quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Crônica do Dia - O medo da Condessa - Adriana Calcanhoto

O nível de entrega de Irene Ravache para fazer a vilã da novela das seis não é coisa que se vê toda hora




Não assisti aos primeiros capítulos da novela das seis no ar na TV Globo, “Além do tempo”. Não sei como a história começou, sei é que dia desses, surfando pela programação, fui fisgada pela Condessa Vitória Castellini. Segundo sua estupenda intérprete, a atriz Irene Ravache, “ela não tem o menor pudor em usar, destratar, ignorar as pessoas. É uma vilã amarga, sem nenhuma simpatia”. A Condessa vive do orgulho de sua nobreza, é movida a isso. Tudo nela é secura. Arrogante, impaciente, tem todos os componentes da vilã arquetípica, uma extensa lista de adjetivos repulsivos. A Condessa, porém, não é psicopata. Tem capacidade de amar e este aspecto é o começo da verticalização da personagem; ela perdeu um filho amado. De uma mulher que perdeu um filho amado compreende-se qualquer gesto, por mais estranho que possa parecer. A Condessa perdeu o filho, para quem tinha planos de um futuro fantástico. A altiva falta de paciência com tudo e todos, então, justifica-se. É possível compreender o amargor.

A Condessa está de volta às terras onde tudo aconteceu no passado para vingar-se da mulher a quem desejou um dia que o inferno fosse pouco. Mandou incendiar a taberna de Emilia, a artista sem nobreza que se apaixonou por seu filho único e amado, que se apaixonou também por ela, a responsável por sua desgraça. Tem viajado à noite, muito discretamente, com seu fiel cocheiro, pois está em segredo à procura do filho perdido, pelos sanatórios da região. Sabe que ele na verdade está vivo, mas não onde. Foi, no passado, capaz de armar um falso funeral para o filho, para ver a mulher que odeia sofrer. Lembra-se disso com prazer, do desespero de Emília, mas não está ainda satisfeita. Está de volta a Campo Belo e parece ser para encontrar o filho desaparecido. No fundo, não consegue perdoar-se a si mesma por ter perdido o controle da situação, por ter perdido o controle do coração de Bernardo, que ela contava dirigir. Quando, no passado, despacha a jovem apaixonada por seu filho de suas terras, escorraçada para “bem” longe, ouve de Emilia, aos berros, que Bernardo sempre a odiou. A frase parece um tiro no peito da Condessa e ela passa a viver no inferno de não saber se aquilo é verdade ou não, foi atingida. A vilã quanto pior, melhor.

Meu cérebro compreende que se estou seguindo uma novela significa que estou no Brasil, em casa, e não na estrada. Não tenho a coragem que tem Nana Caymmi, ponto final. Sobretudo, não tenho a coragem que tem Nana Caymmi para comunicar à plateia de seus shows que precisa encerrar logo de uma vez porque precisa assistir à novela. O que consigo é não acompanhar novelas quando estou em turnê. Minha tia Istellita, devoradora de literatura e também fã de novelas, criou uma norma: assiste a novela sim, novela não. Nas novelas “não”, lê, “ou nunca mais leria”, exagerada. Pois estava eu tentando viver em casa uma novela “não”, para contemplar os finais de tarde do inverno no Rio, quando a Condessa mudou minha rotina e meus planos.

Esse nível de técnica e entrega que Irene Ravache empresta à personagem não é que não tenha acontecido com algumas vilãs vividas por suas colegas antes, mas não aparece a toda hora. As vilãs contemporâneas têm mais fragilidades, são mais humanas no sentido em que não são apenas más, como ninguém pode ser uma só coisa, nem querendo. São mais imperfeitas enquanto vilãs, erram mais, vem sendo assim na telenovela, nos desenhos animados, não é mais possível aceitar personagens só boas ou só más embora Shakeaspeare já nos houvesse explicado. Por isso, quando organizada para estar ocupada no horário da novela das seis, vi por acaso uma cena da Condessa olhando pela janela de seu coche e fiquei paralisada por seu drama, sem saber nada dela. As vilãs são atraentes ou não conseguiriam incautos para vítimas. No caso da Condessa, que tem o álibi do poder de sua nobre posição, pode não responder a perguntas incômodas, ordenar que se retire, não dar satisfações a ninguém, não responder ao que não quer, não precisa seduzir suas presas e pode ser só má. Diz ao Conde, seu sobrinho apaixonado, que “amor é coisa de gentinha”. Arrasta-se pela existência decepada do filho e por esse motivo não suporta nada. O que é comovente. Atura a vida, que em nada se parece com o que ela sonhou. Foi atropelada pela realidade, contrariada, furiosa, vitimada. Os elementos da tragédia estão dados. A paixão juvenil de Bernardo, Emilia, pensa que a Condessa o matou. A Condessa, com o incêndio que provocou para matar Emilia, pensa que ela está morta, mas ela escapou e pior, teve uma filha, já moça, com Bernardo. A Condessa tem portanto uma neta que não sabe que existe, fruto do amor verdadeiro de seu amado filho com a mulher a quem ela pensa ter matado e que ainda assim continua a odiar.

Toda a desumanidade da Condessa é dada sempre pelas pupilas de Irene Ravache. Quando ela gela, imóvel, impassível, ao ouvir de Emilia que Bernardo a odiava, nada se movimenta além de suas pupilas, que entregam todo o pavor daquela possibilidade.

Assim que, como podem ver, ando morta de medo da Condessa Castellini, sem conseguir no entanto largá-la. Lá se foram minha novela “não” e a luz dourada das seis da tarde. Brava, Irene, muito obrigada, sou sua vítima, digo, sou sua fã.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-medo-da-condessa-17131188#ixzz3iecXfVHf

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