Lya Luft
Uma vida inteira descobrindo as próprias máscaras e tentando retirar algumas (outras são indispensáveis). Certa vez escrevi que a cada manhã afivelo a máscara do dia, um rosto cômodo que me permite conviver melhor. O perigo é que alguma vez essa máscara se apegue de tal jeito à minha pele que eu não a consiga mais tirar, ou saber qual destes rostos é o meu: o que espreita o mundo ou o que olha para dentro e me vai construindo enquanto pessoa?Não falo de cretinice, hipocrisia, mas talvez de autopreservação. Ninguém deveria botar a cara na janela sem consciência de que pode levar um tapa ou uma cusparada. Nós que nos expomos escrevendo, seja em jornais, revistas ou livros, sabemos disso muito bem – como atores e atrizes, ou modelos, ou outros, que se tornam “celebridade”. Mas no caso deles, os de palco ou holofote, é um pouco diferente: seu narciso é “para fora”. O de quem escreve em geral é “para dentro”: não somos de palco, e o olhar pessoal pode nos intimidar. A mim me deixa um pouco fóbica, porém em geral as pessoas são simpáticas e afetuosas, então devo aceitar com bom humor.
Mas quando mexem com meus textos não acho graça alguma. Muitos de nós escritores temos contos, poemas, artigos circulando na internet, e não são nossos. Um profissional do assunto logo vê: isso não é Veríssimo, Clarice, Saramago (espero que alguns digam: “Isso não é Lya”). O que digo aqui é repetido, mas há anos gira na internet um artiguinho cretino que não escrevi nem escreveria, mas lá está com meu nome embaixo, e fala de um público de mulheres e, depois de dizer “coisa inteligentes” durante um bom tempo sem reação, “revelei a minha idade, e um ‘aaahhhhh’ de espanto perpassou o auditório”.
“A VIDA É EM PARTE UM BAILE DE MÁSCARAS COM AS QUAIS NOS SEDUZIMOS UNS AOS OUTROS, E NOS ENGANAMOS DIANTE DO ESPELHO”
A coisa é patética, pois nem minha idade jamais foi mistério nem eu teria uma atitude tão tola. Não é grave. Apresenta-me como uma idiota, mas não é grave. Porém me incomoda. Amigos, recebendo a preciosidade, acham graça e ligam: “Logo vi que não é teu”. Mas me incomoda, como a todos os atingidos por algo igual. Como nos defenderemos? Não tem jeito, a saída é levar na graça e esquecer. Mas, passam-se meses, lá vem de novo o tal artigo de uma Lya com uma máscara ridícula: nada a fazer. Somos muitos, já disse o demônio encarnado em algum pobre que Cristo libertou. Somos muitos em casa, no trabalho, na postura da vida. Tema para sociólogos, psicólogos, antropólogos, filósofos? Está aqui, na vida cotidiana. Os americanos aturdidos pela crise, talvez beirando uma recessão braba, saíram comprando feito loucos na chamada sexta-feira negra, depois do Dia de Ação de Graças, e na segunda-feira, dia de comprar pela internet, também se esbaldaram. Ou a crise não é tão séria, ou estamos todos delirando, ou também existe uma máscara com cartão de crédito estampado.
Aqui, onde segundo dizem a recessão não passará nem longe e os problemas são dos outros, começam as compras de Natal, bandos de pessoas com montanhas de sacolas repletas. Nunca se fizeram e venderam tantos carros. Não há edifícios suficientes para nossa fúria de compra de apartamentos. Todos temos direito a uma casa, uma televisão, um carro. Saúde, escola, higiene, dignidade, horizontes positivos. Mas a máscara do consumismo junto com a do ufanismo me assusta um pouco, como a de um palhaço mau: onde vamos acabar? Como vamos pagar? A quem estamos enganando? Isso me lembra a sensação desconfortável de ver nos computadores um texto meu que não é meu, ou o de um colega que também não é dele: que estranho rosto é esse, que voz falseada, que cartão de crédito onipotente que logo adiante estará furado, que entusiasmo juvenil que nos pode levar à boca do poço?
Que a vida é em parte um baile de máscaras com as quais nos seduzimos uns aos outros, e nos enganamos diante do espelho, é sabido. O perigo reside na hora em que a última das máscaras cair, e tivermos de ver, nos grandes espelhos, um rosto preso ao nosso corpo, mas que parece não ter nada a ver conosco.
Revista Veja
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