alencar parece temer por uma interpretação errônea da história. Com isso, ele reconhece a incapacidade do seu texto para defender-se e caminhar sozinho pela imaginação do leitor.
Iracema, “lábios de mel”, será o modelo de mulher para a pátria brasileira. Mais que indígena, ela parece responder a conceitos europeus, apesar de estar revestida com elementos próprios do solo americano. Ela é descrita dentro dos padrões que a nossa cultura cristã e ocidental determinam, tanto no sentido ético como no estético. Mesmo assim, ela serve como catalisador das características que irão definir a brasilidade.
A história serve como cenário para legitimar algumas ações e para criar, principalmente, aproveitando o choque de culturas, o suporte de uma cultura brasileira.
De acordo com o ângulo focado podemos chegar a uma interpretação ou, mudando o foco, a outra totalmente diferente. Para começar, Iracema é um anagrama de América, conforme já havia sido dito por Ribeiro Couto, com toda a carga de simbolismos que possa ser imaginada. Iracema (América) no seu primeiro encontro com o conquistador Martim, tem uma reação defensiva que, rapidamente, transforma-se em arrependimento perante a cordialidade do invasor. Nesse preciso instante, começa a submissão de Iracema e de toda uma raça. A vitória da raça branca sobre os índios será só questão de tempo, principalmente devido ao poder militar e tecnológico que os estrangeiros tinham. Mas a entrega pura e simples, sem tentar lutar, transforma o ato da conquista num momento de humilhação, de degradação.
Entre Iracema e o homem branco surge uma atração que, pouco a pouco, desviam a virgem, servidora de Tupã, do seu caminho, do seu destino. Ela acaba negando sua raça, religião, cultura, participando, por omissão, da morte dos seus irmãos, submetendo-se ao desejo do homem branco, enganando a confiança do seu povo, aceitando passivamente as normas de uma cultura estranha. Gerando um filho, Moacir, que será a culminação dessa união, não muito eqüitativa, pois a todo instante prevalecem as necessidades, prioridades e desejos de Martim. Cumprida a sua missão, morre.
Os outros indígenas estão fadados à morte ou à submissão, a dobrar os joelhos e aceitar a força e a persuasão do invasor. Alguns deles, como Poti, o pitiguara amigo de Martim, muda até o nome, passando a ser chamado Antônio Felipe Camarão. Esse novo nome segue uma norma: o nome do santo do dia (Santo Antônio), o nome do rei ao qual servirá (Felipe) e a tradução de seu nome nativo (Camarão).
Mas, apelando ao seu romantismo, José de Alencar mostra indígenas bonitos, principalmente quando fala de Iracema, saudáveis, cheios de energias e em perfeita comunhão com o seu meio ambiente.
Iracema é apresentada como modelo de feminilidade, de beleza, confundindo-se com a exuberante natureza. Só perde sua rebeldia, sua coragem, sua agressividade quando está com o seu amado. Ele consegue dominar seus impulsos, seu pensamento. Iracema perde seu poder de decisão, sua liberdade de agir e de pensar.
Martim é apresentado como o símbolo do homem cordial, o gentil conquistador de terras e corações, que fraternalmente toma conta de tudo
As peripécias do casal podem, perfeitamente, simbolizar a ação da conquista da América. Com a cruz e a espada, com a cordialidade e a agressividade, tudo dosado e calculado, o branco tomou posse da terra, destruiu culturas, arrasou comunidades inteiras e tentou vender a imagem de que tudo não passava de um esforço de evangelização e civilização.
Nessa relação homem-mulher, Iracema (América) passa de um papel protagonista para uma atuação secundária, resignando-se a ser a esposa fiel, obediente e submissa, cumprindo religiosamente com seu papel de mulher ocidental, sofrendo no momento da maternidade, mas fazendo tudo para dar ao seu amado o herdeiro.
Essa transformação de Iracema é dolorosa. Ela vive vários dilemas, todos eles tendo como centro o homem que ama.

Há, em toda a obra, uma clara desumanização do índio, respondendo em muitos momentos a arquétipos. Percebe-se, também, um claro maniqueísmo, um jogo no qual os índios que resistem são maus, sanguinários, mal-intencionados e sempre prontos para agredir e destruir tudo aquilo que existe de bom na civilização.
Encontramos em Iracema, diversos elementos que, no futuro, funcionariam como rótulos para a população indígena. Parece que as sementes que destruiriam, humilhando e maltratando, as comunidades indígenas, foram lançadas já no primeiro encontro entre conquistadores e conquistados.
Moacir, filho da dor, o primeiro cearense, será como uma síntese do encontro desses dois povos diferentes. Essa miscigenação, que alguns consideram um fator negativo, será uma característica marcante em todas as nações americanas, com maior ou menor incidência, dependendo da região.
A mulher, mesmo fantasiada de índia selvagem, é dócil, submissa, consciente da sua função de reprodutora e do papel secundário que lhe restou.
O branco, superior, preparado, cristão cordial e elegante nos seus gestos, é o lado positivo, o lado iluminado.
O índio é inferior, caiu antes mesmo de lutar; deve acatar, obedecer aos mandamentos dos conquistadores, sucumbindo e aceitando, quase sem resistências, o domínio, a cultura, a religião e os costumes estrangeiros. Além de ceder suas terras, entregar sua alma. Moacir , mameluco, não é branco nem índio, será a base de uma nova raça, de uma pátria incipiente que tenta criar sua história.
É injusto que hoje, comodamente instalados numa ponta do tempo, com muita informação e perspectiva, julguemos, condenando ou não, o projeto ambicioso e arrojado, para aquele momento de José de Alencar e outros autores. Devemos lembrar que, com exceção da deslumbrante natureza, pouco ou nada existia da pátria. Ela, como quase tudo, estava sendo construída.
Iracema continuará reclamando olhos e mentes pensantes, pois nas suas páginas encontramos os elementos básicos da nacionalidade brasileira. É uma lenda que não explica tudo, mas permite pensar, investigar e concluir sobre muitos aspectos da nação, a maioria deles com reflexos em nossos dias. Só por isso vale a pena ler e reler a obra.

BIBLIOGRAFIA
ALENCAR, José de. Iracema. 8a edição, São Paulo, Ática, 1978.
RIBEIRO, Luís Felipe. Mulheres de papel: Um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói, EDUFF, 1996, p.217 – 226
SANTIAGO, Silviano. Iracema, o coração indômito de Pindorama in Mota, Lourenço Dantas & Abdala Júnior, Benjamin (org.) Personae: grandes personagens da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Senac, 2001.

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