sábado, 7 de fevereiro de 2015

Crônica do Dia - De quem é o Rio Carioca ?

Abusca pela paternidade do Rio Carioca seria cômica, se não fosse trágica. Autoridades municipais e estaduais não se entendem. O secretário estadual do Ambiente, então, assumiu a liderança pela articulação de uma solução.


Embora tivesse negado a responsabilidade do estado pelo Carioca, o secretário teria se comprometido a adotá-lo. Por e-mail, teria se manifestado nos seguintes termos: “Apesar de o Rio Carioca, pela legislação brasileira, ser um rio municipal (nasce e desemboca no mesmo município), colocarei como uma das metas da minha gestão articular com a prefeitura um plano de revitalização do mesmo.”
A iniciativa é meritória. O rio é um dos mais importantes patrimônios naturais da cidade. É sobrevivente de uma das maiores catástrofes de escassez hídrica no município, no século 19.
Graças a essa falta d’água que hoje podemos desfrutar da Floresta da Tijuca. Para que a floresta pudesse fazer a água voltar a verter, Dom Pedro II ordenou o seu reflorestamento. A área encontravase degradada pela exploração da madeira e plantações de café.
O pai do Rio Carioca é o Estado do Rio de Janeiro. A Constituição de 1988, ao dispor sobre águas, atribui a paternidade sobre as águas apenas à União e aos estados (artigos 20 e 26). O nosso ordenamento jurídico não contempla rios municipais.
Uma paternidade “compartilhada”, quando muito, incluiria a União apenas para a parte do rio dentro do Parque Nacional da Tijuca. O município não tem responsabilidade direta sobre o rio. Mas tem pelo uso e pela ocupação do entorno e por políticas de saneamento.
A constituição de um comitê de bacia é um importante primeiro passo. Está em sintonia com o princípio da gestão descentralizada, pilar da Política Nacional de Recursos Hídricos (lei 9.733/97). A participação ativa da sociedade civil e o envolvimento do Ministério Público são outros relevantes instrumentos previstos na nossa legislação.
Rio e São Paulo estão pagando um alto preço pelo histórico menosprezo com as águas. A ironia é que vivemos em um “gigante” da água potável. Entre estimativas mais e menos conservadoras, o Brasil é detentor de cerca de 10% da água potável do mundo.
Políticos e gestores proclamam grandes obras de transposição e de captações cada vez mais distantes. Alguns culpam até São Pedro! Mas poucos falam de imposição de metas sobre as concessionárias para a redução de desperdício, legislação sobre reuso de água, cobrança pelo uso para épocas de escassez e em metas ambiciosas de saneamento.
A tragicômica história da paternidade do Rio Carioca é, infelizmente, a ponta do iceberg. Por traz dela há uma ineficiente rede de autoridades gestoras do Meio Ambiente e sérias limitações de diversas naturezas para lidar com a iminente catástrofe da falta de água. Esperemos todos que a atual gestão possa contornar esse desolador cenário, superando os históricos obstáculos, de forma a evitar que tenhamos que depender da dança da chuva ou do próprio São Pedro.

Rômulo S. R. Sampaio é professor de direito ambiental da FGV

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