domingo, 23 de agosto de 2015

Te Contei, não ? - " O dia em que papai não voltou " - Marcelo Rubens Paiva - Revista Época

As memórias do desaparecimento do pai na ditadura militar estão no novo livro de Marcelo Rubens Paiva, 'Ainda estou aqui', da editora Objetiva. Marcelo e duas irmãs relatam a ÉPOCA o feriado mais triste da infância deles

MARCELO, VERA E ELIANA PAIVA EM DEPOIMENTO A ALINE RIBEIRO

Marcelo – Era feriado no Rio, fazia bastante sol. Eu tinha 11 anos. A gente morava numa casa de dois andares na Rua Delfim Moreira, de frente para o mar do Leblon. Meu pai tinha saído de manhã para caminhar na orla com o jornalista Raul Ryff, amigo e confidente que também havia estado no exílio. Quando chegou, deitou no sofá, acendeu um charuto e começou a ler os jornais. Minha mãe estava por ali, fazendo companhia. Era um pouco mais de 10 horas quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma mulher queria o nosso endereço para entregar uma encomenda do Chile. Meu pai não desconfiou de nada.

Eliana – Umas 11 da manhã, coloquei biquíni e peguei minhas coisas. Como todo mundo na adolescência, eu tinha minha turma de praia. Desci as escadas correndo para encontrar os amigos. Nossa casa era ladeada por um jardim. Meu pai e Ryff estavam ali sentados, conversando e tomando sol. Acho que também iam à praia depois, não sei o que esperavam. Antes de eu cruzar o portão, meu pai perguntou: “Você não vai me dar um beijo?”. Eu disse: “Claro que vou”. Nunca me esqueço disso. Dei um beijo nele, no Ryff e saí. Foi a última vez que vi papai.
Vera – Eram férias escolares, e eu estava em Londres na casa do Fernando Gasparian, um grande amigo do meu pai, empresário que resistiu ao golpe. Na época, eu tinha no Rio um namorado três anos mais velho do que eu e papai queria que nos afastássemos um pouco. Eu era nova, a gente começou a falar de casar. Meu pai achava cedo demais. Então me mandou para lá, para ficar um pouco distante e para estudar inglês. A última vez que falei com meu pai foi em 25 de dezembro de 1970, pouco menos de um mês antes. Ele me telefonou para desejar feliz Natal, saber se estava bem, dizer que estava com saudade. Falei só com ele, não conversei com minha mãe e nem com meus irmãos naquele dia. Meu pai também falou com o Gasparian. Ele desligou o telefone chorando. Disse que sentia muita falta daquele grande companheiro. O dia 20 de janeiro, quando papai foi preso, foi normal para mim. Fui para a escola de inglês, não me lembro o que fiz exatamente.

Marcelo – Meus pais estavam na sala, prontos para ir à praia. Seis sujeitos armados entraram em casa pela porta dos fundos. Na cozinha, apontaram metralhadoras para a empregada, Maria José. Ela entrou pálida e avisou meu pai que tinha uns homens querendo falar com ele. Minha mãe continuou a ler o jornal e meu pai, escoltado por dois militares, pediu: “Amorzinho, fique calma”. Pediu também que eles baixassem as armas. Era o mais calmo de todos. Os militares perguntaram quem mais estava na casa. Mamãe respondeu que só as crianças. Babiu (Beatriz), minha irmã mais nova, percebeu o barulho e foi até lá. Eu estava dormindo no quarto. Eles fecharam todas as janelas e cortinas da casa e começaram a fazer perguntas. Trocavam informações pelo rádio. Pediram a  meu pai para acompanhá-los para prestar depoimento. Meu pai pediu para se trocar. Subiu, colocou terno e gravata, relógio no pulso, umas cadernetas no bolso. Saiu de casa escoltado por dois agentes. Outros quatro militares ficaram em casa. Ninguém podia sair.

Eliana – Quando voltei da praia, umas 2 da tarde, estranhei a casa toda fechada em pleno verão. Entrei e vi mamãe muito assustada, com os olhos arregalados, coisa que não me lembrava de ter presenciado antes. Falava baixo, contida. Perguntei: “O que aconteceu?”. Ela: “Teu pai foi preso”. Eu não tinha percebido que havia militares à paisana dentro da casa. Na ausência da Vera, que estava em Londres, eu era a irmã mais velha. Talvez por isso minha mãe me tenha feito um pedido: “Você precisa dar um jeito de sair para avisar seu tio. Você tem dinheiro?”. Meu tio era advogado. Nessa época, eu era atleta do Clube do Botafogo. Jogava vôlei no juvenil. Me vesti para o jogo e fui pela porta da frente. Falei depressa: “Estou saindo para jogar, estão me esperando, tenho de ir”.  Fechei a porta e fui. Até hoje, não sei como consegui. Se foi porque eu fiz uma cara de pau muito grande ou se porque os militares não tiveram tempo para pensar no que estava acontecendo. Fui para a casa de um amigo, que morava num lugar que chamávamos de “condomínio de jornalistas”, telefonei para o meu tio. Depois fiquei circulando para dar o tempo de uma partida de vôlei. Uma hora e meia depois, voltei para casa. O mais fortão perguntou: “O que você foi fazer na rua?”. Respondi que tinha ido jogar. E ele, furioso: “Não, você não foi, você foi avisar seu tio que teu pai está preso”. Como ele sabia? Meu tio, como um bom advogado, ligou para a casa para saber o que tinha acontecido. Eles escutaram a conversa pela extensão.



Marcelo – Acordei tarde, depois de tudo isso. Ainda sonolento, escovei os dentes e percebi um estranho no corredor, vigiando da janela do andar de cima o movimento da rua. Cumprimentei com a cabeça. Assim que desci as escadas, percebi o movimento. Mas nem estranhei, eles não estavam fardados. Era comum ter gente de fora ali, minha casa vivia cheia. Me chamou a atenção que um militar atendia o telefone quando tocava. Então perguntei para minha mãe o que estava acontecendo. Ela respondeu: “Nada”. Perguntei quem eram aqueles caras. Ela disse que eram fiscais, depois que vieram para dedetizar a casa. O almoço foi servido, e os militares almoçaram também. Estávamos apreensivos, mas não tensos. Consegui sair sem ser notado, fui jogar bola na praia. Quando voltei, levei bronca de um deles. Queria saber onde eu havia ido. Eu disse que estava logo ali na frente jogando bola. O que tinha demais? Eram férias, feriado, era minha praia. Ninguém podia me impedir. Surpreso com a resposta, ele me disse:  “Você não tem a menor ideia do que está acontecendo aqui, não é, garoto?”. Quando minha mãe percebeu que eu consegui sair, me chamou no quarto e perguntou por onde eu tinha escapado. “Pela garagem”, respondi. Achei que levaria uma bronca, mas na verdade ela queria um favor. Escreveu um bilhete, colocou numa caixa de fósforos e me pediu para levar até a casa da vizinha, Helena, sem que ninguém me visse. Fui correndo, toquei a campainha, li o bilhete antes de entregá-lo: “Rubens foi preso, ninguém pode vir aqui, senão é preso também”.

Eliana – Naquele dia, ficamos em casa, numa espécie de prisão domiciliar. Me lembro de ter conseguido dormir. Acordei no dia seguinte com minha mãe pedindo para eu levantar e me trocar, porque prestaríamos depoimento. “Eu?”. Coloquei uma túnica preta e uma calça bem discreta. Por volta de 11 da manhã, nos colocaram num Fusca. Quando chegamos em frente ao Maracanã, colocaram um capuz preto em nossas cabeças. Chegamos ao DOI-Codi (o destacamento de inteligência ligado ao Exército), na Tijuca, e me separaram da minha mãe. Fui revistada de cima a baixo. Fiquei o dia todo numa espécie de corredor polonês. Sempre encapuzada, um cheiro horrível, não via nada. Eles passavam e diziam: “Comuniiiiiista”. Passavam a mão nos meus peitos. Me davam coques na cabeça. Não compreendia o que estava acontecendo. Era uma menina. Vivia no Rio, numa casinha em frente à praia, numa família normal, com festas... não dava para imaginar que aquilo existia. Comecei a ouvir coisas terríveis: “Pelo amor de Deus, parem com isso”. Fui interrogada três vezes, em uma sala pequena, fechada, sem janelas. No primeiro, o interrogador era um tal de Cirurgião. Tinha um pau de arara ao lado, sangue no chão. A gente estava frente a frente, separados por uma mesa. Ele tinha uma planilha, e ficava me perguntando de algumas pessoas, amigas de papai. “Frequentam sua casa? São comunistas? São terroristas?”.  Até que surgiu uma coisa absurda: um dos meus trabalhos escolares de história. Eu estudava no Notre Dame de Sion, um colégio tradicional do Rio. O trabalho era sobre a revolução da Tchecoslováquia, algo bastante noticiado pelos jornais. Eles me mostraram e disseram: “Então você também é comunista”. O segundo e o terceiro interrogatórios foram mais tranquilos. Àquela altura, acho que papai já estava morto. Eu podia sentir isso, não sei explicar. Saí no dia seguinte ao da prisão. Me deram a bolsa da minha mãe, com dinheiro, cigarro, tudo dentro. Me colocaram num Fusca e me deixaram numa praça. Entrei num bar, liguei para um amigo do meu pai e pedi para ir me buscar. Só dois dias depois contaram para mamãe que haviam me libertado. Ela ficava estendida num colchão sem se mexer, achando que a filha ainda estava presa. Ficou lá por 12 dias. Enquanto isso, ficamos com nossa avó, que veio de Santos.

Vera – O correio da Inglaterra estava em greve, e eu mandava cartas para o Brasil por portador, tanto para meus pais quanto para meu namorado. No dia da prisão da minha mãe, meu namorado foi a nossa casa, no Leblon, buscar uma carta minha e acabou preso também. Ele e um amigo. Os dois foram parar no DOI-Codi, mas logo foram soltos. Só fiquei sabendo de tudo dias depois. Telefonar era difícil naquele tempo. Quando a notícia chegou a Londres, ninguém me contou de imediato. As pessoas mudavam de assunto quando eu entrava na sala. Mas eu achava que tinha relação com meu tio, irmão mais velho do meu pai, que estava com câncer. Só foram me contar depois. Na aula de inglês, a gente estudava e discutia textos de jornais. Fui para a escola e, pela manchete do The Times, soube da prisão dele. Ao voltar para a casa do Gasparian, conversaram comigo. Todo mundo fazia o possível para deixar a gente calmo. O tom era: tudo vai se resolver, vai dar tudo certo. A versão oficial dos militares era de que meu pai havia escapado durante uma transferência da prisão.

Marcelo – Assim que minha mãe voltou, magérrima e sem meu pai, a gente ficou um pouco assustado. Mas nem tanto. Naquela época, muita gente ia presa. Prestava depoimento, ficava uns dias e saía. Foi assim com muitos amigos da família. Não se falava ainda em desaparecido político, meu pai foi o quinto do Brasil. A prática começou em 1970. Quando fomos morar em Santos, seis meses depois da prisão, minha mãe comprou uma cama de viúva. Isso foi muito simbólico. A gente acha que nesse período ela já tinha alguma informação de que ele tinha sido morto. Mamãe nunca nos contou, provavelmente porque nem ela mesmo sabia. Mas, para ter saído do Rio, mudado com os cinco filhos para Santos, se inscrito numa faculdade de Direito... alguma coisa ela sabia. Muita gente vendia informações, dizia que papai estava vivo. A gente mantinha certa esperança, sabe?

Vera – Voltei ao Brasil e, mesmo passado um tempo, a gente não falava do assunto, para não fazer a mamãe sofrer. Ela também não falava, porque não tinha o que dizer. A gente não podia pensar que ele havia morrido. Uma das coisas mais terríveis era que, se passava um pensamento como esse na sua cabeça, era como se você estivesse matando. Estivesse decidindo a morte. Era uma culpa muito grande. Uma experiência brutal. Como se fôssemos os assassinos. Vira um buraco, uma coisa indizível.  




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