domingo, 23 de agosto de 2015

Te Contei, não ? - A África clama por solidariedade - Marcelo Barros

Nós, brasileiros, temos uma dívida social com a África que nos ajudou a construir o nosso país. Depois da guerra, por exigência da justiça internacional, os judeus foram "indenizados" por tudo o que perderam na perseguição nazista. A África nunca foi indenizada pelas invasões, pelo colonialismo e pela estrutura escravagista que seqüestrou milhões de seus filhos. Como crentes no Deus da vida, somos chamados a inventar novas formas de solidariedade que seja força de ressurreição para o continente africano.


Em especial neste tempo pascal e nesta semana proclamada pela ONU de "Solidariedade Internacional aos povos da África". Na beira do Lago Vitória, no Quênia, ali mesmo onde foram encontrados os mais antigos fósseis do ser humano, vilas inteiras foram transformadas em cidade de crianças. Não se trata de alguma imitação africana da Disneylândia. Apenas a triste realidade de vilas, onde todos os adultos já morreram vítimas da AIDS. As crianças seguem sobrevivendo, muitas delas também doentes, sem assistência médica, sem escola, sem afeto, sem comida. As crianças mais velhas vão assumindo as funções de adultos e cuidando dos irmãozinhos como podem. Ali mesmo onde, presumidamente, começou a história da humanidade, nossa desumanidade poderá assistir, silenciosamente, ao começo do fim. A muitos quilômetros do lago, em Nairobi, capital do Quênia, em Nyumbani, há um orfanato modelo, cuidadosamente administrado pelo médico jesuíta Ângelo D'Agostino. Aí, 80 crianças portadoras do vírus da AIDS vivem em alegres chalés, recebem boa alimentação, vão para escola. Aparentemente vivem felizes. Mas têm o mesmo destino das crianças do Lago Vitória e da periferia miserável de Nairobi. Sem o coquetel para o tratamento da AIDS, elas não têm nenhuma chance de viver. As estatísticas sobre a epidemia de AIDS são tão trágicas no Quênia quanto em todos os países da África sub-equatorial. A tragédia da doença se alastra com rapidez entre a população debilitada pela fome, pela ignorância, falta de informação e carência de tudo, principalmente de medicamentos. Em alguns países, a epidemia chega a atingir 30 por cento da população.
A África, no entanto, não é um continente pobre. Tem riquezas como petróleo e pedras preciosas. Mesmo com adversidades climáticas e terras pobres, os africanos viveram bem durante milhares de anos até que chegou o homem branco. Países europeus que tomaram o governo e as terras da África até o último século, utilizaram os africanos para fazê-los trabalhar gratuitamente, e se apossaram de suas minas e riquezas.
A partir dos anos 50, os países africanos conseguiram a independência. Os colonizadores, no entanto, deixaram na África fronteiras artificiais que deram origem aos novos países. Separaram grupos humanos pertences às mesmas tribos, com dialetos e costumes comuns; e mantiveram, através de legislação imposta aos novos governos, a hegemonia européia. Isso gerou violento processo de segregação racial na qual o africano é considerado inferior em sua própria pátria. As conseqüências são guerras, massacres, genocídios entre os próprios africanos. E uma estrutura social injusta: no Zimbábue, por exemplo, 2% da população branca detêm a quase totalidade das terras e da economia. Esses países, os mais pobres do mundo, não podem pagar o preço exigido pelas indústrias farmacêuticas pelos medicamentos necessários para enfrentar a epidemia da AIDS. E clamam, com direito e justiça, a solidariedade do mundo, especialmente dos países que os exploraram e têm com eles uma dívida social e ética.
No momento, a África coloca suas esperanças de sobrevida de seus povos nos países que estão produzindo versões genéricas dos medicamentos do coquetel anti-AIDS a preços bem mais reduzidos do que os oferecidos pelas poderosas indústrias farmacêuticas. Entre esses países está o Brasil. Na Assembléia Mundial de Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil tentou, mais uma vez, na semana passada, defender a produção de genéricos contra a AIDS e mais uma vez bateu de frente com o poderoso lobby da indústria farmacêutica. E'preciso apoiar essa iniciativa brasileira contra a insensibilidade das indústrias para as quais vidas humanas valem
menos que o lucro.

Em visita à África, o papa João Paulo II pediu perdão pela cumplicidade que no passado a Igreja Católica viveu com o sistema escravagista. Em 1992, bispos católicos da América Latina reconheceram a dívida que a Igreja e nossos países têm para com a África. Mas, não adianta apenas pedir perdão. É necessário nos mobilizarmos em ações concretas de solidariedade. Na África, muitos brasileiros têm suas raízes familiares e espirituais. Hoje, muitos cristãos brasileiros procuram descobrir nas raízes africanas, uma nova forma de viver a fé bíblica, um novo sopro de espiritualidade. Um místico africano do século XII escreveu: "Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma de oração. É convento para os cristãos, Caaba do peregrino, tábuas da lei judaica e Corão para o muçulmano. A minha fé é a solidariedade".
Disponibilizado pela CNBB em Fev/04

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