O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Esse fato histórico, aparentemente longínquo, deixou, na verdade, profundas marcas na sociedade brasileira. Para entendê-las, é preciso não esquecer os navios negreiros e os objetos de tortura. É preciso lembrar que a abolição foi lenta. Mas é preciso também pensar o lugar que a ciência ocupou na consolidação do preconceito contra os negros. Para que se lute contra o racismo é preciso primeiramente reconhecer que ele existe. Sem essa “confissão” tira-se do foco o alvo que se quer atingir.
A partir de meados do século XVI e, oficialmente, até 1850 &– data da lei que aboliu o tráfico de escravos negros &–, chegaram ao Brasil milhões de pessoas vindas de diferentes partes do continente africano. Nesse período, a forma de relação com o escravo é muito clara, pois ele é visto como “peça”, tratado como coisa que tem um proprietário: é alugado, vendido, comprado, entra na contabilidade das fazendas ao lado das cabeças de gado, das ferramentas e outros bens materiais.
O panorama geral da escravidão no Brasil, recomposto por vários historiadores, mostra que o regime escravista não foi menos violento do que em outros países. Ao contrário, podemos perceber uma violência cotidiana, multiforme e naturalizada, que nos dá pistas para o entendimento do racismo brasileiro atual.
A esperada cidadania após a abolição não aconteceu e, até hoje, é uma luta constante em uma sociedade em que a desigualdade racial é arraigada e as tentativas de apagar a memória da barbárie contra os escravos são permanentes, quer pela eliminação de documentos, quer pela disseminação do mito da democracia racial.
Pouco depois da Lei Áurea, e já na vigência do regime republicano, mais exatamente em 14 de dezembro de 1890, Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, queimou documentos oficiais que eram prova da escravidão, sob a justificativa de apagar da história do Brasil um período vergonhoso (ver Costa, 1996). No mesmo ano, o Hino à República diz: “Nós nem cremos que escravos outrora/ tenha havido em tão nobre país”. A este respeito, Costa (1996) afirma:
... o Estado apropria-se da História, controla e manipula o entendimento do processo histórico, confunde a noção de temporalidade e impinge o esquecimento. Garante, assim, a continuidade do mesmo sistema sob nova e atual roupagem: sem escravos e, logo depois, sem rei. Para dominar, há que se tornar senhor da memória e do esquecimento. (p. 84)
Mudaram as aparências, mas a essência das relações sociais não mudou. A atitude do Estado para a situação do negro “liberto” sempre foi omissa: a miséria material, a discriminação e a humilhação vividas pelos afrodescendentes são reduzidas à culpa deles mesmos, por meio de uma manobra ideológica que transforma o que é da esfera das relações de poder em algo natural, inerente à raça.2 A ideologia republicana pedia um projeto de nação que, por sua vez, requeria que se repensasse o homem brasileiro. Coube aos cientistas da época fazer esta reflexão.
Raimundo Nina Rodrigues, médico baiano renomado, estudioso do negro e da criminalidade e grande adepto das idéias do antropólogo criminal italiano Cesare Lombroso, foi representante importante das teorias raciais no Brasil. Lutou pela implantação da Medicina Legal nos currículos das Faculdades de Medicina e defendeu a criação de dois códigos penais brasileiros: um para os brancos e outro para os negros, pois pressupunha que as diferenças raciais levavam a diferenças comportamentais e morais tão grandes que não se podiam fazer as mesmas exigências para ambas as raças. Para ele, como para outros cientistas de sua época, a igualdade de direitos e deveres era uma ilusão.
Em Africanos no Brasil, publicado em 1935, destaco um capítulo: “Valor social das raças e povos negros que colonisaram o Brazil, e dos seus descendentes”. O objetivo é pensar a influência do negro na constituição do povo brasileiro, tendo em vista contribuir para a grande questão política daquele momento: a natureza desse povo e suas possibilidades de evolução.
Ao fazer esta discussão, ele contribuiu para a instituição da Antropologia no país, detendo-se no estudo dos povos africanos trazidos para o Brasil: os chamitas, os bantus e os sudanezes. Por considerá-los mais inteligentes e capazes de organização, ele defende a tese de que boa parte dos negros que chegaram ao país tinha razoável nível evolutivo. É assim que Rodrigues, nesse capítulo, consegue conciliar a questão da degeneração e inferioridade do negro - tão divulgada por diferentes autores e reafirmada por ele mesmo - com a possibilidade de pensar sem tanto pessimismo o futuro do país.
Para ele, a inferioridade social do negro é um fato incontestável: “De facto, não é a inferioridade social dos negros que está em discussão. Ninguém se lembrou ainda de contestá-la. E tanto importaria contestar a própria evidência” (Rodrigues, 1935, p. 388). Sua discussão da questão da inferioridade do negro gira em torno da capacidade de civilizar-se desta raça. O ideal de civilização é o de povos da Europa: será que o negro é capaz de civilizar-se como o europeu? Entre as duas versões dominantes &– a que concebe a inferioridade como “transitória e remediável” e a que a vê como inerente à constituição orgânica e, por isso, não há como remediá-la &–, Rodrigues toma o que interessa das duas, de modo a ver saídas para o país, sem negar a hierarquia entre as raças.
Diante de autores que justificam a inferioridade do negro pela “ossificação precoce das suturas craneanas” (Rodrigues, 1935, p. 389) e a tomam como causa da incapacidade dos negros de “assimilar a civilisação dos diversos povos com que estiveram em contacto” e tampouco de “crear cultura própria”, Rodrigues argumenta que a ossificação precoce não é causa da inferioridade, mas é conseqüência desta: “A ossificação será precoce mas não prematura, pois ocorre em tempo e em harmonia com o reduzido desenvolvimento mental de que os povos negros são dotados” (p. 389).
Em relação à impossibilidade de civilização do negro, Rodrigues (1935) afirma que a ciência ainda não tem elementos para respondê-la. No entanto, é categórico na crítica às concepções otimistas de desenvolvimento do negro:
A allegação de que por largo praso viveu a raça branca, a mais culta das secções do genero humano, em condições não menos precarias de atraso e barbaria; o facto de que muitos povos negros já andam bem proximos do que foram os brancos no limiar do periodo historico; mais ainda a crença de que os povos negros mais cultos repetem na Africa a phase da organisação politica medieval das modernas nações européas (Beranger Feraud), não justificam as esperanças de que os negros possam herdar a civilisação europea e, menos ainda, possam attingir a maioridade social no convivio dos povos cultos. (p. 390)
Rodrigues toma existência de níveis de desenvolvimento diferenciados entre os povos negros como prova de que são capazes de civilizar-se. No entanto, por ser muito morosa, o grau de civilização alcançado pelos negros não será o da raça branca. É assim que ele justifica a hierarquia entre raças e se opõe a argumentos igualitários: “A geral desaparição do índio em toda a América, a lenta e gradual sujeição dos povos negros á administração intelligente e exploradora dos povos brancos, tem sido a resposta pratica a essas divagações sentimentaes” (p. 391). Tanto a escravidão do negro quanto a diminuição dos povos indígenas são entendidas como sinais de inferioridade dessas duas raças.
O problema da mestiçagem e de suas conseqüências sobre o atraso do país também é objeto de sua atenção: “quanto de inferioridade lhe advem da difficuldade de civilisar-se por parte da população negra que possue e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento” (pp. 391-392).
Para falar da diferença de capacidade de evolução do negro e do branco, Rodrigues (1935) vale-se de autores favoráveis aos grupos negros. Para um deles, o povo negro é degenerado devido a influências desfavoráveis externas, sendo necessários séculos de desenvolvimento para superar a degeneração resultante. A conversão dos negros ao cristianismo não faria com que as características morais (que são transmitidas geneticamente) mudem, pois “o negro convertido rebaixa invariável e necessariamente a nova religião ao nível de sua própria cultura mental” (p. 394). A capacidade de evolução do negro, embora admitida, só ocorre de forma gradual: “pois só quando um passo avante está dado com segurança é que o caráter de raça torna-se firme e capaz de sofrer novo impulso” (p. 394). Assim, não adianta tentar impor a civilização ao negro, porque é importante que ele passe por todas as fases de evolução a fim de que a raça sofra as transformações necessárias para chegar ao estágio de civilização do branco.
Para falar sobre o negro na América, Rodrigues (1935) recorre a autores que defendem a tese de que aqui o negro teve progressos pelo seu convívio com as raças superiores, embora continue sendo culturalmente inferior, situado no estágio infantil de humanidade e, por isso, “não se pode resolver a tratar de igual para igual com uma gente tão inferior a elles, do mesmo modo que o adulto não trata a creança de igual para igual, nem as classes superiores ás inferiores” (p. 396). Negros e crianças têm em comum “a leviandade, o capricho, a impr evidência, a volubilidade, a intelligencia ao mesmo tempo viva e limitada” (p. 395), concepção que teve forte influência sobre Rodrigues, principalmente em sua defesa de um código penal especial para os negros. Mas esse progresso será sempre limitado e inferior ao do branco, pois, segundo estudiosos citados por Rodrigues, o negro só poderia alcançar o branco se o branco perdesse a capacidade de evoluir, hipótese vista como impossível por eles. Por isso, enquanto o branco dá passos largos evolutivos, o negro só consegue dar pequenos passos quando em contato com os civilizados, o que faz com que o atraso em relação ao branco seja irreversível. Assim Rodrigues conclui sobre as vantagens da vinda dos negros para a América, “onde (...) estão collocados em condições de meio e cultura a todos os respeitos mais favoráveis do que os da Africa” (p. 395). Esses autores pressupõem que a convivência com o branco civilizado &– ainda que seja como escravo &– é melhor para o negro do que viver livre em culturas primitivas.
Os autores citados pelo médico baiano têm em comum a crença no processo gradual de civilização das raças - influência clara do evolucionismo social - e no constante atraso a que o negro está irremediavelmente submetido, seja por características biológicas, seja por atraso evolutivo. Não falta a eles esta ambiguidade. A influência do darwinismo social aparece em citações como esta: “O negro principalmente é inferior ao Branco, a começar da massa encephalica que pesa menos e do apparelho mastigatorio que possue caracteres animalescos, até ás faculdades de abstracção, que nelle é tão pobre e tão fraca” (Rodrigues, 1935, p. 396). A contribuição de Rodrigues a esta discussão foi afirmar que uma nação constituída por maioria negra será tanto mais atrasada quanto “mais inferior e degradado tiver sido o elemento africano introduzido pelo trafico” (p. 397). No caso brasileiro, diz ele, não vieram apenas povos africanos degradados, mas também “poucos negros dos mais adiantados e mais do que isso mestiços chamitas convertidos ao Islamismo e provenientes de estados africanos bárbaros sim, porém dos mais adiantados” (p. 398).
Foi assim que esse antropólogo e médico da Bahia fez parte do contigente de “homens de sciencia” que se valeram do que o darwinismo social e o evolucionismo tinham de mais relevante para administrar as questões sociais e políticas do primeiro período da República brasileira.
A partir daí, outros momentos políticos, outras ideologias nas ciências humanas e movimentos sociais em defesa da cidadania levaram à tendência crescente de negar a existência de preconceito racial no Brasil. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933/2003), é uma obra que deu força à crença na democracia racial brasileira. Nesta direção, Schwarcz (1996) apresenta uma pesquisa sobre racismo em que 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e 98% afirmaram conhecer pessoas preconceituosas, como amigos, namorados e parentes próximos. A partir desses resultados, a autora conclui: “Todo brasileiro se sente como em uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados” (p. 155).
Apesar do discurso que nega ou ameniza a presença do preconceito e da discriminação racial no país, não é difícil ver manifestações de racismo no dia-a-dia da vida social brasileira. Ora ele é escancarado, como nos massacres freqüentes, ora é silencioso, como no olhar policial que põe constantemente os negros sob suspeita. Pesquisa recente concluiu que há diferença de tratamento, por parte da justiça, de brancos e negros. Estes são tratados com mais severidade, desde a instância policial até o tribunal, como se a criminalidade e a possibilidade de “perturbar a ordem social” lhes fosse inerente (ver Adorno, 1996).
Em 2003, o cartaz de uma campanha publicitária contra o uso de drogas dá continuidade à relação entre negritude e criminalidade: a mão que empunha a arma é negra; a que sustenta é branca
Sylvia da Silveira Nunes