Parece que estou ouvindo a voz cristalina de Carlos Galhardo, o rei da valsa, cantando estes versos:
Eu vi numa vitrine de cristal
Sobre um soberbo pedestal
Uma boneca encantadora
Em São Paulo, no começo dos anos 60, eu participava dos saraus na casa de um amigo, o Lélio de Castro Andrade, então diretor da Livraria Francisco Alves. Acontecia aos domingos, após o programa Brasil 60, que fazíamos na TV Excelsior, apresentado pela Bibi Ferreira, e que reunia alguns dos maiores nomes da música brasileira. Esses encontros musicais duraram até 1963, período em que estive à frente do programa.
A bebida era a batida (preferencialmente de limão ou coco) ou a cerveja. Uma garrafa de uísque aparecia por lá uma vez ou outra, levada por algum dos convidados, mas logo se acabava, pois o sarau reunia de 25 a trinta pessoas. Se fosse na base do uísque, meia dúzia de garrafas ainda seria pouco. Para comer, um único prato — quase sempre macarrão, picadinho, risoto ou estrogonofe, em grande quantidade —, que chegava a uma mesa de jacarandá em travessas imensas, renovadas permanentemente. E nada de garçons. Cada um cuidava do próprio prato.
Algumas duplas até então improváveis formavam-se ali, espontaneamente, como Lamartine Babo e Juca Chaves (vejam só!), Orlando Silva e João Gilberto, Vicente Celestino e Dick Farney. E havia muita música instrumental, com um desfile que chegava a reunir, num fantástico regional, Jacob do Bandolim, Luperce Miranda, Altamiro Carrilho e Pixinguinha.
Noites inesquecíveis aquelas em que se podiam ouvir, verdadeiramente ao vivo, as vozes e os instrumentos dos nossos maiores intérpretes. Noitadas em que se misturavam as idades e os repertórios, democraticamente. Entre as vozes femininas, as mais frequentes eram as de Dalva de Oliveira e Angela Maria.
Rodas de choro formavam-se também, improvisadamente, e a elegante sala de visitas da casa do Lélio transformava-se, em alguns minutos, num alegre fundo de quintal. E toda essa festa semanal não era mais do que o prolongamento de um programa de televisão! Diante dessas lembranças felizes que me assaltam muitas vezes, eu me pergunto a razão de a TV ter abandonado a música. Isso num país como o nosso, musical pela própria natureza! Chega a ser inacreditável. Assisto aos programas de televisão e não entendo por que não ouvimos em nenhum deles ao menos três modestos minutos de música popular brasileira. Não apenas dos grandes intérpretes já desaparecidos, mas dos que estão aí, em plena forma, produzindo continuamente, como Caetano, Gil, Chico, Edu, Milton e Djavan, para citar apenas alguns nomes. O que falta para chamá-los de volta?
Por essa e por todas as razões, eu costumo exclamar: viva o Sarau do Chico Pinheiro!
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