sábado, 24 de setembro de 2011

Crônica do dia - Debret por Fernanda Torres


Eram cerca de dez jovens entre 11 e 20 anos, todos negros e sem camisa, vestindo bermuda e sandálias Havaianas. Duas patrulhinhas lhes faziam o cerco. Sentados no meio-fio da esquina da Rua Tabatinguera com a Epitácio Pessoa, não demonstravam surpresa com a iminência de ser levados para a delegacia.
Um policial munido de celular combinava o encerramento da operação. Subi a ladeira e, quando desci, os vi partir apinhados dentro das viaturas da PM.
No dia seguinte, li nos jornais que o grupo teria saído do Morro da Mangueira com o objetivo de barbarizar o Dia dos Pais no cartão-postal da Lagoa. Desembarcaram no Clube Caiçaras e, tomando a direita, fizeram um arrastão dominical até ser capturados na Curva do Calombo.
Como justificar a missão suicida de vir assaltando a pé desde Ipanema até um funil sem saída, entre o espelho-d’água e os prédios do outro lado da avenida? Os menores talvez soubessem que logo seriam liberados, mas o que dizer do pragmatismo com que os de maior encaravam a hora de ir para o xilindró?
Uma hipótese é a de que a gangue praticou o delito por obrigação, a mando de alguém. A outra é a de que os guris foram impelidos por uma inconsequência anárquica, infantil, fruto da miséria econômica, da falência familiar e da falta de educação.
Vandalismo puro ou orquestrado? Existe escolha pior?
O escuro retinto da pele exposta lembrava a de escravos fugidos do Brasil colônia; se trocássemos as joaninhas por cavalos da guarda, a gravura de Debret estaria completa.
Não evoluímos em nada. Ou melhor, evoluímos em tudo, inclusive em nossas mazelas.
Recentemente, incentivei meu filho a pedalar sozinho pela ciclovia nos domingos cheios de gente. Ele estava no carro comigo na hora da prisão do bando e me perguntou de bate-pronto se eu achava a Lagoa segura.
Não acho, mas não disse isso a ele, não assim.
Um amigo meu, casado com uma alemã de Hamburgo, criou os filhos em Laranjeiras até o dia em que a esposa compreendeu que as crias não poderiam ir à esquina sem a companhia de um adulto. Mudaram-se de mala e cuia para a terra natal dela e, lá, perambulam com a naturalidade a que todo ser humano deveria ter direito.
Hamburgo é cinza, fria e feia. Eu seria incapaz de sobreviver ali, mas os parques são bonitos, os canais, se bem me lembro, limpos e é possível caminhar de madrugada sem pôr a vida em risco.
O que mais sinto falta no Rio é da liberdade de ir e vir.
A urbe dos cariocas é um ambiente hostil. O trânsito desesperado e os assaltos corriqueiros são a prova desse tormento. A doçura da natureza contrasta com a tensão violenta dos bairros.
O Rio herdou o carma de ter sido a capital do Império e da República do último país das Américas a decretar o fim da escravidão. Crescemos sem dar conta da desigualdade, e o troco dessa derrota são a hostilidade e a insegurança das ruas.
Em um livro chamado Tábula Rasa,
O psicólogo Steven Pinker faz um paralelo entre a explosão da violência e a concentração de adolescentes ociosos do sexo masculino em uma população. Segundo o cientista, os altos níveis de testosterona influenciam o comportamento social agressivo.Certa vez, em pleno dia útil de um meio da semana, parei engarrafada na entrada do túnel em frente à Rocinha. Da janela do carro, vi dezenas de rapazes seminus, como os da Tabatinguera, empinando pipa no canteiro central que divide as duas pistas da autoestrada Lagoa-Barra.Sem perspectivas, longe da classe de aula, dos parentes ou de qualquer disciplina, riam como se vivessem na Terra do Nunca.
O que farão esses moços vadios no dia em que a pipa perder a graça?, pensei.
O assassinato do arquiteto Rômulo Castro Tavares, no Leblon, prova que as UPPs sozinhas não darão conta das creches, das escolas, dos hospitais, do lazer e da ocupação profissional de cidadãos imberbes marginalizados.
Ou partimos para a etapa humanista do plano de ocupação das regiões perdidas da cidade, ou estaremos condenados a viver sob ameaça, em um bestial regime de força.

Revista Veja Rio 

Nenhum comentário:

Postar um comentário