domingo, 22 de fevereiro de 2015

Crônicas do Dia - Samba, ética e carnaval - Arnaldo Bloch

De onde virá o impulso ético capaz de promover a transformação dos desfiles?


A questão do patrocínio da Beija-Flor, que recebeu R$ 10 milhões do ditador Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial, dá o que pensar sobre uma tradição que procura associar o samba a uma ética pura. Verdadeira ou falsa, a máxima “quem não gosta de samba bom sujeito não é” difere bastante de afirmar que o sujeito que gosta de samba é, necessariamente, bom. Apesar de galhofeiro, o verso de Dorival Caymmi (o mais famoso sobre o estilo que se tornou, para o mundo, sinônimo de Brasil) abarca essa ideia de que o ser que não cai na essência do samba está irremediavelmente corrompido. O ruim da cabeça pode ser vítima de afecção psiquiátrica, mas também portador de um sério defeito de caráter. O doente do pé pode sofrer de crises de gota, mas também ser um preconceituoso insensível, esnobe taciturno, incapaz de tentar, mesmo desajeitadamente, embalar-se no coletivo.

Por ser um estilo, na origem e no desenvolvimento, muito cultivado nos morros e nos subúrbios, o samba já foi associado à bandidagem pelos abastados e pelos poderes, classistas e racistas, atingindo ao mesmo tempo a arte, a população pobre e, em especial, os negros, como recorda com eloquência a interpretação de João Gilberto de “Pra que discutir com madame”, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida. Felizmente, com o tempo, o samba se universalizou, traduzindo o espírito do que é, historicamente, o carnaval: um tipo de inversão, na qual o pobre é rico, o rico é pobre, o casto é safado, o safado é santo, as máscaras revelam o que se esconde ou escondem o que se revela.

Nada disso impede que a esfera show-business do samba (os desfiles das escolas cariocas) esteja ainda dominada, em grande parte, por dinheiro ilícito, com a complacência do poder público e de toda a sociedade. Pois, até que se moralize o conjunto, ninguém cogita suspender a maior festa da Terra, ficando no ar: quando e de onde virá o grande impulso ético capaz de promover a transformação, como se tenta fazer, hoje, com o futebol profissional?

Ao se constatar isso, é preciso observar algumas confusões e equívocos. Em primeiro lugar, carnaval não é sinônimo de samba. É uma festa global que, no Brasil, tem no samba um de seus suportes de manifestação espontânea ou formal, assim como tem no frevo, nas marchas e em outros formatos. Em segundo lugar, escola de samba não é sinônimo de samba, mas uma vertente com linguagem e influências próprias. Em terceiro lugar, o samba só é representante hegemônico da cultura brasileira (ou, o Rio, o emblema do Brasil), numa dinâmica de percepção resultante de um discurso nacional e “riocentrista”. Percepção válida, mas não absoluta, havendo controvérsias regionais e acadêmicas.

Em quarto lugar, apesar da ideia que associa a beleza ao bem, a Humanidade ainda discute o que é beleza, o que é bem e o que é arte. Ou seja, ainda que o bem e o mal existam, não há estilo do bem e estilo do mal (o que se tenta fazer com o funk, por exemplo, é típico dessas noções obtusas). O que há, mesmo, são pessoas, grupos, estruturas e discursos, e suas relações com as práticas, os usos e os costumes. Cada um sabe de si. E deixem em paz os estilos: há o samba, de raiz, de roda, de terreiro, de ponto, de coco, de pista. Se é bom ou ruim decide quem ouve, quem faz e quem critica, sejam pobres, ricos, santos e bandidos, sem falar nos bandidos-santos e nos santos-bandidos.

Isso torna até a condenação ao patrocínio recebido pela Beija-Flor passível de discussão. Eu, se fosse presidente da escola, não aceitaria a grana: poderia falar da cultura da Guiné sem o dinheiro do seu atual regime, um dos piores dos piores no quesito direitos humanos. Mas, num sentido abrangente, sem posições pessoais, é bom lembrar que o Brasil anda mal no referido quesito. Que nossas polícias torturam. Que nossa diplomacia beija os pés de sanguinários.

Anos atrás, a Vila Isabel recebeu dinheiro do agronegócio num enredo sobre o homem do campo. Eu acho isso feio. Mas o desfile foi considerado um dos mais belos das últimas décadas. Claro que, na arte, é preciso prestar atenção. Mas, voltando a parágrafos acima, sendo a Liga das Escolas de Samba o que é, onde está o erro central? Somos o país em que políticos de alto vulto dizem que ética é “um valor relativo”, como se conceitos pudessem ser multiplicados e recriados em si. Em resumo: para o samba evoluir, alguém vai ter que sambar...

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Errata: Semanas atrás, numa crônica em homenagem a Maria Bethânia, cometi o grave erro de atribuir a autoria da canção “Alguma voz” apenas a Dori Caymmi, quando, na verdade, a letra é uma das mais belas composições de Paulo César Pinheiro. Apesar de ter corrigido imediatamente na versão no site, faltou o papel, que foi onde esse que é um dos maiores criadores do Brasil leu o texto. E o telefonema pedindo consternado perdão, feito minutos antes de escrever essas linhas.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/samba-etica-carnaval-15336314#ixzz3SUKbzkpf

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