A publicidade persistente na internet, em vez de estimular, pode pôr fim a desejos de consumo e produzir aversão às mercadorias
Das inconveniências secundárias da vida contemporânea, a publicidade na internet está nos top five. Quanta perturbação! A ficha caiu dias atrás, quando habituais objetos de desejo se tornaram alvos de antipatia aguda. A paixão por sapatos é antiga, histórica, vai longe no tempo. Tem a ver com a infância pobre e a lembrança de um armário que abrigava não mais que um par de sandálias para festas e outro de tênis para a escola. Modelo extra, só por motivo de força maior: pés crescidos. Da abstinência forçada do passado nasceu a compulsão da vida adulta. Meu nome é Flávia e sou viciada em sapatos. Ou era.
Não foi preciso recorrer aos Sapatólatras Anônimos ou a qualquer outra entidade de tratamento do consumo compulsivo. A aversão emergiu discretamente, três semanas atrás, após consulta inocente ao site de uma varejista de calçados. Seria a primeira compra do tipo via web. Sou dessas que preferem a experiência ao vivo e em cores. Ir à loja, examinar opções, escolher com atenção, provar, caminhar diante do espelho, cair de amor, pagar, levar para casa.
Mas o carnaval se avizinha, e uma das agremiações do desfile principal no Sambódromo carioca exigiu sapato branco. Bateu, na hora, o desespero: “Dessa cor não tenho”. E corri para o computador. Entrei no site, dei o clique. Foi o fim.
Dali em diante, a sandália — na origem, interessante — fez-se perseguidora implacável. Passou a se materializar, invariavelmente, em todos os passeios por redes sociais ou sites. A qualquer tentativa de leitura ou postagem, surge a foto do calçado. No canto superior direito, no alto ou no fim da tela, lá está a sandália branca. Em geral, vem sozinha. Mas já se fez presente na companhia de outros pares.
A persistência inconveniente do anúncio virtual lembra aquele cobrador, dublê de leão de chácara, contratado por administradoras de cartão de crédito para constranger o inadimplente. Ou o traficante à espreita, que espera pôr no mundo mais um usuário compulsivo. Remete ao onipresente inimigo imaginário das crianças e dos delirantes.
E como incomoda. Tanto que, em vez do encantamento renovado pelo par de sandálias, do desejo incontrolável de compra, brotou a irritação. Como diriam os mineiros: “Eu ‘garrei implicância com a sandália”, fato inédito no currículo de consumidora compulsiva. Foi culpa do tal remarketing, que promete reapresentar ao internauta as mercadorias que o interessaram, mas não foram compradas de imediato.
Poderia ser saborosa a experiência de, subitamente, se deparar com o sonho de consumo, numa reprodução virtual da passagem pelas vitrines das lojas da vida real. Mas a estratégia comercial, que persegue e encurrala e desgasta e tortura o potencial cliente, tem como efeito colateral a irritação. Em vez de prazer, aversão; no lugar da paquera, o assédio.
O fenômeno, por recorrente, já foi até batizado. Chama-se síndrome de perseguição o mal-estar provocado pela onipresença virtual de anúncios e fotos de produtos, após o acesso a sites de buscas e mídias sociais. É assim que uma marca, antes respeitada e querida, pode acabar desgastada, malvista e odiada.
A saga da sandália branca nem chegou ao fim (a perseguição, informam os marqueteiros, dura em média 30 dias), e outra já começou. A origem foi um pesquisa sobre o ano de lançamento do DVD “Uma palavra”, de Chico Buarque. Advinha quem não sai mais da tela? A internet , desse jeito, acaba túmulo das paixões de uma brasileira.
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