domingo, 25 de setembro de 2011

Te contei, não ???!!!! - ARMADILHA HISTÓRICA - Especialistas alertam para perigo de revisão de obras artísticas à luz de novos valores


Cesar Baima
cesar.baima@oglobo.com.br


Ele um papagaio verde, malandro e indolente, mas hospitaleiro e de bom coração. Ela uma arara azul, de personalidade forte e independente, mas prisioneira, solitária e ameaçada de extinção. Separados por quase 70 anos, os personagens de animação Zé Carioca, criado por Walt Disney nos anos 40, e Jade, do recente filme “Rio”, têm em comum — além do fato de ambos representarem aves da família dos Psittacidae — carregarem em si ou nas histórias de que participam a imagem que os Estados Unidos e sua indústria do entretenimento fazem do Brasil para uma plateia mundial.
Porém, enquanto Zé Carioca era parte de um esforço do governo americano de melhorar as relações com seus vizinhos latinos em meio à Segunda Guerra, Jade e o Rio de Janeiro que lhe serve de cenário podem ser vistos ao mesmo tempo como uma ode e uma crítica à sociedade brasileira. O estereótipo do brasileiro representado por Zé Carioca pode ser considerado ofensivo se analisado sob a luz dos valores atuais, mas dentro de seu contexto histórico era válido, alerta a historiadora Márcia Regina Ciscati, que no dia 10 de outubro participa com a escritora Luciana Sandroni da mesa de debates “Walt Disney e Monteiro Lobato: o sonho das crianças tem cor?” no Festival de História de Diamantina (fHist).
— Nele há uma leitura estereotipada de qual seria o caráter brasileiro, com a ideia do malandro e da preguiça, ao mesmo tempo em que seu companheiro no filme “Alô amigos”, o Pato Donald, surge como um sujeito trabalhador, apesar de atrapalhado — lembra Márcia. — Esse olhar opera um contraste que coloca o americano como superior, estabelecendo uma relação de aparente amizade que traz embutida uma estratégia de dominação.
Quase sete décadas depois, no entanto, “Rio” continua a operar a mesma estratégia de dominação, diz a historiadora. Embora traga uma roupagem diferente, os estereótipos e preconceitos sobre os brasileiros continuam presentes, como nas figuras do canário Nico, da gangue de saguis ladrões e do menino Fernando, forçado a trabalhar para o maldoso traficante de animais Marcel, reafirmando uma posição superior dos EUA e as vantagens de uma cultura americanizada.
— Infelizmente os estereótipos não são fáceis de ser retirados da prática social — conta Márcia. — O apelo da indústria do entretenimento não tem limites, nem que seja a custa do reforço de preconceitos. Além disso, ela é uma indústria articulada com a política americana. O momento atual da imagem dos EUA no mundo não é dos melhores, tornando-se propício de novo para obras que mostrem os americanos como salvadores e heróis.
E não são só personagens estrangeiros que podem ser acusados de preconceito numa releitura sob os novos valores da sociedade. No ano passado, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu parecer sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, em que a obra foi considerada preconceituosa, recomendando que fosse retirado do acervo do Programa Biblioteca na Escola. Embora o Ministério da Educação não tenha acatado a sugestão, o parecer alimentou debate sobre o racismo na obra de Lobato que chegou a atingir a vida pessoal do escritor, com a revelação pela revista “Bravo!” de cartas inéditas que trocou entre os anos 20 e 30 com Renato Kehl e Arthur Neiva, adeptos da eugenia, para quem algumas raças seriam superiores a outras, devendo assim ser protegidas da miscigenação, linha de pensamento que descambou no Nazismo e no Holocausto.
— Claro que nos livros de Lobato vamos encontrar passagens que tratam os negros de uma maneira considerada normal na época dele, mas que é chocante hoje — reconhece Luciana Sandroni. — Parece que queremos esquecer que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, mas no contexto histórico de Lobato isso era normal. Se ele era adepto ou não da eugenia, isso é a pessoa dele. Estamos falando do escritor e do texto que ele legou. Isso é sua obra, tão genial e inovadora que é um marco na literatura infantil. Isso é o que permanece.
Segundo Luciana, não se pode censurar uma obra só porque ela não está nos moldes da cultura “politicamente correta”.
— Não se pode exigir de um autor do século passado ou retrasado uma visão com as ideias de hoje — diz. — Em vez de esconder as manchas do passado, temos que trabalhar com os professores como explicar e discutir com seus alunos as palavras que o autor usou, dentro do contexto dele. ■


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